terça-feira, junho 01, 2004

EM MEMÓRIA DO RODRIGO EMÍLIO

por Fernanda Leitão

Soube da morte do Rodrigo Emílio por uma (quase lacónica) notícia num daqueles jornais diários de Lisboa que leio todas as manhãs, muito cedo, na internet, e me servem de bica em terra longínqua de amaricados expressos, alheios a fado porque colaços de Traviatas. Foi um choque tremendo, um desgosto arrasador, de que mal me recompus ainda, pois nem sequer sabia o Rodrigo doente.

Avesso a relógios, madraço para epístolas, nutrindo por máquinas e tecnologias um ódio emoldurado em revelador silêncio, num contraponto absoluto a este jeito de me servir de quantas tecnologias me satisfaçam a pressa e a preguiça, quase que vestida de papel de jornal, o Rodrigo e eu levámos os últimos 30 anos, esses que foram de desespero nosso e desgraça de Pátria, a marcar e a falhar encontros logo desde o primeiro, no bar do Hotel Britânia, onde sequei umas horas à espera do princês. Para no dia seguinte, na redacção do Templário, ouvir o saudoso egenheiro Luís Aguiar, o que deixou memória da infâmia descolonizadora, quase paternal, quase a ralhar-me, porque o Rodrigo, coitadinho, tinha rabujado à minha espera noutro lugar. O grande despassarado. Naquele tempo não havia telemóveis, e que os houvesse, não éramos nós a alinhar nisso por sermos de qualidade de perdermos tudo como se tudo fossem guarda-chuvas.

Mas nunca nos zangávamos, felizes por estarmos certos de que estávamos de pedra e cal naquilo que era importante: a Pátria, Deus, a Amizade.

Depois duns anos bem puxados no Canadá, onde pedi asilo político e acabei por ficar, com cidadania e passaporte por bondade da Raínha Isabel II e da Constituição que Pierre Trudeau tratou de referendar, comecei a ir uma vez ou outra a Portugal. Para matar saudades, não será bem o termo, porque as saudades é que matam. E como dizia o Rodrigo, também é de Pátria que eu morro, embora para esse mal não haja médico nem referência no cardápio das doenças mortais. Digamos que vou ver o estrago e tentar perceber se ainda há ponta por onde se pegue à situação que a “Repulha” nos criou. Pelo meio, uns bons abraços que nunca sei se são os últimos.

Como foram os que dei ao Rodrigo Emílio na última noite de 1998. Andava numa de vou-não-vou quando recebi um bilhete do poeta a clamar que tínhamos de nos encontrar. Era quase Natal.

Meti-me ao caminho e marquei econtro com o Rodrigo Emílio, na última noite do ano, na Cova da Iria. Lá nos encontrámos, mais o Vasco Sampayo, que também Deus já levou. Ficámos hospedados no Exército Azul, meu poiso habitual. Estivemos lado a lado, ombro a ombro, como os soldados, e mudos, e tomados de grande emoção, na Missa do Galo da Basílica. Depois, a convite do reitor do Santuário, fomos fazer uma ceia frugal, e quentinha, nas Carmelitas. Por fim, quedámo-nos na Capelinha por um bocado. E de lá palmilhámos o regresso à hospedaria, debaixo de chuva inclemente que todo aquele dia e noite não parou. Eu estava um bocado surpreendida com o ar envelhecido do Rodrigo, bem mais novo do que eu, mas tratei de me apaziguar com a lembrança dum conselho que me deu há anos um brutamontes que andou comigo no Colégio de Tomar, que era casa de corrécios e pegadores de toiros, em bom e perfeito sotaque alentejano, esse que me disse: “trata de te veres ao espelho que já não te admiras quando vês a gente”.

O dia de Ano Novo veio soalheiro, radioso, e nós parecíamos remoçados pela noite bem dormida. Dali rodámos para terras de Ourém, onde a minha gente nos esperava, e a outros amigos meus idos de Lisboa, com lauto almoço na vasta e garrida adega. O que o Rodrigo gostou! E quanto conversámos pelo dia fora. À noitinha fomos de longada para Lisboa com os amigos, em casa de quem o Rodrigo acabou por passar uns dias porque eu tenho uns amigos que lêem pela cartilha do amigo do meu amigo, meu amigo é.

Foi assim que pudemos ir ao habitual almoço de monárquicos, à segunda-feira, na Sociedade de Geografia, de que fui presença certa durante tantos anos. Foi a última vez que vi o Vasco Sampayo e o Dr. Mário Saraiva. E o Rodrigo Emílio. Ainda ali todos lembrámos o Prof. Jacinto Ferreira, o Amândio César, o António Lino, o Alberto de Lemos.

“Vivos ou defuntos / que o céu nos encontre”, disse o Rodrigo Emílio num poema precioso que me ofereceu. Havemos de encontrar-nos no céu – onde não relógio, nem calendário, nem outras mazelas do mundo.

1 de Junho de 2004

Toronto





À FERNANDA LEITÃO
que acaba e publicar TRÊS TEMPOS

aerograma lírico de RODRIGO EMÍLIO

Esta voz
que nos vem
do Canadá,
lutou por nós,
bateu-se bem.
Perdurará.

Foi uma chama
de fé, no mapa
da derrocada;
e clarim, até:
clarão d´alvorada!


- É uma dama
de capa
e espada.
Lá cama,
papa
e roupa lavada
na CEE,
não são calçada
para a passada
do seu pé.

Outra é a gama
da sua harpa;
outra, a toada.
- Só e de pé,
é uma dama
de capa
e espada.

Detrás de si, traz
-sempre rapaz...,
e muito em segredo -
a sombra do meu velho Tomaz
de Figueiredo,
a sacar da caneta,
a ripar do papel,
a embeber-se com ele
no fel do tinteiro
e, como o Pimenta,
a arriscar a pele
p´lo Senhor Dom Miguel
e por Paiva Couceiro!...
Que mundos
imundos
tem tal madrepérola
topado defronte...!

Por isso, dá urros
de génio; e dá murros...
Por isso, anda a monte,
E a dar com os untos
Nos ossos de muitos...

Daí que reponte,
por mais e mais duros
que sejam os rumos
que a Terra lhe apronte...!

Mas surdos e mudos
é o que hoje gera
todo o horizonte...

- Vivos ou defuntos
que o céu nos encontre,
aqui juro, a pés juntos,
que estaremos juntos
em Évora-Monte!

... E até pode ser que venha a calhar
num outro lugar...

(Tomara, tomara que fosse em Tomar...!

7 de Fevereiro de 1992
(publicado no NOTÍCIAS DE GUIMARÃES)

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