quarta-feira, junho 30, 2004

EXAME POLÍTICO

Por Paulo Teixeira Pinto



Não há política sem acção. Mas agir sem pensamento não é política. Como não é político o pensamento inconsequente.

A política exige, por conseguinte, acção. Mas antes desta deve vir a intenção.

Ora, se o homem político deve sempre pensar para agir, e não deve nunca agir sem pensar, é importante que o faça nas duas dimensões de si. Quer dizer, que procure saber em primeiro lugar e com exactidão o que defende para os outros, para o apresentar como ideal comum. Em nome do qual exercerá pessoalmente, ou pretenderá exercer, um poder democrático, ou seja, em nome de todos. Esta é a correspondência da sua única face visível, daquilo a que se poderia apelidar como o lado extra da política.

Porém, também subsiste uma face oculta, aquela que só o próprio agente político poderá conhecer. Desde que a procure. Com esforço dorido e sinceridade crua. Esta dimensão íntima, escondida, é o lado intrapolítico.

A forma de o descobrir passa por cada sujeito político se sujeitar a um escrutínio interior. A um auto-exame. Que poderá passar por responder a si mesmo às questões que de seguida se enunciam:


Eu e os Outros – a acção política


· Quem vão ser os beneficiários desta acção ou omissão? E quem é que vai ser prejudicado?

· O que é que sucede se não for adoptada esta decisão?

· Qual é a finalidade essencial que se pretende visar com esta concreta iniciativa?

· Foram devidamente ponderadas todas as eventuais alternativas possíveis à minha escolha?

· Que custos indirectos pode provocar esta opção?

· Como se enquadra esta medida no programa a que se deve submeter? Representa a quebra ou desvio de algum compromisso eleitoral?



Eu e Eu – a intenção política



· Acredito em tudo o que faço?

· Lembro-me todos os dias de que os assuntos mais importantes devem ter prioridade sobre os mais urgentes?

· As minhas opções podem causar alguma dificuldade comprometedora para outro membro da equipa a que pertenço?

· Tenho a certeza, ou pelo menos um razoável grau de convencimento, de que posso cumprir tudo o que anuncio ou prometo?

· Faço sempre o que é preciso, mesmo quando com o custo da minha popularidade pessoal?

· Tenho sempre presente, antes de decidir, que o poder não é meu, e que tenho estrita obrigação de o usar o melhor possível, em nome e no interesse daqueles que mo delegaram?

· O critério principal que motiva todas as minhas acções ou omissões é o da convicção que publicamente proclamo ou o da minha conveniência pessoal que escondo?

· Sinto-me realmente capacitado para exercer com dignidade e lealdade as responsabilidades que me foram confiadas?

· Persigo a excelência? Procuro constantemente um grau superlativo de cumprimento ou contento-me com a mediocridade que se pareça com suficiência?

· Penso com regularidade no que fariam no meu lugar aqueles que intimamente sei serem melhores do que eu?

· Quando nomeio alguém escolho por regra aqueles que penso serem os mais aptos e qualificados, com carácter e independência intelectual? Ou prefiro aqueles a quem devo ajudas e favores, ou que me são elogiosos e incondicionais?

· Sou submisso e dócil com tudo quanto me dizem aqueles que têm mais poder do que eu, ainda que não concorde com as suas posições ou comportamentos, apenas para gerir a minha carreira?

· Trato com desdém e aparente superioridade aqueles que dependem directamente de mim?

· Insinuei ou repeti algo que sei não ser verdadeiro com o intuito de atacar um adversário político ou pessoal?

· Fui cobarde e pedi para ser citado sob anonimato?

· Prefiro proteger a minha imagem mediática com prejuízo da solidariedade que devo a outros?

· Acuso ou denuncio falsamente aqueles que concorrem directamente comigo para discussão de algum cargo?

· Percebo que quando duas pessoas concordam absolutamente em tudo é porque uma delas ou não pensa ou está a fingir?

· Respeito sempre a diversidade de juízos, mesmo quando injustamente críticos das minhas decisões? Obrigo-me a respeitar que tudo quanto não constitui uma certeza objectiva é falível e, portanto, livremente opinável?

· Sei porque é que poder e a glória são verdadeiramente diferentes e não apenas nomes distintos da mesma realidade?

· Acredito sinceramente que o poder não é um fim em si? E que nenhum fim político justifica quaisquer meios que atentem contra os princípios?

· Mereci conquistar o poder?

· Estou sempre preparado para considerar cada momento como o último em que posso deter o poder? E estou pronto para o abandonar sem tristeza ou rancor?


terça-feira, junho 29, 2004

A CASTIGADA MINORIA


CARTA DO CANADÁ
por Fernanda Leitão


A partir de hoje o Canadá tem um governo federal minoritário do Partido Liberal (centro esquerda), liderado por Paul Martin – primeiro ministro em exercício depois da retirada, por limite de idade, de Jean Chrétien. Fica com 136 assentos no parlamento, enquanto os conservadores têm 94, os socialistas (New Democratic Party) 23 e os separatistas do Quebeque 55.

Não é possível uma aliança com os conservadores ou os separatistas, devido a diferendos ideológicos intransponíveis, pelo que se adivinham alianças pontuais com os socialistas, que estes logicamente aproveitarão para apoiarem as causas sociais que são um investimento no seu futuro político.

Todo este cenário era previsível. Paul Martin, o ministro das Finanças do governo Chrétien que acabou com o défice e passou a registar um superavit substancial por anos seguidos, fez a vida difícil a Chrétien por ambição de chegar a primeiro ministro, querendo seguir as pisadas do pai, que foi o ministro e autor da legislação do sistema de saúde, inteiramente estadual, que ainda perdura. Foi visivelmente pouco correcto com Chrétien, um homem de Trudeau com grandes serviços prestados ao país, alcandorou-se a presidente do Partido Liberal e deixou na opinião pública a imagem de uma encapotada traição. Acresce que, sendo o multimilionário dono de uma próspera empresa de transportes marítimos, se viu confrontado com relatos de imprensa que davam essa companhia como fugindo ao fisco por meio de negócios fixos em paraísos fiscais das Caraíbas. Jean Chrétien retirou-se, magoado mas digno, e Paul Martin seguiu-se-lhe no cargo interinamente por acordo da Governadora Geral, Adrienne Clarckson, que representa no terreno a chefe do estado, a Raínha Isabel II de Inglaterra. Um ano depois, a auditora geral do Canadá (que responde à Coroa e não aos governos ou partidos) descobriu, ao peritar as contas públicas, que o governo federal tinha propiciado uma hemorragia de quase 200 milhões de dólares em benefício de agências de publicidade do Quebeque, muitas delas conotadas com os separatistas. O país, pouco habituado a corrupções deste jaez, acordou estremunhado mas depressa recuperou o sangue frio para exigir o completo apuramento do que se passou. A investigação continua, a cargo de um juíz nomeado pela Coroa. Foi então que Paul Martin cometeu dois erros tão primários que só se podem atribuir ao seu intenso desejo de ser primeiro ministro e à sua já provecta idade: negou ter tido conhecimento do assunto, muito embora fosse o responsável pela pasta das Finanças, e não teve o aprumo de guardar o pedido de eleições gerais à Governadora apenas para depois de toda a investigação estar terminada.

Se tivesse procedido de forma mais correcta, talvez viesse a ser o chefe do governo daqui a um ano. Assim, o eleitorado penalizou-o com um governo minoritário que, visivelmente, não vai durar muito para além do termo da investigação criminal. E entretanto fica refém dos socialistas, sob marcação cerrada de um Partido Conservador seguidista da administração americana e dum partido separatista, dirigido e manipulado por um antigo militante comunista, que vive no sonho de fazer do Quebeque uma república à cubana.

A única novidade destas eleições é a vitória do primeiro português que vai sentar-se no parlamento federal, Mário Silva, um açoreano que há vários anos tem vindo a ser vereador da câmara de Toronto. Ganhou confortavelmente a dois candidatos também portugueses, no círculo torontino de Davenport: Rui Pires, socialista, e Teresa Rodrigues, conservadora. É uma estreia honrosa para a comunidade portuguesa, embora esta não espere muito dum político pouco experiente que cairá quando o governo minoritário caír.

Apesar deste contratempo e de o Canadá ser um país difícil de governar, pela sua extensão desmesurada, os seus invernos glaciais, os seus 33 milhões de habitantes oriundos de 160 países, o país não está em crise. Tem a sorte de contar com uma máquina administrativa montada peça a peça, desde a fundação, pelos ingleses – com tudo o que isto significa de rigor, frugalidade e simplicidade. Os políticos podem desatinar, mas a máquina fica firme, o país continua a ser um dos que tem melhor qualidade de vida, um dos mais prestáveis nas causas humanitárias de que o mundo sofre, um dos mais livres e respeitadores da pessoa humana, mas um dos menos obedientes ao credo da admnistração dos Estados Unidos da América. Quando Bush convocou o Canadá para a aventura do Iraque, com a mesma ligeireza e desplante com que acaba de proclamar que apoia a entrada da Turquia na União Europeia, o governo Chrétien deu-lhe um completo e redondo não, mostrou-lhe que os Estados Unidos não são donos do mundo. Blair, um político da Commonwealth, enguliu em seco.

Enfim, a vida continua. Os deputados sabem o que os eleitores querem. Porque escolheram a profissão de políticos têm de fazer o que os eleitores querem. E nós, os que votámos na segunda-feira, deixamos essas tarefas aos nossos delegados por termos outras coisas a fazer. Por cá não se come e bebe e respira política 365 dias no ano, 24 horas por dia. Trabalha-se. E por isso se pedem severas contas aos políticos que não trabalham ou que trabalham mal.

segunda-feira, junho 28, 2004

PORTUGUESES DE SEQUEIRO

Por Virgílio de Carvalho*


Portugueses de sequeiro são os que, por falha do nosso ensino, não dão ao mar (que Unamuno disse ser o que faz Portugal, isto é, que nos dá individualidade de país numa Península em que o resto são nações apenas com identidade), o valor de "cluster" (vantagem competitiva) vital, a ter de figurar na Constituição como "interesse nacional". Isto a par de uma UE tipo EFTA simétrica da NAFTA da América do Norte (Canadá, EUA, México) como componentes de uma nova OTAN a ser elemento fundamental de uma nova ordem internacional (NOI) multipolar. Uma NOI para que o Mundo já se dirige devido à visível incapacidade dos EUA para imporem outra coisa à China (a maior importadora de armas), e à Rússia (a maior exportadora delas), que manterá Portugal marítimo país central, não periférico. Para não falar da recente proposta do PR do Brasil, em Pequim, para uma associação de grandes potências emergentes, a incluir também a Índia e a África do Sul (e decerto o Brasil), a terem lugar no Conselho de Segurança da ONU.

Nós somos tão marítimos e centrais na OTAN como a velha aliada Inglaterra que, por isso, é mais soberana e influente numa UE continentalista que possa virar anti-OTAN . Mas à Espanha histórica anti-atlantista convém-lhe um Portugal "periférico" de sequeiro para explorar o nosso "cluster" mar com um megaeroporto em Badajoz, um TGV de Madrid a Sines e o aeroporto de Lisboa a ir para a Ota, visando participar no grande projecto mundial de megaeroportos e portos de águas profundas à nossa custa. Surpreendidos com a elevação dos petrolíferos Golfo da Guiné e mar de Angola, a vital alternativa ao petróleo do Médio Oriente, e de S.Tomé e Príncipe a uma espécie de Diego Garcia "ianque" para a sua protecção, resta-nos a nós, e ao Brasil, procurar cooperar com os EUA para, ao menos, salvar a lusófona "civilização de afecto " de que falava Agustina Bessa-Luís. E passar a dedicar a necessária atenção a Cabo Verde.


* Comandante da Marinha Portuguesa, Professor convidado na Universidade Lusófona.

POLÍTICA, ESTRATÉGIA E DEFESA NACIONAL

Por Virgílio de Carvalho

Os países precisam de Objectivos Nacionais Permanentes (ONP), representativos de interesse nacional inscritos na sua Constituição, para poderem ter estratégias adequadas a eles, exequíveis e sustentáveis; e também aceitáveis, isto é, que o que possa perder-se com elas seja compensável com o que possa ganhar-se.

Após a vitória das potências marítimas na Segunda Guerra Mundial, o marechal Montgomery veio propor-nos termos poder marítimo e aeromarítimo para mantermos a segurança delas no nosso mar. Não o fizemos.

E a Espanha aprestou-se a encarregar-se disso, jogando com o seu poder aéreo e naval (que inclui um porta-aviões), pondo em risco a nossa individualidade de país.

O que nos impõe lembrar que países que se têm sentido ameaçados pelos que dispõem de porta-aviões, como a URSS e a China na Guerra Fria, têm recorrido a submarinos para os manter em respeito.

E até a própria Inglaterra, que recorreu a um submarino na crise das Malvinas para, obrigando o porta-aviões argentino a quedar-se na sua base, poder ter superioridade aérea para vencer.

E nós, o único país com a individualidade em risco na União Europeia, somos o que temos tido menos submarinos.

Por o interesse nacional estar também em risco pela nossa frágil cultura (histórico-estratégica, geopolítica e militar), entendemos precisarmos de, para além de interessar universidades nela, um Colégio de Defesa (talvez no IDN), para eméritos civis (diplomatas, cientistas, empresários, políticos, jornalistas, etc.) frequentarem, em conjunto com os oficiais dos cursos superiores dos três ramos das Forças Armadas, a parte respeitante à apreciação dos cenários internacionais.

E precisamos, também, de dotar o Exército com uma força especial de intervenção externa rápida com militares tipo marine (agregando comandos, pára-quedistas e fuzileiros), a transportar por ar ou por mar.

Neste caso, a transportar pelo futuro navio logístico polivalente para cuja protecção, como para outros navios de alto valor estratégico, os submarinos são os melhores escoltadores.

União. Entretanto, com a «invasão ianque» do mar da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), do petróleo de São Tomé e Princípe e de Angola, que visa criar, com o da Nigéria e da Guiné Equatorial, alternativa segura ao do Médio Oriente (que já começou a ser finalmente posto em risco com a esperada ofensiva Ben Laden contra a governação da Arábia Saudita) é de lembrar ao Brasil o aviso do seu geopolitólogo Golbery do Couto e Silva para se juntar a Portugal, visando defender o valioso património cultural e económico da Lusofonia, inclusive a língua portuguesa.

Talvez como o Brasil fez na Segunda Guerra Mundial , aliando-se aos EUA para não lhes ceder bases, ou procurando, no mínimo, participar com Portugal na guarnição do navio logístico polivalente daquela superpotência que, com base em São Tomé e Princípe, é agora sede do comando NATO do Atlântico todo.

Acossados. É que precisamos também de defender a CPLP de «nova invasão» da África pela Europa, idêntica à provocada pela Revolução Industrial do século XIX, principalmente por França e Alemanha no âmbito do conceito geopolítico, geocultural e geoeconómico «Euro-África», para assegurarem recursos minerais e económicos naturais de que carecem.

É, no entanto, justo lembrar que os Estados Unidos da América não costumam ficar em países que têm defendido de cobiças alheias, e que o porto de abrigo para eles favorecerá a soberania santomense face aos mais perigosos adversários dela (o colosso vizinho Nigéria e a Guiné Equatorial), tal como sucede com Portugal quase-arquipelágico face à vizinha Espanha.

E que a dispersão de dependências externas de petróleo, e de outros recursos económicos, poderá levar ao aparecimento de Nova Ordem Mundial multipolar de equilíbrio global de poderes.

Uma nova ordem mundial que seja favorável à solução de conflitos graves pelo diálogo e pela diplomacia, como defendemos num dos nossos livros, e o Brasil e a própria União Europeia começaram a preconizar.

domingo, junho 27, 2004

O BECO REPUBLICANO

CARTA DO CANADÁ
por Fernanda Leitão


Esta República, a quem o povo português deve favores que a História registará, um deles foi a “descolonização exemplar” e outro foram as “nacionalizações de roubo”, a que se deve acrescentar o abandalhamento do ensino e a corrupção mais elaborada, desembocou num beco mal afamado e sem saída. Durão Barroso, que vem da escola comunista do maoísmo e foi promovido por Cavaco Silva, mexeu os pauzinhos todos que lhe permitam fugir do país, pela porta da frente, de modo a não ter de dar contas dos abusos, incompetências e coisas nada sérias do seu governo de coligação. Uma coligação ostensivamente protagonizada por um Paulo Portas que, goste ele ou não, está irremediavelmente queimado desde o caso da Moderna. Não se surpreendem os emigrantes portugueses do Canadá com esta fuga, tão descarada, porque, quando em Toronto tivemos a epidemia da gripe SARS, Durão Barroso cancelou a sua presença na festa de homenagem aos pioneiros que chegaram a este país há 50 anos, tendo o topete de se ficar por Otava, entre banquetes e limousines governamentais. A comunidade portuguesa colou-lhe o rótulo inapagável de cobarde. Foi o mínimo que lhe chamaram, à boca cheia, os portugueses deste lado do mundo.

Obriga-me a verdade e a memória a dizer que não me surpreendo por mais este acto de fujão e a explicar porquê. Há anos atrás foi cônsul de Portugal em Toronto um António Tânger Correia que, além de ter apanhado aos incautos dois barcos com o pretexto de ir ás Olimpíadas de Seul, o que logo foi desmentido pelo Comité português, deu outras “palmadas” por aí, abandonou o posto diplomático para velejar na Europa, meteu-se em aventuras galantes que deviam ter dado uma inspecção rigorosa se o Ministério dos Negócios Estrangeiros fosse respeitável, ia para o consulado algumas vezes bastante bêbado, e foi nesse estado que expulsou um honrado trabalhador com 29 anos de casa, a quem o estado português nunca fez justiça, etc. etc. etc. Um escândalo, uma lama, uma lástima que nos envergonhou a todos. Era ministro dos Negócios Estrangeiros o Sr. Durão Barroso. Como eu conhecia o Tânger desde catraio e calhou de ir a Lisboa, avisei a sua progenitora quanto ao melindre da situação por ele criada, sugerindo que pedisse ao ministro para o tirar de Toronto. Respondeu-me que não podia ser porque o dito ministro e o delicioso filhinho eram amigos unha e carne. E adiantou uma expressão que me ficou colada na memória: “São dois garotões”.

Porque havia eu de me admirar das piruetas do Durão Barroso nos dias que correm?

Temos, pois, que Durão Barroso está de malas feitas para Bruxelas, numa fuga precipitada, e que sugere para seu sucessor Santana Lopes, o célebre Pedrocas das Larocas, que tem boas razões para fugir da borrada que deixa na Câmara de Lisboa e é íntimo do nunca por demais celebrado Paulo Portas. Este é um beco sujo, mal cheiroso e mal afamado.

Portugal tanto pode estar à beira de varrer a testada e limpar uma boa parte da casa política, como pode estar quase a transformar-se naquilo a que Guerra Junqueiro chamou “uma enxerga podre cheia de percevejos”, quando, arrependido e envergonhado por ter louvado os malditos regicidas, viu no que tinha dado a balbúrdia republicana.

Tudo agora depende do Presidente da República. Este, como é de seu natural, não perdeu as estribeiras, pediu tempo para reflectir e aconselhar-se, recomendou prudência e pequenos passos. Está a ser bastante criticado por isso, com uma paixão a condizer com estes exaltados dias de campeonato de futebol. E no entanto, o PR está certo ao proceder assim. Precisamente por ser Presidente da República. Porque o Presidente da República é em geral proposto e apoiado por um partido, embora seja depois votado por todos aqueles que, mesmo pertencendo a outros partidos ou a nenhum, lhe dão a sua simpatia ou o benefício da dúvida. Quando surge uma situação de encurralamento político, como esta que foi provocada pela Direita Situacionista, a Direita Aproveitadora, o PR tem de ser extremamente cauteloso na solução do problema para não ser acusado de estar a favorecer a formação ideológica de que é oriundo. Frente ao desconchavo criado pela rapaziada dos Jaguares, Copos, Tipas & Ofícios Correlativos, é evidente que apetece convocar eleições antecipadas e pôr tudo a claro, virado da cabeça para os pés. Mas, como em tudo, é preciso perguntar quem é o primeiro beneficiário. E aí é que bate o ponto. Portanto, Jorge Sampaio tem de ser prudente e aconselhar prudência. E o povo, consciente desta realidade, tem de fazer saber ao PR que pode contar com o seu apoio. Porque a situação é séria, é o país que está em jogo com milhões de almas dentro, não é hora de levar isto no calembourg, na risada ou no esfregar contente de mãos. O país acima de tudo.

O Rei não tem estes problemas de suspeição em relação a partidos. Pode cortar a direito. E mandar varrer os cacos. Quanto mais o tempo passa mais as pessoas são obrigadas a pensar nestes termos.

sexta-feira, junho 25, 2004

PLÍNIO SALGADO - UM PENSADOR CRISTÃO

Por Fernando Rodrigues*

A tragédia de nossos dias é a mais angustiosa - afirmava o gênio elevado de
Leonel Franca -, porquanto, segundo o mesmo autor, as almas nobres e
reflexivas, mesmo as que, em momentos de exaltação entoam hinos de louvor à
vida, acabam imergindo nas sombras de um pessimismo sem esperanças.

Diante das angústias da hora presente, Schopenhauer talvez seja uma das
impressões mais lancinantes de uma alma que desconhece seu destino; ou mesmo
Nietzsche; ou Pirandello, quando é taxativo: "no ha la vita un fruto,
Inutile miseria"; ou até mesmo Gabriel D'annuzio, ao externar melancólico:
"diante de mim na sombra, está a morte sem flâmula. Eu morrerei em vão".

Que homem, digno deste nome, poderia se conformar com os fatos que marcam
nosso tempo? Leon Bloy, Baudelaire, Bernanos, Chesterton, Pio XII, Maurice
Blondel, Gustav Thibon, Plínio Salgado... Este último - cuja página
dedicamos -, fez de seu verbo inflamado a espada afiada contra as doutrinas
deletérias; e vendo a mocidade sofrer o influxo da degradação de tais
doutrinas, concitava-os ao que ele chamava de "Revolução Inteiror".

Depois do contato com as doutrinas materialistas e revolucionárias de Sorel,
Marx, Trotski, Feuerbach, Plínio vai encontrar o clarão da fé nas palavras
de fogo de Jackson de Figueiredo, e sobretudo na filosofia do cearense
Farias Brito, este mestre que concorreu com seu esforço para por á cobro a
faina demolidora do materialismo e iniciar a grande obra reconstrutiva.
Farias Brito inconcussamente o grande precursor da renovação do pensamento
que à época deste ilustre pensador predominava, vale dizer, o positivismo de
Augusto Comte e o pragmatismo de Stuart Mill, tendo como representantes em
nosso país [Brasil], figuras do mais alto valor intelectual, tais como, Benjamim
Constant; Teixeira Mendes; Miguel Couto; Tobias Barreto; Fausto Cardoso com
seu haeckelianismo sociológico, entre outros. Cabe ressaltar, que na França
e na Itália o papel de salvaguadar os valores espirítuais em contrapartida
ao dogmatismo materialista, era exercido por pensadores do estofo de um
Boutroux - chamado pelo próprio Fárias Brito de pensador valiosíssimo a
todos os títulos - e de um Bergson; de um Spaventa e de um Benetto Croce -
consoante ensinamento de Miguel Reale.

A síntese do pensamento de Plínio Salgado consiste no apelo do autor da
"Vida de Jesus", à Revolução Interior, como já citado. Á essa luz, de uma
feita, dizia Pèguy: "as verdadeiras revoluções consistem essencialmente em
mergulharmos nas inesgotáveis fontes da vida interior. Não são homens
superficiais que podem por em marcha tais revoluções - mas homens capazes de
ver e de falar em profundidade". E Plínio era um desses homens, pois, -
como afirma o historiador lusitano João Ameal - "no calor e no fervor de sua
evocação parecia um contemporâneo de Cristo".

Em Portugal, na data da comemoração do Condestável, Nun'Alvares, Plínio
proferiu linhas luminosas que expressam o que foi sua vida, de filósofo; de
sociólogo; de político; de apóstolo:

"Ensinou-nos Nun'Alvares que o supremo destino da criatura humana está em
Deus; que as riquezas mais ricas, e as glórias mais gloriosas, e o poder
mais poderoso que seja, não passam de bens passageiros, que terminam bem
depressa, cumprindo-nos, portanto, fazer deles instrumento de trabalho com
que servir Aquele que constitui o Bem que não acaba. Lutar pela Pátria,
lutar em prol da comunidade, infatigavelmente, é digno e belo; mas fazer
dessa mesma luta o cilício de nossa lama, o meio de santificação, é ainda
mais belo. Porque existe, além das muitas formas de santidade, uma que
poderemos chamar "santidade política", e essa conhecem os que sofreram, pela
felicidade publica, os agravos do tempo e as injúrias dos homens, que afinal
são também, uns e outros, passageiros como os bens, já que tudo passa na
terra e eterno no Céu".

Malgrado todos os sofismas que norteiam sua vida e sua obra, diante das
paisagens e escombros se levanta sua mensagem indelével como anunciação
promissora. Cheio de fé em nossa destinação histórica, Plínio, parafraseava
Camões: "Depois de procelosa tempestade, noturna treva e silibante vento,
traz a manhã serena, claridade, esperança de porto e salvamento".

Em uma das peças de Gil Vicente, surge um Cruzado e, então, é dito que o
Cruzado vai direto para o céu, porque se bateu por uma Boa Causa.

Plínio foi um dos grandes Cruzados, com que o Século XX nos galardoou,
pensador exímio, defendeu seu pensamento com intrepidez, não obstante
possuísse uma alma franciscana, porquanto, Plínio foi um desses homens, que
merecem a sentença de Dante Aliguieri - autor da Divina Comédia - para quem,
mais alto que o entendimento, o Amor se levanta, - o Amor que faz mover "il
sole e I'altre stelle" e pelo qual o nosso destino terrestre consegue sair
triunfante dos combates terríveis da Alma e do Mundo.

*Acadêmico de Direito - Foz do Iguaçu-Pr
www.pliniosalgado.cjb.net




quinta-feira, junho 24, 2004

PORQUE FUI VOTAR

Por Teresa Maria Martins de Carvalho

Não gosto muito de partidos políticos. Em vez de serem, como deviam ser, organizações que proporcionam aos cidadãos vulgares voz e opinião, alguma cultura política. Pelo contrário, pouco servem ou formam os cidadãos para a participação pública.

Não são porta-vozes de ninguém, a não ser deles próprios. São colégios de políticos de profissão, os «boys».

Não é só de hoje o complicado problema da representação política. Mas é assim... Tenho de ter as cores desta direita, deste socialismo, deste comunismo, para que dê certo o que penso com que pensa o político e o que vai fazer com o poder que lhe pus nas mãos. A ideologia representativa tende a “formatar” os seus eleitores. No entanto, na situação actual, muitos deles desinteressam-se, sentem-se defraudados, mal representados. É por isso que a abstenção é tão grande...

O triste espectáculo na Lota de Matosinhos deu-nos a noção de que, quando se trata de votar, mesmo que a campanha fosse para as eleições europeias, as lutas do poder local sobrepõe-se à Europa. É natural, aparte a má educação. Conheço o presidente da Câmara. Não conheço a Constituição Europeia que afinal é um Tratado.

É verdade que estando os partidos políticos tão dentro de si próprios, mesmo que seja para a eleição de deputados europeus, ela decorre nos mesmos infelizes moldes de todas as outras eleições.

Assuntos europeus? Que é isso? As campanhas eleitorais, que deviam ser cordatas e dar bons exemplos, não explicaram nada e deram maus exemplos.

Mas eu fui votar. É verdade. Apesar de tudo. Ao contrário disto, sempre achei que o futuro de Portugal se afirmaria, muito mais logicamente – para não dizer sentimentalmente – ao lado do futuro do Brasil, de Angola, de Moçambique, de Timor, de Cabo Verde. Mas esse sonho não se proporciona e a comunidade lusófona marca passo... Neste contexto globalizado e globalizador, em que os formidáveis meios de comunicação, a fácil mobilidade e deslocação das empresas e dos seus agentes, meteram as economias e a sobrevivência dos países limítrofes num jogo tal de forças e influências que quase automaticamente os gruda uns aos outros.

Estamos na Europa como ela se vem definindo, alargando-se, tentando sobreviver às investidas comerciais da Ásia, para se impor como unidade cultural, como criatividade própria em todos os domínios.

Não é muito promissor o futuro identitário dos países pequenos, entre os quais nos encontramos mas a Europa é só realmente Europa, trazendo às costas as 25 identidades, respeitando-as e considerando-as como a sua maior riqueza.

Aparecerão, como têm aparecido, muitos problemas de ordem política e económica. É difícil a elaboração de um tratado geral. Que representação para o Parlamento europeu? É óbvio que o projecto europeu terá imensos percalços e alçapões mas não posso admitir que, estando lá Portugal, não esteja minimamente representado, não dificulte, não fale, não apareça... Tem de estar presente.

Neste caso, sendo as coisas como são, eu fui votar.

segunda-feira, junho 21, 2004

AINDA BEM

CARTA DO CANADÁ

Por Fernanda Leitão


Qualquer vitória da selecção nacional de futebol daria grande satisfação aos portugueses. Mas, por razões sabidas, uma vitória sobre a Espanha, em meio de um campeonato que gerou controvérsia e manchado por uma derrota face à Grécia que fez perigar o acesso da equipa lusa aos quartos de final, só podia lançar o mais perfeito delírio em Portugal todo ele, o que ficou e o que emigrou. Ninguém ficou imune.

Não fui excepção. Comecei por me irritar fortemente com a derrota, depois de tanta fanfarronada na comunicação social, e acabei, na tarde de domingo, com um sol radioso lá fora, colada diante da TV a ver o jogo transmitido em directo e em italiano (a RTP-I ainda só entra através de grandes antenas, só possíveis em grandes quintais ou subterrâneas, por não serem consentidas as antenas sobre os telhados, mas no prédio onde vivo sou a única pessoa de língua portuguesa e essa despesa não se justifica. A SIC entra por cabo através dum programa televisivo local, propriedade dum espanhol naturalizado português, num processo que não vale o dinheiro que se gasta). Pelo meio ficaram telefonemas de vizinhos canadianos a dizerem-me o proverbial e sempre simpático GO PORTUGAL, GO, e os meus amigos do Mercado de St. Lawrence, mesmo do outro lado da minha rua, onde me abasteço e tomo todos os dias a bica, a pedirem-me posters e a colocá-los mal eu os obtive, as raparigas portuguesas do Churrasco, o único restaurante português da área, a pedirem-me por tudo que lhes arranjasse uma fotografia da selecção, e eu cheia de pena de não ter nenhuma. Ficaram a matar as praias do Algarve, os palheiros de Mira, os campos de golf, sob os olhos da multidão compacta e colorida que, todos os sábados, tem o hábito de tomar o pequeno almoço no mercado e dali levar mantimentos e flores para toda a semana. No sábado, num jantar internacional, com pitéus que iam da Irlanda ao Uruguay, para o qual fui convidada a participar com uma sangria à maneira, surpreendeu-me que os saxónicos, pouco versados em futebol europeu, me perguntassem que palpite tinha eu para o jogo com a Espanha.

Confesso que estava apreensiva quando comecei a ver o jogo, tanto mais que ontem à noite um blogue na internet afirmou peremptório: “amanhã ou ficamos em 1580 ou em 1640”. Que coisa!

Piorei quando me tiraram os olhos do ecran vizinhos e amigos cuidadosos: “Olha que o TeleLatino está a dar o relato, liga para lá, é o canal 35”. Estive naquele desconforto até ao golazo do Nuno Gomes (lembrei-me que, quando era nova e andava no colégio de Tomar, havia aquele entusiasmo maluco pelo mundial de Hóquei em Patins, transformado em verdadeiro sofrimento quando a selecção defrontava a Espanha, e a coisa era de jeito que as meninas internas se deitavam no chão das camaratas, o ouvido colado ás tábuas do sobrado, porque a leitaria por baixo punha o som no ponto mais alto de modo a elas poderem, ao menos, ouvir aquela estridência gostosa do gooooolo...).

Nestes dias apercebi-me, através da internet e de jornais que me foram chegando, que algumas pessoas estavam surpreendidas, e até um pouco incomodadas, com a profusão de bandeiras verde-rubro em varandas, em casas e em ruas, bem como com as multidões cantando o Hino Nacional. Li mesmo algumas prosas estomagadas com aquilo que julgavam ser um nacionalismo descabido e desabrido. Foi a minha vez de ficar surpreendida. É que eu nasci há muitos anos em Angola, e ali a consigna era: Pai é Pai – Mãe é Mãe – Hino é Hino – Bandeira é bandeira. Não se discutia. Amava-se. Respeitava-se. Depois, estou há 21 anos no Canadá, uma monarquia constitucional, de que a chefia do estado é garantida pela Raínha Isabel II de Inglaterra, país libérrimo que alberga em boa ordem comunidades oriundas de 160 países, onde todos podem praticar a sua religião e ter as suas escolas, os seus comércios, as suas bandeiras, as suas manifestações culturais. País em que todos, os que nasceram aqui e os que escolheram esta terra para viverem, têm o culto da bandeira e onde o Dia Nacional do Canadá , em 1 de Julho, é festejado com todo o entusiasmo do Atlântico ao Pacífico. Nas igrejas, dos vários cultos, é normal estarem atrás do altar a bandeira do país a que pertence aquela comunidade e a bandeira do Canadá (e ainda a bandeira da Santa Sé, no caso dos católicos). Nunca ninguém nos chamou nacionalistas mas se chamasse, éramos capazes de julgar que era um elogio.

Mas depois lembrei-me que em Portugal, desde 1974, passou a ser feio chamar Pátria à Pátria, saber cantar o Hino e hastear a bandeira. Tudo por imposição de intelectuais republicanos. Porque os monárquicos, como eu, têm respeito pela bandeira verde-rubra, mesmo não se revendo nela. Não há memória de algum monárquico ter pisado a bandeira, ter arrastado a bandeira no abandono do Ultramar, de a ter posto de pernas para o ar numa varanda entre lençóis e camisas de dormir. Não é a nossa, mas respeitamos o que ela representa para as outras pessoas.

O que este mar de bandeiras representa em Portugal, o que quer dizer o Hino cantado espontaneamente no meio das ruas, é que o Povo anda com saudades de si mesmo e com um desejo enorme de abraçar a Pátria – como aquele soldado das hostes de Paiva Couceiro, de que falam os relatos da Monarquia do Norte, que tomou entre os braços a bandeira branca e a beijou, dizendo numa tremenda e desajeitada ternura: “dá cá um beijo, oh cachopa, que há tanto tempo não te via”.

Se o futebol fez rebentar o dique da timidez popular, então obrigada futebol. Que o patriotismo rebente o dique e regresse de novo às ruas, aos campos, às escolas, às fabricas, às almas, como um grande rio, um salutar rio que lave a terra do que a tem afligido e conspurcado.

quinta-feira, junho 17, 2004

LÁ FORA, CÁ DENTRO

Por Paulo Teixeira Pinto


1. A Suécia é um país atrasado. Em todos os domínios. Além de ter pouca cultura democrática, é pobre, como qualquer indicador sobre os seus padrões de qualidade de vida pode demonstrar à saciedade e com a maior simplicidade. Já todos o sabiam. O que permanecia ainda desconhecido era o ponto até onde poderia descer também o seu grau de ingratidão. Agora viu-se: é igual ao dos dinamarqueses, um pouco melhor do que os irlandeses e quase tão mau como o dos noruegueses. Expliquemo-nos melhor. Não chega sequer ao nível dos irlandeses porque estes, apesar de pouco discernidos, como se viu quando rejeitaram por referendo o Tratado de Nice, ao menos numa segunda oportunidade que lhes foi concedida – aliás, sem mérito próprio - lá acertaram no resultado correcto. De resto, até nem precisaram de nenhum referendo para adoptar o euro. Quanto aos suecos, nem mesmo disso há a certeza de vir a acontecer. Abra-se aqui um oportuno parênteses para reiterar os perigos e malefícios do referendo – é tudo muito bonito no papel, democracia, soberania popular, participação cívica, aproximação aos eleitores respeito pela cidadania e coisa e tal, mas depois, no fim de tudo, vai-se a ver e é isto: sai quase sempre asneira. E pensar que ainda há quem queira fazer um referendo em Portugal. Era bom, era. Bom, voltemos à espessura dos suecos. A verdade é que também não chegaram ao limite da indecência da Noruega, que em referendo (lá está, é sempre a mesma coisa…) rejeitou já por duas vezes pertencer à União Europeia – o que só demonstra que o seu povo, apesar de deter o mais elevado nível de vida em todo o mundo, não tem o mínimo dos mínimos respeitos por pessoas que são dignas da maior dedicação, justa admiração, sincero louvor, penhorada gratidão, eterno reconhecimento e merecida veneração. Quais são elas? Pois são de tal modo conhecidas de todos os verdadeiros bons europeus que bastaria dizer que nem um Jacques Santer os suecos mereciam, quanto mais sonharem em algum dia poderem vir a pertencer a uma Europa Unida presidida por um lenda viva da estirpe de um Valery Giscard. Mas a Política também pode ser um exercício de superioridade moral. Por isso, com base nesta autoridade, e apesar da tacanhez nunca suficientemente censurada do povo sueco, a Comissão Europeia já afirmou, numa prova de incrível generosidade - assim respondendo com insuperável magnanimidade ao insulto popular dos inqualificáveis suecos - que, apesar do resultado do referendo, aquele país «vai manter vivo o projecto do Euro». Por isso, para o ainda seu e nosso Presidente, o brilhante e amado Romano Prodi, o resultado do referendo foi mera consequência «do medo da novidade», do desconhecido que representa esta escolha, «que existe na opinião pública, em especial nos sectores mais simples». Diga-se só, em abono da verdade, que aqui houve um pequeno lapsus linguae (como bem comprovado está, estes lapsos só acontecem aos melhores de entre os melhores), pois que, sendo a simplicidade uma qualidade, o que Sua Excelência o Senhor Presidente da Comissão Europeia quis dizer era “nos sectores mais atrasados, ignorantes e estúpidos, que infelizmente são a maioria”.

2. Esta semana passaram exactamente 706 (setecentos e seis) anos sobre a celebração do Tratado de Alcanizes. Como já foi há algum tempo, recorde-se sumariamente do que aquele tratou: em 12 de Setembro de 1297, o Rei D. Dinis assinou com o Rei de Castela um acordo formal - o sobredito tratado - pelo qual se fixou a fronteira entre os dois Estados peninsulares, sendo reconhecida a soberania portuguesa sobre os territórios e povoações de Riba-Côa, Ouguela, Campo Maior e Olivença. Os limites assim estabelecidos jamais sofreram qualquer alteração, deste modo se constituindo a mais antiga e estabilizada fronteira nacional da Europa. Sucedeu, porém, que o estado espanhol veio a ocupar em 1801 a vila portuguesa de Olivença. Até à data presente. Apesar das determinações e acordos internacionais, nomeadamente do Tratado de Viena de 1815. Com o silêncio cúmplice de toda a gente. Toda? Bem, na verdade, realmente nem toda. Uma associação de cidadãos - o Grupo dos Amigos de Olivença [olivenca@olivenca.org / www.olivenca.org ] - que não abdicaram do exercício dos seus inalienáveis direitos de intervenção pública, continuando o testemunho de tantos nomes que pugnaram pela causa de Olivença, como foram os casos de Hernâni Cidade, Jaime Cortesão, Queiroz Veloso, Torquato de Sousa Soares, Humberto Delgado e Miguel Torga, reclama-se, muito simplesmente, daquela que é a posição jurídico-política portuguesa, com cobertura constitucional: Portugal não reconhece legitimidade à ocupação de Olivença por Espanha, considerando que o território é português de jure. Parece estranho não parece? A CIA acha que não, pelo que acabou de qualificar a disputa por Olivença ao mesmo nível de outras querelas internacionais. Assim, os serviços secretos norte-americanos incluíram pela primeira vez no seu relatório anual sobre disputas internacionais o diferendo pela posse territorial de Olivença. Naquele documento, tanto no índice de conflitos de Portugal como no de Espanha, é referido que Portugal "reclama periodicamente os territórios à volta da cidade de Olivença, Espanha", há dois séculos ocupado à margem dos tratados internacionais.

3. Na Guiné-Bissau o inevitável aconteceu, por fim. Esperemos que o silêncio internacional sobre os desmandos e desvarios que aquele país nosso irmão sofreu ininterruptamente ao logo das últimas décadas não seja quebrado apenas por cínicas declarações de circunstância, do tipo das que fez o secretário executivo da CPLP. É que é muito fácil afirmar que se “condena a rotura institucional e apela aos militares, às forças políticas e à sociedade civil guineense que encontrem pela via do diálogo as soluções para os problemas do país», quando aquilo em que a “normalidade” se transformou, naquele País, não passava, de maneira nenhuma, da mais pura e completa das anormalidades. E esta não podia deixar de merecer o repúdio de todos os que revejam nos outros os direitos humanos que dizem partilhar. A hora é de mudança para aqueles nossos irmãos. Haja esperança, até porque pior já não parece possível.


(nota: este texto foi escrito e publicado, pela primeira vez, em Setembro de 2003)


terça-feira, junho 15, 2004

A PAU COM A ESCRITA

Carta do Canadá

Por Fernanda Leitão

Quando há dias a Itália celebrou o seu dia nacional, nas vastas instalações do seu consulado, ali à Dundas, pertinho da China Town, inevitavelmente acudiram-me algumas considerações e perguntas.

O governo italiano, em vez de alugar apartamentos, cada vez maiores e mais caros, comprou um casarão com grande terreno à volta. Para além do porte e dignidade que esta circunstância confere, já que ali o cidadão italiano sente que está a pisar o que é seu, acresce a economia que se tem feito e o confortável espaço de que se dispõe, não sendo demais sublinhar que há parqueamento gratuito para os carros do pessoal consular.

E não sendo, também, de esquecer o que representa festejar o dia nacional naquele vasto terreno, sem precisar de andar por espaços alugados e alheios. Naquele espaço se espalharam, com naturalidade e alegria, com competência e savoir faire, vários restaurantes da comunidade italiana, servindo os pratos típicos do seu país, numa inteligente e leal promoção pública da gastronomia e da restauração italiana, sem apoios escondidos e inconfessados interesses (e eu lembrei-me de como era festejado o Dia de Portugal, há muitos anos, antes de ele se transformar numa indústria em benefício de poucos, numa feira de vaidades de bastantes e numa arena politiqueira das costumeiras hostes, como ele era festejado nos enormes e belíssimos terrenos, à beira do rio Reno, da embaixada de Portugal na Alemanha, quando ali era embaixador Manuel Homem de Mello.

Um batalhão de pessoas contratadas para o efeito reforçava os serviços de cozinha da embaixada pra que, abertos os portões, centenas de portugueses que ali acorriam, pudessem matar saudades dos pitéus da Casa Lusitana, regados com um honestíssimo vinho vindo de Portugal num castiço barril que era colocado debaixo de uma árvore. Içava-se a bandeira, cantava-se o Hino, comovidamente, sentidamente. O embaixador dizia palavras simples de boas vindas e de Pátria. E depois, adultos e crianças comiam, bebiam, conviviam umas horas com o pessoal da embaixada e do consulado, sem distâncias escusadas nem ministros em campanha eleitoral prestando-se ao desconchavado jogo dos elogios em bom estilo de banha cobra vendida em feiras, muito prestimosos nisso de ouvirem intrigas partidárias e recebeream cartas venenosas daqueles que, tendo falhado na profissão e até na vida familiar, vivem roídos de inveja e querem, aproveitando o clima de corrupção institucionalizada, abocanhar lugares para os quais não têm o mínimo de preparação. Coisas pequeninas para ministros pequeninos. Era uma festa saudável de todos os portugueses, sem preconceitos nem pirosices. Verdade seja que, naquele tempo, ainda o Pimba não era moda e a carreira diplomática, exigente na admissão e severa na inspecção, era servida por senhores. Manuel Homem de Mello não andava com uma campaínha praticando a vulgaridade de se dizer aristocrata, limitava-se a ser, com modéstia e simplicidade, um fidalgo. E sobre isso, um diplomata que, dominando três ou quatro línguas, bem informado e culto, era constantemente solicitado pelos governos dos países onde representava Portugal a fazer parte de reuniões onde se discutiam assuntos de interesse político.

Encontrei na Europa e no Brasil várias missões diplomáticas portuguesas instaladas de forma condigna porque, no termo da II Guerra Mundial, quando tudo estava ao desbarato, o governo de então teve a pragmática prudência de comprar património a bom preço. Como a bom preço se podia ter comprado no Canadá há 50 anos, ou pelo menos há 40. É claro que um governo, instalado em Lisboa, não pode saber destes pormenores em países lóngínquos. Para isso de informar correctamente, também servem os responsáveis das missões diplomáticas e os deputados.

Voltando à Itália, que é uma emigração velha no Canadá, cheia de força mediática, política e comercial, ocorre-me verificar que, por junto, tem por ano uma procissão de Quinta-Feira Santa que, além de ser amplamente difundida pelos grandes meios de comunicação italianos e canadianos, atrai largos milhares de pessoas às ruas por onde passa. A comunidade italiana não precisa de paradas mal organizadas e de gosto duvidoso para mostrar que existe. E por isso se compreenderá que, no conjunto canadiano, maior visibilidade têm os açorianos que, em passo certo, afincadamente, sem preocupações de poleiro, mantêm tradições tão fortes como o Senhor Santo Cristo, o Senhor da Pedra ou o Senhor Espírito Santo, ou ainda a participação de uma banda de música na parada do Pai Nata, essa que leva ás ruas de Toronto mais de um milhão de pessoas e que confere prestígio a quem nela desfila.

Talvez o maior problema de nós outros, os portugueses, seja esse de não aprendermos nada, em parte nenhuma e com ninguém, por julgarmos, labregamente, que sabemos tudo e que somos os espertos da humanidade. É assim que abundam entre nós aqueles que, em 30 anos ou mais de estadia no estrangeiro, continuam como se ainda vivessem deslumbrados com a ideia de virem a ter apenas aquilo que o dinheiro pode comprar – o que é bem limitado, bem curto, porque o dinheiro não pode comprar cultura, saber estar e altura moral.

Perdemos nestas actividades como perdemos no primeiro jogo do Euro 2004, por inépcia e fanfarronice, pondo a nu a parolice gabarola dos tipos do cachecol que andam pelas comunidades a vender gato por lebre, em vez de tirarem o país do último lugar da escala europeia. A hora é dos medíocres. Ou Portugal acerta o relógio pela hora do futuro construído de forma inteligente ou acaba estrangulado por esta gentinha.

segunda-feira, junho 14, 2004

PETIÇÃO PARA A FISCALIZAÇÃO DA CONSTITUCIONALIDADE DA ÚLTIMA REVISÃO CONSTITUCIONAL


1. É sabido que aquela que esteve para ser a mais minimalista e discreta revisão da nossa Constituição acabou por ser uma das mais significativas e, seguramente, a mais problemática de todas as que até agora se realizaram, quer no plano simbólico, quer no plano substancial.

Referimo-nos, obviamente, às novas disposições aprovadas que autorizam a subordinação política da nossa ordem constitucional ao quadro jurídico da União Europeia, ressalvados os princípios fundamentais do Estado de Direito democrático.

De forma simplificada mas efectiva, referimo-nos, pois, ao espantoso processo que veio permitir que, conquanto a União Europeia seja fiel aos princípios democráticos, as suas normas se imponham no nosso país apesar de, ou mesmo contra, a Constituição Portuguesa.

Entendem os signatários deste documento que tal revisão constitucional, a aguardar ainda promulgação por parte do Senhor Presidente da República, constitui um acto de desvitalização política e de esterilização constitucional, que é politicamente incompreensível e juridicamente inconstitucional.

2. É politicamente incompreensível por inúmeras razões.

Desde logo pela forma como decorreu todo o processo. Não se discute a competência da Assembleia da República para empreender a revisão constitucional, mesmo quando se trate de uma revisão que, no limite, seja amputadora da soberania como esta foi. Porém, a própria Assembleia da República está constitucionalmente sujeita a regras para poder rever a Constituição, sendo nosso entendimento que tais regras não foram respeitadas.

Também o facto de estar investida de poderes constitucionais não desobriga a Assembleia da necessidade de produzir um amplo debate político, sobretudo quando se trate, como é o caso, de matéria da maior relevância. Ora, é patente que esta revisão constitucional foi empreendida com cuidadoso silêncio e com preocupante ocultação de argumentos políticos, resultando num processo meio obscuro que consubstancia, apesar de tudo, um golpe violento na natureza do Estado.

Deste modo, o processo de revisão não foi apenas incompreensível, foi também criticável do ponto de vista da ética e da transparência políticas.

É também politicamente incompreensível porque se tratou de um acto totalmente imprudente. Ao admitir a secundarização do texto fundamental em face das normas comunitárias, o Estado português desarmou-se constitucionalmente perante o processo de integração europeia. Ora, até aqui, o processo de integração tem sido comumente entendido como de progressiva cooperação e, sobretudo mais recentemente, de gradual partilha de soberanias entre Estados, procurando obedecer a um princípio de equilíbrio e a um vector de intergovernamentalidade.

Naturalmente, tal processo não tem sido indiscutível nem isento de espinhos. Porém, qualquer que seja o posicionamento que se tenha nesta matéria da construção europeia, e qualquer que seja o grau de identificação com o processo em curso, facilmente se concordará em que apenas se negoceia a partilha de soberanias quando existe de facto alguma reserva de soberania. O que aconteceu, no entanto, foi que, com esta revisão, tal reserva de soberania constitucional foi sacudida e baldeada como estorvo e inconveniente.

O resultado, perverso, é que sem tal reserva de soberania não teremos, realmente, meio de prosseguir no processo de integração europeia com um mínimo de autonomia constitucional.

Por outro lado, abdicar de qualquer salvaguarda política e jurídica da soberania nacional em face do processo de construção europeia é imprudente e intolerável, mesmo para aqueles que sustentam o projecto pleno de uma Europa federal. É que até estes têm defendido que a susceptibilidade de recuo é a arma das "soberanias" federadas, pelo que também eles foram traídos com a revisão operada.

Vieram alguns explicar, a posteriori, querendo minimizar e desdramatizar o significado da revisão, que já hoje o acervo comunitário se impõe ao direito interno, pelo que as alterações constitucionais não trariam grande novidade. Mas, claro, a ser assim a revisão seria plenamente dispensável por inócua, o que não foi o caso. Além de que sempre sobra uma abissal diferença entre a supremacia do direito comunitário no domínio dos compromissos validamente assumidos no passado, à luz da Constituição Portuguesa, e a supremacia incondicionada do direito comunitário no domínio de todos os compromissos futuros - mesmo daqueles que Portugal não queira assumir.

No entanto, o argumento que mais se insinuou, também apenas a posteriori, foi o de que haveria necessidade de garantir antecipadamente a constitucionalidade de uma futura e eventual constituição europeia, sob pena de exclusão do nosso país desse passo importante que se estaria novamente a desenhar apesar das expectativas frustradas da Convenção europeia. Mas, a ser assim, apenas se percebe melhor que não é possível, nem teórica nem pragmaticamente, fazer coexistir dois legados constitucionais autênticos no mesmo espaço e no mesmo tempo.

Aqueles que cederam a tal preocupação foram vítimas de um excesso de zelo e mais não fizeram que inverter a hierarquia natural de prioridades, prometendo trocar, antecipada e voluntariamente, a actual Constituição Portuguesa por uma vaga promessa de constituição europeia.

Os signatários deste documento discordam abertamente desta perspectiva, alertando para que ela assinala um marco novo no caminho da construção europeia, consumado na perspectiva de admitir o princípio de que a União pode, se for caso disso, fazer-se não com mas contra os Estados europeus.

Reconhecendo, embora, como legítima a posição de todos quantos abertamente perfilham a ideia de criação de um tal Estado europeu, os signatários apresentam-se nos antípodas de tal posição política, não confundindo as patentes mudanças e transformações ao nível do paradigma dos Estados nação com a sua precipitada declaração de óbito, nem muito menos com uma qualquer declaração de guerra contra os actuais Estados.

3. Por outro lado, e independentemente da questão política de fundo, é nossa convicção que a revisão da Constituição foi também juridicamente inconstitucional.

A Constituição da República Portuguesa constitui a máxima expressão normativa da soberania do Estado Português. Isto significa que não existe nenhuma norma jurídica nacional ou internacional que seja superior aos seus princípios e regras fundamentais, já que, se tal viesse a suceder, a Constituição portuguesa deixaria de ser o título jurídico do poder político de um Estado independente, para passar a ser o estatuto de uma entidade meramente autónoma.

O artigo 288º da Constituição impõe que qualquer lei de revisão constitucional deva respeitar, sob pena de inconstitucionalidade material, um conjunto de princípios e regras fundamentais que integram a identidade constitucional.

E, à cabeça desses princípios intangíveis surgem, na alínea a) do referido artigo, os princípios da “independência nacional “ e da “unidade do Estado”, encontrando-se o primeiro consagrado explicitamente no artigo 1º da Constituição quando enuncia que “Portugal é uma República soberana (...)” e no nº 1 do artigo 3º , o qual reza que “A soberania, una e indivisível, reside no povo (...)”.

Deve ainda considerar-se:

Que a Lei que aprovou a sexta revisão constitucional introduziu um novo nº 4 no artigo 8º da Constituição, o qual passou a prever que os tratados que regem a União Europeia, bem como as normas comunitárias derivadas, se aplicam na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, devendo apenas respeitar os “princípios fundamentais do Estado de direito democrático”;

Que o referido nº 4 do artigo 8º permite a interpretação segundo a qual uma directiva ou um simples regulamento da União podem prevalecer sobre qualquer norma da Constituição Portuguesa, com excepção das que consagram os sobreditos “princípios fundamentais do Estado de direito democrático”;

Que a expressão “princípios fundamentais do Estado de direito democrático” não é textualmente equivalente à de “princípios básicos e estruturantes do Estado” que diversos Tribunais Constitucionais, como o alemão e o italiano, têm avançado como limites constitucionais soberanos, inderrogáveis pelo direito comunitário;

Que a noção de “princípios fundamentais do Estado de direito democrático” não abrange, necessariamente, o princípio da independência nacional na organização do poder político, dado que o seu objecto é composto pelos princípios do respeito pelos direitos liberdades e garantias dos cidadãos, sufrágio universal, separação e interdependência de poderes, independência dos tribunais e segurança jurídica, valores que nunca poderiam ser desrespeitados pelas normas da União Europeia;

Que a ser esse o significado dado à expressão “Estado de direito democrático”, semelhante limite aos tratados e às normas comunitárias constituiria uma fórmula inútil, senão redundante, permitindo que qualquer norma do direito comunitário se superiorizasse sobre as disposições da nossa Constituição que enunciam e protegem o núcleo da soberania interna e externa do Estado português;

Que o nº 6 do artigo 7º, introduzido pela mesma revisão, concede ao poder político português um “cheque em branco” para transferir para a União Europeia componentes fundamentais da unidade e indivisibilidade da soberania, que se encontram consagradas no nº 1 do artigo 3º da Constituição, permitindo que o núcleo dessa mesma soberania composta pela política externa, de segurança e de defesa, possa transitar, sem qualquer limite, para a União Europeia;

Que o nº 6 do artigo 7º e o nº 4 do artigo 8º, introduzidos na sexta revisão da Constituição, violam o limite material expresso na alínea a) do artigo 288º da Constituição, dado que permitem que o princípio da independência nacional ou da soberania do Estado venha a ser violado e esvaziado por normas não constitucionais, como as de direito comunitário, de forma a transformar uma República soberana num estado federado ou numa região autónoma;

Que os referidos preceitos são normas “constitucionais inconstitucionais”, porque violam a primeira disposição dos limites materiais à revisão constitucional expressos na alínea a) do artigo 288º - já que pressupõem que uma lei de revisão constitucional possa impor um “duplo processo de revisão”, alterando a identidade fundamental e soberana da Constituição, o que é proibido pela Lei Fundamental – e também porque instituem um processo ad libitum de revisão constitucional supranacional, sem intervenção da Assembleia da República, e em total desrespeito pelos limites temporais, de iniciativa, de aprovação e de promulgação estabelecidos no Título II da Parte IV da Constituição;

Que a Lei de revisão constitucional de 2004, procurando fragmentar e esvaziar o princípio da soberania da República Portuguesa no seu núcleo fundamental, através de normas não constitucionais, nem sequer procura previamente eliminar a alínea a) do artigo 288º da Constituição, podendo incorrer em “fraude à Constituição”, já que procura simuladamente, alterar a identidade da Lei Fundamental à margem dos limites que a mesma impõe;

Que a Lei que aprova a sexta revisão constitucional, na parte que se refere aos artigos 7º e 8º, não é uma genuína Lei de revisão, mas um expediente normativo criador de uma transição constitucional que, depreciando a identidade fundamental da Constituição de 1976, altera a natureza soberana do Estado português e abre caminho a que o mesmo perca os seus atributos mínimos de independência, sem que sequer o povo, titular da soberania, o autorize.

Por todo o exposto, vêm os signatários requerer que o Presidente da República, o Procurador Geral da República e o Provedor de Justiça suscitem respectivamente, ao abrigo das alíneas a), d) e e) do nº 2 do artigo 281º da Constituição, a fiscalização abstracta sucessiva do nº 6 do art.º 7º e do nº 4 do art.º 8º da Lei de Revisão Constitucional aprovada em 2004.


a)

PAULO TEIXEIRA PINTO
JOSÉ MANUEL A. QUINTAS


1ª edição em 7 de Junho de 2004

(Esta PETIÇÃO pode ser subscrita em http://usuarios.lycos.es/reverconstituicao )




sexta-feira, junho 11, 2004

ABSTENÇÃO !

Por Manuel Alves

No início do processo de construção da União Europeia, os estadistas do «Velho Continente» afirmavam querer juntar os povos e as nações europeias numa Comunidade construída na base da igual importância e dignidade dos Estados. Os Estados tinham ainda inteira legitimidade para representar as respectivas democracias nacionais.

Com a criação de um Parlamento Europeu de representação ideológico-partidária, porém, introduziu-se um órgão visando a agregação da representação dos cidadãos por cima dos Estados. Foi na verdade por intermédio da criação do Parlamento europeu que se lançou uma contradição entre duas legitimidades que, não obstante derivarem da mesma fonte – o voto dos cidadãos -, cedo ou tarde, terá que ser superada: a contradição entre uma União Europeia assente nas democracias nacionais e uma União Europeia assente em partidos europeus visando a constituição de um Estado supranacional.

Se aceitamos a existência de um Parlamento no qual as ideologias, os partidos e as facções partidárias se podem e devem sobrepôr aos Estados europeus, é porque aceitamos que a União Europeia se pode obter por intermédio do princípio da desigualdade dos Estados e pela diminuição do princípio de legitimidade das democracias nacionais.

Nas próximas eleições para o Parlamento Europeu serão escolhidos 24 portugueses para uma câmara com 732 eurodeputados, em representação de 350 milhões de cidadãos dos 25 Estados-membros da União. O que estará uma vez mais em causa é a aceitação, ou não, que o triunfo de uma ideologia europeia, de um partido europeu, de uma facção europeia, seja mais importante do que o bem da Nação a que pertencemos.

No próximo dia 13 de Junho, aqueles que não aceitam que as ideologias, os partidos e as facções europeias, se possam sobrepor à legitimidade das democracias nacionais, poderão uma vez mais optar pelo voto nulo, pelo voto branco ou pela abstenção. A abstenção, porém – e todos os eurocratas não escondem quanto a temem... -, é que será a maior adversária das eleições para o Parlamento Europeu.


quinta-feira, junho 10, 2004


............G
.........PORTU
............A
............L


Por Paulo Teixeira Pinto


I. Portugal é, de entre todos os Estados soberanos da Europa, aquele que no espaço primeiro encontrou os seus próprios limites de fronteira terrestre. E será o último a descobrir no tempo as cérceas que delimitam o fim da sua Idade. Sucede que a soberania portuguesa é, ela mesma, não apenas o selo que certifica a sua independência mas também, e em especial, a sua própria causa de ser. A soberania não se discute, como não se discute a vida. Não porque haja Estados eternos, mas porque a soberania nacional, na particular condição de Portugal, é muito mais do que um simples atributo de Estado: é a emanação de uma vontade de Nação. Portugal não é só um Estado soberano. Portugal é um Estado Nacional.

II. Portugal é uma Nação que, de frente para o mar e de costas para terra, descobriu terra para além do mar. Uma Nação que encontrou o oriente indo só para Ocidente, mas que nunca encontrará o Ocidente indo para oriente. Se Portugal virar costas ao mar desvirtuará a sua natureza e desfigurará a sua identidade. Faltando ao encontro com a sua vocação faltaria ao cumprimento da sua missão. A missão de não ser mar mas a água que há em todos os mares. Aquela que se contém inteiramente no primeiro de todos os cálices.


III. Portugal é um ancoradouro onde diversas gentes se encontraram como um só povo que se identifica com uma só língua perante a memória de uma história comum e o sonho de um futuro também comum. Portugal foi porto de partida para a Ilha dos Amores e para o Reino do Prestes João. Mas descobrir o mundo todo não seria nada se esse mundo for só o mítico nada que é tudo. O lugar português não é o da utopia. É o do mundo inteiro. De nada vale ser finis terrae se não se puder ser tottus orbis. Portugal significa universal. Portugal é o Porto do Graal.


IV. Portugal tem por destino a demanda de outros povos. Para com eles viver e com eles repartir o que nós somos. Nunca fomos menos por sermos também os outros. Mas fomos sempre mais quando demos mais. Quanto mais formos outros mais os outros serão também portugueses. A dimensão de um povo não é mensurável pelo número de coisas de que é senhor mas pela intenção e pela intensidade do que seja capaz de dar aos outros povos.

V. Portugal é um Estado e é uma Nação. Mas é também uma Mátria. Terra Mãe de demandas sem fim para no fim voltar ao princípio de outra procura infinita. Porque só o infinito é o tempo e o espaço onde cabe a universalidade. Lugar e momento daqueles que nos outros procuram o encontro consigo mesmos porque não são deste mundo nem desta época. Fizeram-nos assim. Sobrevivemos assim. Seremos ainda assim enquanto a nossa vontade nos permitir continuar assim. Até que sim. Porque o nosso fado não se chama destino mas liberdade. E então a nossa saudade esquecerá o passado e clamará pelo futuro.


dia 10 do mês de Junho de um ano de Sempre



terça-feira, junho 08, 2004

Arqueologia Marítima vs. Caçadores de Tesouros

Conde Nikolaus Sandizell

A História repete-se mais uma vez – a discussão da arqueologia marítima vs. “caçadores de tesouros” faz-nos lembrar a famosa história contada por Luís de Camões acerca do “Velho do Restelo”, quando um pequeno grupo de conservadores, sem qualquer tipo de visão e de conhecimentos, tentou levantar uma polémica no sentido de impedir a Coroa de enviar a sua frota na continuação da epopeia dos descobrimentos. Ignorando a polémica, Portugal tornou-se num dos maiores impérios na história da humanidade! Tão importante lição ... mais de uma vez esquecida – é a de que por vezes temos de assumir pequenos sacrifícios para pudermos atingir grandes objectivos. Ora para realizar um grande objectivo é importante mantermos o olhar na floresta apesar das árvores que nos toldam a vista.

Infelizmente o assunto da arqueologia vs. “caçadores de tesouros” não é tão a preto e branco como nos é feito crer ou como nos possa parecer à primeira vista. Para compreender tão complexa matéria , é necessário analizar:

1. Formas de protecção da herança maritíma;
2. Diferenças de objectivos dos grupos envolvidos;
3. Causas reais de preocupação.

1. Como proteger a herança marítima cultural

A capacidade de protecção da herança marítima nacional depende exclusivamente das capacidades da nação para controlar as suas águas territoriais. Infelizmente, países industrializados e do terceiro mundo são em termos económicos, ainda mundos à parte e, por vezes, substimamos os problemas que muitos dos países em desenvolvimento têm para assegurar, as necessidades básicas como alimentação, saúde e educação para a sua população. A protecção da herança cultural marítima destes países torna-se consequentemente uma segunda prioridade, somente uma de muitas áreas a necessitar de atenção. A maioria destes despreveligiados países, não se conseguem proteger como os “países industrializados” o fazem, os quais têm meios económicos para operar uma marinha, uma guarda costeira ou polícia marítima. A herança marítima cultural destas nações é por isso uma preza fácil para caçadores de tesouros, pescadores sem instrução, mergulhadores desportivos desonestos e sem educação e, ocasionalmente, burocratas corruptos que facilitam a venda ilegal de artefactos recuperados.

O conceito teórico da UNESCO, presente na sua recente “Convenção da Herança Cultural Subaquática” promovendo a protecção dos naufrágios “in situ” (registar a localização do naufrágio mas deixando o local intacto), poderia funcionar em tempo limitado, se medidas de segurança apropriadas, fossem tomadas. Contudo, mesmo nos países desenvolvidos, alguns deles não podem controlar e proteger as suas vastas costas e águas territoriais, a protecção dos seus naufrágios “in-situ” não passa de um “wishful thinking”, com muitos destes locais quer registados quer não registados, a ser destroçados e destruídos a uma velocidade alarmante. E que podem estes países fazer sem peritos arqueológicos, sem fundos apropriados, sem meios para proteger a sua herança marítima?

a. Fechar os olhos e perder a sua herança cultural marítima para “caçadores de tesouros”;

b. Ter esperança de que, talvez um dia, alguma instituição, ONG ou um patrocinador que apareçam e desenvolvam um programa arqueológico que permita o controle a longo termo pela nação ribeirinha;

c. Tomar uma atitude que lhes permita adiantarem-se a “caçadores de tesouros” e salvarem a sua herança marítima com a ajuda de grupos privados de arqueologia marítima, antes que os seus mais importantes naufrágios sejam pilhados, destruídos e perdidos para sempre. Apesar da alternativa b. ser a solução perfeita ela é infelizmente irrealista.

O tempo de execução de um projecto é da maior importância, pelo que concessões institucionais podem ajudar no desenvolvimento de um projecto específico, mas não suportarão ilimitadamente um projecto de larga escala, o qual é muito difícil de definição prévia e pode demorar décadas a ser correctamente executado. A opção c. é pois, a única solução viável. Um grupo auto sustentado e experiente de arqueólogos marítimos podem treinar especialistas locais, fornecer informações compiladas dos naufrágios, estabelecer prioridades nas decisões de intervenção, e gerar rendimento e, assim, como consequência, a herança marítima cultural da nação obterá a desejada protecção a longo termo.

2. A diferença de objectivos dos grupos envolvidos e a necessidade em definir o que é a arquelogia marítima versus “caçadores de tesouros”

O preto e branco da visão fundamentalista dos “Velhos do Restelo” vê somente dois grupos e define-os como “os bons” e os “maus”. Num mundo em que a política tradicional (esquerda e direita) deixou de ser suficiente tivemos de optar pelo meio termo, uma “terceira via”; o equilíbrio entre a consciência social e uma economia saudável.

Se este mesmo compromisso for utilizado na resolução do nosso problema torna-se necessário em primeiro lugar, analizar quem são as partes envolvidas:

- Grupo I – Arqueólogos pagos pelo estado ou patrocinados por instituições estatais (Ex. CNANS ou a Universidade do Texas)
- Grupo II – Arqueólogos não pagos e que trabalham com o único propósito da edição de uma publicação cientifíca (Ex. Margaret Rule ou Mensun Bound)
- Grupo III – Arqueólogos, pagos por uma fundação ou patrocinados de outra forma (Ex. Frank Goddiot)
- Grupo IV – Arqueólogos que trabalham para uma empresa privada, auto sustentada e, cientificamente organizada. (Ex. Arqueonautas S.A.)
- Grupo V – Caçadores de tesouros, portanto ilegais, que trabalham com fins comerciais sem qualquer interesse científico.


A existência destes diferentes grupos leva-nos a reflectir em dois pontos:

a. O financiamento necessário para a condução de um projecto marítimo arqueológico;

b. A capacidade científica para documentar a recuperação de um naufrágio, com a finalidade da sua publicação;

Se a utilização do dinheiro dos contribuintes ou de patrocínios de longo termo não forem uma opção, temos de procurar alternativas comerciais estando atentos à natureza repetitiva das cargas, sejam elas, moedas, porcelanas, armas, objectos comercializáveis ou qualquer outro artefacto. Não existe qualquer dúvida ou discussão de que só é aceitável trabalhar comercialmente com grupos de arqueologia marítima consolidados, e de que todos os achados únicos ou repetidos, classificados por peritos neutrais em arqueologia marítima, como herança cultural marítima permanecam no país para serem expostos em museus nacionais ou para integrarem exposições itinerantes. A venda de objectos repetidos, já representados na herança cultural marítima nacional permite, todavia, o financiamento consequente da protecção da herança marítima nacional – o segundo príncipio juntamente com a recomendação teórica “in-situ” embora contrário à convenção da UNESCO UCH.

Existem alguns conhecidos arqueólogos marítimos independentes com larga experiência, que estão interessados em suportar comercialmente grupos de arqueólogos marítimos, com a condição de que estes grupos:

a – Sejam contractualmente obrigados a que a parte da herança selecionada e a informação científica recolhida permaneça no país onde foi encontrada;

b – Que operem de acordo com uma metodologia arqueológica específica, permitindo a preparação da documentação relativa ao naufrágio em causa, sua localização e os artefactos recuperados.

Os grupos II e IV podem assim trabalhar em conjunto, com melhores resultados para todas as partes envolvidas:

- A nação em causa recuperará a sua herança perdida;
- O grupo privado terá o potencial para pagar aos seus investidores;
- O arqueólogo responsável poderá enriquecer a colecção das suas publicações científicas e aumentar o conhecimento e o lazer do público.


3. As causas reais de preocupação

Para o funcionário público de um país ocidental, empenhado na preservação da herança marítima cultural do seu país e que beneficia de um sistema o qual, através da marinha ou da guarda costeira, permite a protecção da sua herança marítima nacional, é fácil criticar os países mais pobres, os quais vivem uma realidade completamente diferente.

Algumas pessoas oriundas de países de antigos impérios coloniais e que exploraram países do terceiro mundo durante centenas de anos, ainda hoje se arrogam o direito de dizer a estes países como devem conduzir os seus interesses. Pior ainda, algumas destas pessoas estão a tentar com que a herança marítima cultural destes países, a qual pela lei marítima internacional é pertença das nações onde ocorreu o naufrágio, vá para os seus próprios países, reclamando que esses barcos eram barcos de guerra e, consequentemente, sob a soberania da sua bandeira.

Quando acusados muito justamente por estes países, pela sua postura neo-colonialista, reagem sem compreensão e tentam encontrar razões para acusar estes países de estarem errados e que eles “os únicos que são peritos por inteiro” estão certos. Que melhor forma que utilizar o nome da UNESCO e impor uma doutrina em que a única forma correcta é a de (a) a protecção de naufrágios “in-situ” e (b) a proibição da venda de quaisquer objectos recuperados num ambiente marítimo?

Quando da ractificação destas duas regras, essas pessoas estariam então em posição de reclamar a “sua” herança marítima, declarando a outra nação como incapaz na sua protecção – uma vez que estas não jogam de acordo com estas ractificações.

Quando o mundialmente famoso arqueólogo George Bass, em 1979, publicou “O homem que roubou as estrelas” (http://www.abc.se/~pa/publ/stolstar.htm), ao explicar a triste perda de alguns naufrágios para companhias de salvados, que não tinham qualquer noção acerca da importância histórica e cultural destes naufrágios, que vieram a ser completamente destruídos no processo de recuperação de bens valiosos – ele estava cheio de razão.

Hoje – cerca de um quarto de século mais tarde – uma terceira forma está ela própria a estabelecer-se, para o benefício da protecção da herança marítima cultural, em países em desenvolvimento. A vida não ficou mais fácil desde então, e por vezes temos de olhar para além do nosso pequeno mundo e tentar arranjar soluções pragmáticas – que tal lembrar “os Velhos do Restelo”!


Estoril, Junho 2004


DEIXÁ-LOS POUSAR

Carta do Canadá

Por Fernanda Leitão

Semana de Portugal em Toronto. Sessão de abertura no consulado, onde o actual inquilino é um empertigado homem de tão vasta e comprida testa que nos obriga a pensar no conselheiro Pacheco, aquele de que falava o Eça. O presidente duma associação de clubes, conhecido pelo Petinga, faz juz ao nome saltitando, vivo e grosso, a falar um português que nem na estiva já se encontra, todo ele pesporrência de novo-rico que quer meter tudo e todos debaixo dos pés. Na assistência, um ror de bocas atafulhadas de pastéis de bacalhau e petiscadas que chamam ao tinto. Vindo de Portugal para o efeito, e acabadinho de chegar, um ministro pequenino, roliço, desenhadinho, como um porta-chaves, exibe um vozeirão ao discursar em honra de Camões: “eu dantes era alto e espadaúdo, mas a política encolheu-me”. Contente com o seu fino humor, olhou à volta, regalado com as risadas, bem longe de imaginar que aqueles ali são os do costume porque a comunidade não põe os pés nas festas do consulado e está-se borrifando para ministros importados, tenham eles encolhido ou sejam eles de encolher, muito beijoqueiros, muito mesureiros, o olho atento nas remessas de dinheiro para Portugal. Poucas horas depois, no termo de uma distribuição de prémios que deixou a comunidade toda a rir, porque era uma coisa ao jeito de condecorai-vos uns aos outros, o mini-ministro, de peito para fora e tronitruante, disse da sua paixão pelos emigrantes, a sua rendição a Toronto, bela cidade, a sua incondicional e afectuosa gratidão por todos aqueles senhores, fulano, beltrano, cicrano, por acaso todos do mesmo partido da governamental criatura, que em seu entender são inclítos varões, impolutos varões. Exactamente o contrário do que pensamos e dizemos nós que conhecemos os passarões há anos e lidamos aqui com eles. Mas os ministros, mesmo quando são mini, hão-de ter uma sopradela toda especial do Espírito Santo, a ciência vem-lhes de ouvido. Por isso é que são do governo. Palavras não eram ditas, numa limousine de fazer um mafioso rebentar de inveja, desaguou na festança o embaixador. Com o cachecol do Euro 2004. E todos por igual enrolaram o trapo ao pescoço, incluindo o pequenino, que ficou só com os óculos a despontar. E todos eles, governante, acompanhantes, diplomatas, figurões, falaram sempre de futebol, cantaram hossanas à bola e à baliza, juraram fidelidade eterna às pernas dos matulões da selecção nacional, ao mesmo tempo que iam largando uma ou outra alusão à diplomacia económica e ao pilim que se espera dela. Por fim, a parada a desfilar pela Dundas Street fora até ao Bellwoods Park. Ranchos, bandas, bandeiras, clubes, associações, em representação mais ou menos vistosa, mas de encher o olho, o que se chama de levantar a praça e fazer saír a música, era uma loira meio fuínha, em pé num carro descapotável, acenando à multidão, tendo pelas costas um cartaz que começava por anunciar À MULHERES.... A maralha a rir, porque a mulher foi conselheira escolar, a perguntar-lhe se tinha perdido o H pelo caminho ou não sabia da existência dele. Um pagode. Uma troça, a quem a merece pela ignorância atrevida e arrogante, que a cegou a ponto de se julgar preparada para ser deputada federal. O espanto que mostrou pela derrota eleitoral diz bem do estrago que faz a autoestima exacerbada neste establishment, apaparicado pelos partidos de Lisboa e exacrado pela maioria da comunidade. Numa comunidade em que os divertimentos e entertenimentos em português e para portugueses são escassos e sempre os mesmos, esta parada, que podia ser uma afirmação de cultura e elevação, já arrasta à rua não poucos portugueses que apenas ali vão gozar o pratinho e troçar. Houve mesmo quem pelo telefone, horas depois, dissesse no meio de gargalhadas que o melhor da parada tinha sido “a Carmen Miranda grávida”, numa alusão ao barrigudo que se andainou como a mais célebre filha do Marco de Canaveses (depois do Ferreira Torres, claro), desfilando num vistoso carro duma associação de gays e lésbicas de origem portuguesa. Entornada a parada no parque, nas funduras dum vale entre duas colinas, decorreu um arraial que, de ano para ano, vai sendo cada vez mais pimba.

Com esta elevação toda, com esta qualidade cultural toda, já se sabe que o Camões, pretexto da celebração, foi pelo cano.

Grande bruxo foi Mestre Almada-Negreiros quando escreveu um poema que, a certo passo, dizia: “A pátria onde Camões morreu de fome / e onde todos enchem a barriga de Camões”. E de facto. Ele é a Semana de Portugal cada vez mais pelintra, ele é o Instituto Camões a rimar com corrupções, ele é o ministério da Educação que não treina nem inspecciona os professores portugueses no estrangeiro, ele é o ministério dos Negócios Estrangeiros que deu em fabricar “cônsules” a martelo, como o whiskey de Sacavém, ele são governantes e diplomatas de meia tigela que vêm para as comunidades a exibirem-se mais pimbas do que os pimbas, ele é esta rapaziada toda a berrar que defende a língua portuguesa quando, ao fim e ao cabo, anda a esganá-la.

Visitantes partidários e visitados militantes, são como uma nuvem de melgas. Deixá-los pousar. Hão-de caír de gordos. Tudo isto tem uma leitura simples: de ano para ano os servidores do regime, que o mesmo é dizer os servidores dos partidos, têm vindo a descer de qualidade. Estamos em plena fancaria. É o fim.



sábado, junho 05, 2004

OS MÁRTIRES DA GUERRA CIVIL NA ESPANHA

Por Alfonso Carrasco Rouco
Faculdade de Teologia «San Dámaso»
Madrid


A história precedente à guerra civil espanhola, particularmente os fatos sucedidos durante a revolução de 1934, junto com o início de uma destruição sistemática da Igreja, em suas pessoas e nas formas de sua presença pública --desde o patrimônio artístico até suas obras caritativas ou sociais--, desde os primeiros dias da guerra civil, permitiram chegar à conclusão da existência de programas «políticos» objetivando o desaparecimento da Igreja na nova sociedade espanhola.

O primeiro ano da guerra, iniciada julho de 1936, converteu-se assim em um período de perseguição absolutamente extraordinária, em que se buscou a morte daquelas pessoas que eram o sustento da Igreja e, portanto, em primeiro lugar, o clero; mas onde morreram também muitos religiosos e fiéis leigos, particularmente aqueles que se haviam vinculado a movimentos ou atuações apostólicas católicas. Isso sucedeu em um ambiente carregado de ódio e propaganda; mas muitas vezes pôde perceber-se a frieza da decisão de matar alguém só por «ser sacerdote», e mais, se era apreciado e querido pelo povo.

Os números globais dos mortos pelo odium fidei na guerra civil espanhola não são conhecidos com exatidão, devido, sobretudo, à dificuldade do caso de muitos fiéis leigos. A existência de mortos por causas de outro gênero, políticas ou pessoais, dificulta também chegar à precisão plena. É possível, ao contrário, conhecer os números referentes ao clero e aos religiosos: ao menos 4.184 assassinados do clero secular, incluindo seminaristas, 12 bispos e um administrador apostólico, 2.365 religiosos e 283 religiosas. Assim, por exemplo, na diocese de Barbastro, de 140 sacerdotes ficaram 17; em Madri, morreram 30% do clero; em Toledo 48%. Em Valência, foram destruídos total ou parcialmente 2.300 templos; em Barcelona, foram atingidos todos menos dez, etc.

Os processos para o reconhecimento oficial destes mártires da Igreja na Espanha continuam seu curso. Sua presença e testemunho, contudo, fundamentaram o renascer da Igreja após a guerra e aproximaram a sociedade espanhola da graça da reconciliação.

Pois seu testemunho se inscreve muito nitidamente no drama então vivido na Espanha. Muitos sofreram e morreram dedicando suas últimas palavras a Cristo Rei, único verdadeiro Senhor, em contraposição com as pretensões da Europa então e que, na Espanha, em formas comunistas ou anarquistas, pretenderam submeter suas consciências e fazê-las blasfemar de Deus e negar a Jesus Cristo. Outros dedicaram suas últimas palavras precisamente à misericórdia e ao perdão, em imitação do exemplo dado por Cristo na cruz e seguido já pelo primeiro mártir, Santo Estevão. Muitos testemunharam até o final seu amor à própria vocação e à Igreja, não querendo abandonar sua missão, permanecendo ao lado de seus irmãos no perigo, despedindo-se deles com fé e esperança firmíssima de encontrar-se de novo na vida verdadeira dos céus.

Em tudo isso, deram de muitos modos o testemunho maior de amor ao Senhor, pondo de manifesto a grandeza de sua graça, que triunfava em sua humana debilidade, assim como a profundidade das raízes de sua fé, que pôde florescer assim na perseguição e cuja fortaleza confortou e sustentou a fé de muitos outros. E deram um testemunho decisivo de amor aos irmãos, aos amigos e aos inimigos. Deste modo, seu martírio se converteu em uma luz extraordinariamente necessária para que a Igreja e, com ela, a sociedade espanhola encontrassem em meio de tão grande obscuridade o caminho da reconciliação e da paz.

Esta multidão de mártires constitui até o dia de hoje para a Igreja na Espanha motivo de grandíssima alegria e de agradecimento ao Senhor, que salva os simples e humildes, enaltecendo-os de modo admirável; que levanta o desvalido, humilhado, dolorido e morto à glória maior, unindo-o a Ele mesmo; a pedra que rejeitaram os construtores é agora a pedra angular, na edificação da verdadeira cidade dos homens, a Jerusalém que vem de cima, lugar de liberdade e de vida vitoriosa sobre a morte.


terça-feira, junho 01, 2004

EM MEMÓRIA DO RODRIGO EMÍLIO

por Fernanda Leitão

Soube da morte do Rodrigo Emílio por uma (quase lacónica) notícia num daqueles jornais diários de Lisboa que leio todas as manhãs, muito cedo, na internet, e me servem de bica em terra longínqua de amaricados expressos, alheios a fado porque colaços de Traviatas. Foi um choque tremendo, um desgosto arrasador, de que mal me recompus ainda, pois nem sequer sabia o Rodrigo doente.

Avesso a relógios, madraço para epístolas, nutrindo por máquinas e tecnologias um ódio emoldurado em revelador silêncio, num contraponto absoluto a este jeito de me servir de quantas tecnologias me satisfaçam a pressa e a preguiça, quase que vestida de papel de jornal, o Rodrigo e eu levámos os últimos 30 anos, esses que foram de desespero nosso e desgraça de Pátria, a marcar e a falhar encontros logo desde o primeiro, no bar do Hotel Britânia, onde sequei umas horas à espera do princês. Para no dia seguinte, na redacção do Templário, ouvir o saudoso egenheiro Luís Aguiar, o que deixou memória da infâmia descolonizadora, quase paternal, quase a ralhar-me, porque o Rodrigo, coitadinho, tinha rabujado à minha espera noutro lugar. O grande despassarado. Naquele tempo não havia telemóveis, e que os houvesse, não éramos nós a alinhar nisso por sermos de qualidade de perdermos tudo como se tudo fossem guarda-chuvas.

Mas nunca nos zangávamos, felizes por estarmos certos de que estávamos de pedra e cal naquilo que era importante: a Pátria, Deus, a Amizade.

Depois duns anos bem puxados no Canadá, onde pedi asilo político e acabei por ficar, com cidadania e passaporte por bondade da Raínha Isabel II e da Constituição que Pierre Trudeau tratou de referendar, comecei a ir uma vez ou outra a Portugal. Para matar saudades, não será bem o termo, porque as saudades é que matam. E como dizia o Rodrigo, também é de Pátria que eu morro, embora para esse mal não haja médico nem referência no cardápio das doenças mortais. Digamos que vou ver o estrago e tentar perceber se ainda há ponta por onde se pegue à situação que a “Repulha” nos criou. Pelo meio, uns bons abraços que nunca sei se são os últimos.

Como foram os que dei ao Rodrigo Emílio na última noite de 1998. Andava numa de vou-não-vou quando recebi um bilhete do poeta a clamar que tínhamos de nos encontrar. Era quase Natal.

Meti-me ao caminho e marquei econtro com o Rodrigo Emílio, na última noite do ano, na Cova da Iria. Lá nos encontrámos, mais o Vasco Sampayo, que também Deus já levou. Ficámos hospedados no Exército Azul, meu poiso habitual. Estivemos lado a lado, ombro a ombro, como os soldados, e mudos, e tomados de grande emoção, na Missa do Galo da Basílica. Depois, a convite do reitor do Santuário, fomos fazer uma ceia frugal, e quentinha, nas Carmelitas. Por fim, quedámo-nos na Capelinha por um bocado. E de lá palmilhámos o regresso à hospedaria, debaixo de chuva inclemente que todo aquele dia e noite não parou. Eu estava um bocado surpreendida com o ar envelhecido do Rodrigo, bem mais novo do que eu, mas tratei de me apaziguar com a lembrança dum conselho que me deu há anos um brutamontes que andou comigo no Colégio de Tomar, que era casa de corrécios e pegadores de toiros, em bom e perfeito sotaque alentejano, esse que me disse: “trata de te veres ao espelho que já não te admiras quando vês a gente”.

O dia de Ano Novo veio soalheiro, radioso, e nós parecíamos remoçados pela noite bem dormida. Dali rodámos para terras de Ourém, onde a minha gente nos esperava, e a outros amigos meus idos de Lisboa, com lauto almoço na vasta e garrida adega. O que o Rodrigo gostou! E quanto conversámos pelo dia fora. À noitinha fomos de longada para Lisboa com os amigos, em casa de quem o Rodrigo acabou por passar uns dias porque eu tenho uns amigos que lêem pela cartilha do amigo do meu amigo, meu amigo é.

Foi assim que pudemos ir ao habitual almoço de monárquicos, à segunda-feira, na Sociedade de Geografia, de que fui presença certa durante tantos anos. Foi a última vez que vi o Vasco Sampayo e o Dr. Mário Saraiva. E o Rodrigo Emílio. Ainda ali todos lembrámos o Prof. Jacinto Ferreira, o Amândio César, o António Lino, o Alberto de Lemos.

“Vivos ou defuntos / que o céu nos encontre”, disse o Rodrigo Emílio num poema precioso que me ofereceu. Havemos de encontrar-nos no céu – onde não relógio, nem calendário, nem outras mazelas do mundo.

1 de Junho de 2004

Toronto





À FERNANDA LEITÃO
que acaba e publicar TRÊS TEMPOS

aerograma lírico de RODRIGO EMÍLIO

Esta voz
que nos vem
do Canadá,
lutou por nós,
bateu-se bem.
Perdurará.

Foi uma chama
de fé, no mapa
da derrocada;
e clarim, até:
clarão d´alvorada!


- É uma dama
de capa
e espada.
Lá cama,
papa
e roupa lavada
na CEE,
não são calçada
para a passada
do seu pé.

Outra é a gama
da sua harpa;
outra, a toada.
- Só e de pé,
é uma dama
de capa
e espada.

Detrás de si, traz
-sempre rapaz...,
e muito em segredo -
a sombra do meu velho Tomaz
de Figueiredo,
a sacar da caneta,
a ripar do papel,
a embeber-se com ele
no fel do tinteiro
e, como o Pimenta,
a arriscar a pele
p´lo Senhor Dom Miguel
e por Paiva Couceiro!...
Que mundos
imundos
tem tal madrepérola
topado defronte...!

Por isso, dá urros
de génio; e dá murros...
Por isso, anda a monte,
E a dar com os untos
Nos ossos de muitos...

Daí que reponte,
por mais e mais duros
que sejam os rumos
que a Terra lhe apronte...!

Mas surdos e mudos
é o que hoje gera
todo o horizonte...

- Vivos ou defuntos
que o céu nos encontre,
aqui juro, a pés juntos,
que estaremos juntos
em Évora-Monte!

... E até pode ser que venha a calhar
num outro lugar...

(Tomara, tomara que fosse em Tomar...!

7 de Fevereiro de 1992
(publicado no NOTÍCIAS DE GUIMARÃES)