quinta-feira, dezembro 01, 2011

Dom Duarte de Bragança - Mensagem do 1º de Dezembro de 2011



Portugal atravessa uma das maiores crises da sua longa vida. Crise que, disfarçada por enganosas facilidades, foi silenciosamente avançando assumindo hoje consequências dolorosas para as pessoas, famílias e empresas. A soberania de Portugal está gravemente ameaçada. A História, na crueza dos seus factos, revela-nos que, sempre que o País ficou enfraquecido, aumentou a vulnerabilidade à perda da sua Independência. Até a razão por que hoje aqui nos encontramos, comemorando a Restauração da Independência de Portugal, pretende, por alguns, ser desvalorizada face à ameaça de extinção do feriado evocativo do Dia que mais devia unir todos os portugueses. Sinal dos tempos…

A actual e humilhante dependência de Portugal dos credores internacionais é comparável à que resultou da crise financeira de 1890-1892, com tão graves consequências para a Nação e que levou ao fim do Regime da nossa Monarquia Democrática.

Tão importante como resolver a complexa situação interna que exige inevitáveis medidas de austeridade, é analisar as razões que nos levaram ao estado em que hoje nos encontramos. Torna-se urgente proceder, através de um amplo debate nacional, a uma rigorosa e descomplexada análise dos modelos económico e político que estiveram na origem do depauperamento do Estado. Cada vez é mais notório que os portugueses não se revêem no modelo de representatividade política em vigor. Será que o Povo se identifica com os seus formais representantes? Será que a nossa Democracia deverá ficar confinada a um modelo que já demonstrou não ser suficiente e eficaz? Porque não considerar outras formas de representação popular complementares, através de outro tipo de representantes mais directamente relacionadas com a população, por exemplo, oriundos dos Municípios, modelo este com raízes profundas nas tradições históricas e culturais de Portugal? 

Também no campo económico, necessitamos trabalhar para melhorarmos a nossa auto-suficiência, através de estímulos e incentivos para o desenvolvimento da indústria nacional e da recuperação prioritária das actividades agrícolas e relacionadas com o Mar. É inaceitável e perigoso que a maior parte dos alimentos que consumimos venha do estrangeiro!

Como repetidamente tenho alertado em anteriores Mensagens e entrevistas, no actual contexto, o aprofundamento consequente das relações culturais e económicas entre os países lusófonos, mais do que um objectivo, constitui uma verdadeira necessidade estratégica que, por natural, reúne todas as condições quer para o sucesso do desenvolvimento dos seus Estados quer para o aumento do bem-estar das suas populações. Do muito que se pode fazer neste domínio cito como exemplo a criação de um espaço económico comum aos países da CPLP, integrando a troca de bens produzidos no seu âmbito e o intercâmbio de jovens universitários ou em formação profissional. Acredito que CPLP deveria evoluir para uma Confederação de Estados Lusófonos. 

Antes da crise económica e financeira, já se encontrava instalada uma crise de ordem moral e ideológica. Os tempos são difíceis mas poderão ser mais facilmente suportáveis se os portugueses estiverem cientes de que o esforço que lhes está a ser exigido se justifica para salvar a Pátria.

É preciso mudar o estilo de vida que artificialmente foi cultivado nas últimas décadas e adequarmos os nossos hábitos à realidade do País.  Exige-se, para tal, uma rigorosa responsabilização moral que começa pelos Governantes que, mais do que nunca, devem esclarecer com verdade as suas acções, começando por informar a Nação sobre o concreto destino dos avultados financiamentos resultantes dos compromissos assumidos pelo Estado Português ao abrigo do Plano de Assistência Económica e Financeira – “As boas contas fazem os bons amigos!”

Perante a herança que as próximas gerações vão receber, é nosso dever, no mínimo, contribuir para lhes facultar as melhores ferramentas para o seu futuro e o de Portugal: educando-os e formando-os com respeito pelos princípios da honra, da responsabilidade e do amor à Pátria.

A dúvida que hoje se coloca não é a de que País vamos deixar aos nossos filhos mas sim que filhos devemos deixar ao nosso País.

Confio na força anímica que, como Povo, sempre soubemos revelar perante os desafios mais difíceis. Especialmente na nossa juventude, que bem preparada, com a sua criatividade, generosidade e determinação, conseguirá restaurar Portugal!

Acredito que os nossos governantes tirem conclusões dos erros passados e que tenham a inteligência e vontade de corrigir o que ainda for possível emendar colocando Portugal acima dos interesses partidários. Assim Deus nos ajude!

 O Chefe da Casa Real portuguesa, D. Duarte Duque de Bragança

sexta-feira, novembro 11, 2011

Aos realistas portugueses - breves reflexões sobre a conjuntura actual


Nesta conjuntura, cumpre-nos continuar a mobilizar os portugueses para a defesa da autonomia do Estado português, o que hoje significa pugnarmos pela saída da Zona Euro e do buraco mediterrânico a que nos destinaram.  
Não podemos continuar agarrados à miragem de uma contrição dos partidos pecadores, exigindo-se-nos a reivindicação clara de um programa de restauração da República em bases populares.
No caso de um súbito agravamento da crise nacional, temos hoje presidentes de Junta de Freguesia eleitos que podem vir a assumir uma ruptura com as oligarquias partidárias reunindo em Assembleia Nacional Constituinte.

I.

O período da hegemonia mundial das potências europeias, iniciado em 1500, entrou em colapso durante as chamadas “descolonizações”, desde o Médio Oriente até à África (1955-1975), para vir a ficar aparentemente concluído, em 1991, com a desagregação da URSS. Porém, dois anos depois, passando a vigorar o tratado de Maastricht, levantou-se a possibilidade da UE poder vir a ter capacidade para contrabalançar a hegemonia dos EUA. Os EUA tinham já deixado de reprimir os nacionalismos europeus e podemos estar agora a assistir ao estertor final do projecto de Maastricht.

Com o tratado de Maastricht, o “projecto Europeu” passou a estar sob o domínio do “directório franco-alemão”, mas é possível que a actual crise da Zona Euro, que não é apenas financeira e económica, venha a danificar seriamente a sua coesão. O que me parece hoje claro, é que a actual crise da Zona Euro levou o projecto de Maastricht para um abismo do qual só muito dificilmente sairá incólume.

Com o fim do projecto de Maastricht, uma nova era mundial pós-europeia pode vir a ter condições para despontar, mas estamos ainda em fase de transição muito indefinida e incerta: os EUA continuam a ser a mais poderosa potência mundial, mas sem ser omnipotente; a Rússia está a recuperar do colapso da URSS, mas continua em busca de um lugar correspondente ao seu poderio; a China tem vindo a emergir no seio de um sistema económico-financeiro e político internacional que não controla; o Brasil e a Índia estão também em emergência, mas permanecem algo indefinidos quanto à configuração de um novo equilíbrio global de poderes.

No espaço da Eurásia, e em particular na península a que chamam “Europa”, não é ainda claro o que vai resultar do colapso do projecto de Maastricht.

A criação da Zona Euro surgiu na sequência lógica de Maastricht, mas foi criada para mitigar os receios da França perante a reunificação alemã. A ideia era a de que a França poderia beneficiar da riqueza de uma Alemanha que não voltaria a estar em posição de ferir os interesses dos outros Estados europeus. A Alemanha reunificou-se e, não obstante a sua retórica em prol do “projecto Europeu”, começou a actuar como um verdadeiro Estado, não gostando que outros falem por si e menos ainda que obtenham vantagens à sua custa. A partir de 2008, ao começar a desenhar-se a crise das dívidas soberanas, a Alemanha passou a utilizar a sua superior posição económica e financeira para obter vantagens políticas no quadro institucional da UE (através do FEEF), com claros desígnios de intrusão nas soberanias residuais dos Estados da Zona Euro. Para os Estados periféricos, permanecer na Zona Euro significa hoje a aceitação de uma ditadura orçamental definida em Berlim, uma austeridade que conduz à sua asfixia económica e a posterior venda, a preço de saldo, de participações em empresas estratégicas. Nas últimas semanas, com o agudizar das crises na Grécia e na Itália, a intrusão e a chantagem subiram de conteúdo e de tom: os governos dos periféricos terão de ser de tecnocratas, em “união nacional”, sob pena de uma “Europa a duas velocidades”. Arcus nimis intensus rumpitur, diziam os latinos - o arco muito retesado quebra.

Entretanto, mesmo que o arco não venha a quebrar, a Alemanha tem estado em claro processo de acomodação com uma Rússia que, depois da guerra na Georgia, espreita oportunidades para a construção da “Casa Comum Europeia” anunciada por Gorbatchov na “Perestroika”. Qualquer que venha a ser o desfecho da presente crise da Zona Euro, é muito provável que o eixo do poder das potências Europeias se desloque para Leste: o eixo franco-germânico tenderá a perder terreno face ao eixo germano-russo.

A França, que queria prender a Alemanha através do Euro, está assim hoje numa encruzilhada e tem permanecido uma incógnita, mas pode vir a sair da esfera alemã e, apoiando-se no Grupo de Visegrado e na Espanha, voltar-se-á para o Mediterrâneo.

A Europa está a caminhar para novos equilíbrios, havendo dois outros Estados com capacidade para influenciar a sua balança de poderes: a Polónia e o Reino Unido. A Polónia tem um mercado interno suficiente para não se deixar submeter à esfera de influência alemã e vai decerto continuar a buscar aliados no Atlântico. O Reino Unido não vai deixar de querer manter-se como uma potência com aptidão para uma projecção global e vai decerto contar com a “Aliança do Norte”.

Na nova configuração de poderes em emergência na Europa, a situação de Portugal na península ibérica tenderá a tornar-se cada vez mais periclitante. A Espanha, muito fortalecida interna e geopoliticamente pelo restabelecimento da Instituição Real na chefia do Estado, vai continuar a ser uma potência com capacidade para se projectar simultaneamente no Mediterrâneo e no Atlântico: no Mediterrâneo, não deverá hostilizar a França; no Atlântico, tenderá a explorar cada vez mais as nossas fraquezas. Após a crise, creio que a Espanha se vai manter com capacidade para vir a integrar económica e politicamente Portugal e mesmo para vir a concorrer com o Brasil no espaço económico da lusofonia.

Em obediência ao projecto de Maastricht, os principais partidos da área da governação (PS e PSD), submetidos às respectivas internacionais partidárias, aceitaram que Portugal ficasse integrado na periferia mediterrânica da Europa, como satélite da Espanha, se bem que numa península ibérica ideal e integralmente submetida a Bruxelas.

Nas últimas décadas, a desatenção de sucessivos governos à sustentabilidade do Estado português, permitindo a destruição de parte substancial da nossa economia (agricultura e indústria) a par de um crescente endividamento externo, conduziram-nos a uma situação de extrema fragilidade. O Estado português está hoje, em obediência ao programa de governo da “troika”, no caminho do suicídio.

A política e a acção dos partidos da área da governação está a pôr em causa a sustentação do Estado português, mas a verdade é que a fronteira com a Espanha ainda é visível nos mapas e, mais importante, continua a haver uma clara maioria de portugueses favorável à nossa autonomia e liberdade.

Nesta conjuntura, creio que nos cumpre continuar a mobilizar os portugueses para a defesa da autonomia do Estado português, o que hoje significa, em termos práticos, pugnarmos pela saída de Portugal da Zona Euro e do buraco mediterrânico a que nos destinaram.

Os realistas portugueses têm que tomar consciência de que não haverá uma Restauração de Portugal sem que antes se realize a restauração da República. A restauração da República é condição prévia, e a base mais segura, a partir da qual os portugueses podem vir a recolocar a Instituição Real na chefia do Estado. Tal como escrevi em 1996 (in “Consciência Nacional”), por ocasião do baptismo do Príncipe Afonso de Santa Maria, “a virtude de uma República restaurada será a de esta ser capaz de se exprimir nos seus mais fundos anseios e aspirações, escolhendo dentre si os seus representantes e pondo à cabeça a sua instituição mais representativa — a Realeza. Só colmatando esse duplo défice de representação — na base e no topo — se poderá fazer a restauração de Portugal.”

O edifício do Portugal Restaurado ter-se-á que levantar começando pelos alicerces; a restauração da República é a nossa prioridade máxima. Se os portugueses não conseguirem restaurar a república, isto é, se o povo organizado não conseguir subtrair o controlo do Estado ao domínio absoluto das oligarquias partidárias, o Estado português pode vir a desaparecer na voragem dos acontecimentos, em submissão total a poderes estrangeiros.

Não excluo a hipótese de uma implosão dos partidos do regime, mas não podemos perder de vista  que, no essencial, os partidos políticos em Portugal têm sempre olhado primeiro para o seu próprio interesse e, só depois, muito depois, para o interesse dos portugueses. É o que a História destes dois últimos séculos nos ensina e que nos cumpre divulgar mais e melhor.


II

O processo de apropriação do Estado pelas oligarquias partidárias iniciou-se na década de 1820, acabando por vencer e consolidar-se após duas intervenções militares estrangeiras (guerras civis de 1831-34 e 1846-47). O primeiro saldo foi terrível: a perda do Brasil, milhares de mortos e a economia nacional destroçada.

Depois de 1851, na chamada “Regeneração”, as oligarquias dos partidos tinham já quase domínio absoluto sobre o Estado. A política dos “melhoramentos materiais” – durante o Fontismo - , quanto à substância e quanto aos efeitos, não foi muito diferente da política do Cavaquismo que marcou estas últimas décadas de integração europeia. Como é que as oligarquias políticas do período da “Regeneração” resolveram as crises financeiras da segunda metade do século XIX? Em verdade, não as resolveram, mas aproveitaram-nas para virem a desenvencilhar-se, em 1910, do último obstáculo ao seu domínio absoluto do Estado - a Instituição Real.

Seguiram-se os anos de “balbúrdia sanguinolenta” da 1ª República profetizados por Eça de Queirós, até que a “Grande Depressão” levou as oligarquias partidárias a fundirem-se num só partido e a institucionalizarem, na prática, uma Ditadura. O problema das finanças públicas ficou então resolvido, mas sem libertar a sociedade civil do espartilho do Estado.

O segundo pós-guerra ofereceu às oligarquias, reunidas sob a protecção de um autocrata, óptimas oportunidades para negócios e excelentes condições para o desenvolvimento da economia, mas persistiram atados a uma visão sem futuro, acabando por desbaratar séculos de vivência ultramarina na miragem de uma “Nação Una” de Minho a Timor. Cumpre-nos lembrar que, na década de 50, ao recusarem o restabelecimento da Instituição Real na Chefia do Estado, não só travaram o lançamento de uma Comunidade de Estados Lusófonos – ideia que, em 1959, D. Duarte Nuno de Bragança, apoiou expressamente - como colocaram os territórios ultramarinos sob administração portuguesa à mercê de antigos e insaciáveis apetites estrangeiros.

Após a derrota de Portugal na ONU, do golpe de Estado em Lisboa e do subsequente abandono do Ultramar, as oligarquias conseguiram firmar-se no retorno ao pluripartidarismo, agora em subserviente obediência às centrais político-ideológicas europeias. O resultado da sua acção governativa nas últimas décadas, ficou nestes últimos anos à vista de todos, provocando a indignação dos portugueses, que têm vindo a deixar de votar, ou a anular o voto, tanto nas eleições presidenciais como nas eleições parlamentares.


III

A crise de legitimidade do actual regime partidocrático é insofismável, atingindo hoje a consciência da maioria dos portugueses. Julgo que não podemos continuar agarrados à miragem de uma contrição dos partidos pecadores, exigindo-se-nos a reivindicação clara de um programa de restauração da República em bases populares.



Nos últimos anos, várias personalidades oriundas do próprio regime têm vindo a público pugnar por alterações no sistema de representação política, reclamando quer o estabelecimento de círculos uninominais quer o fim do monopólio da representação por intermédios dos partidos ideológicos.

Em abstracto, tendo apenas por base o princípio da aproximação entre eleitos e eleitores, a reivindicação dos círculos uninominais tem pertinência, mas não podemos perder de vista que uma representação exclusivamente baseada em círculos uninominais, acarretaria uma diminuição do pluralismo ideológico e, após dois séculos de tão forte centralismo estatal em regime oligárquico, poderia vir a propiciar a disseminação de caciquismos de base local ou regional.

Creio que nos devemos centrar na luta pelo fim do monopólio da representação por intermédio de partidos ideológicos, colocando-a na obediência ao princípio da subordinação do sufrágio inorgânico ao sufrágio orgânico. Em concreto, entendo que se deve pugnar pela subordinação da representação dos partidos ideológicos (sufrágio inorgânico, universal, de preferência em círculo único) a uma representação proveniente dos municípios (sufrágio orgânico, local).

Na minha perspectiva, a República poderá vir a ser restaurada através de um sistema bicamaral de representação, com uma Câmara Baixa de partidos político-ideológicos e uma Câmara Alta de representação dos municípios. A Câmara Baixa deverá ser o órgão legislativo e a Câmara Alta o órgão referendário das leis gerais do Estado, dos programas de governo e dos orçamentos. Em palavras simples e directas, direi que se trata de forçar os partidos político-ideológicos a encontrarem soluções que respondam aos anseios e às necessidades do país real representado através dos seus Municípios. Impõe-se pôr fim a este ciclo de destruição nacional, no qual os políticos dos partidos se têm limitado a procurar seduzir a massa ignara dos que ainda votam.

Estando ainda muito disseminada a superstição do sufrágio, julgo que a escolha dos representantes dos Municípios para a Câmara Alta poderá vir a ser feita por uma eleição realizada entre os presidentes de Junta de Freguesia, mas haveria vantagem em disseminar a memória das nossas antigas práticas de democracia concelhia, em que os pelouros de administração eram sorteados entre os seus homens-bons. O ideal seria que a referida Câmara Alta viesse a ser constituída por presidentes de Junta de Freguesia sorteados nos respectivos Municípios. Os actuais presidentes de Junta de Freguesia, que correspondem afinal aos nossos antigos homens-bons dos Concelhos, poderiam também vir a fazer entre si o sorteio dos órgãos de administração municipal, distrital ou regional.


Em dois séculos de História, a exclusividade do sufrágio inorgânico e o monopólio da representação por intermédio de partidos ideológicos, já deu bastas provas de que não é capaz de servir o bem comum dos portugueses.


IV

A exemplo do que tem vindo a acontecer na Grécia, a crise da Zona Euro pode também vir a provocar em Portugal graves problemas de ordem pública. Não é de excluir que, com o aprofundar da crise, venham a surgir tumultos, situações de desobediência civil e mesmo acções violentas concertadas, propiciadoras de situações insurrecionais.

Em tal ambiente, e sendo a  via referendária ou plebiscitária a que tem a maior e a mais expedita capacidade de resolução nas grandes questões do Estado, não é de excluir que as oligarquias políticas a venham a utilizar para uma entrega aberta ou dissimulada a centros de poder estrangeiros: os referendos são em regra ganhos por quem detém o poder no Estado e/ou nos meios de comunicação. Eis uma razão acrescida para insistir nas virtudes da democracia orgânica e da representação de base municipal: no caso de um súbito agravamento da crise nacional, temos hoje presidentes de Junta de Freguesia eleitos que podem vir a assumir uma ruptura com as oligarquias partidárias reunindo em Assembleia Nacional Constituinte.

Restaurada a República, isto é, libertada a República do monopólio da representação por intermédio de partidos, confio que a nação portuguesa, de novo senhora dos seus destinos, compreenderá  e reclamará a Instituição Real para a chefia do Estado, para assumir as supremas magistraturas da Justiça, Forças Armadas e Diplomacia.

Com a Instituição Real na Chefia do Estado, não só asseguraremos a nossa esplêndida fronteira com a Espanha como estaremos em condições de lançar em sólidas bases histórico-culturais uma fecunda Confederação de Estados Lusófonos.


11 de Novembro de 2011

José Manuel Quintas



terça-feira, agosto 16, 2011

Duas notas do diário de J. F. Rivera Martins de Carvalho


13 de Junho de 1964

«O integralismo era obrigado a escolher entre diferentes tradições».

A crítica de R. P. (1) acerta em cheio. Aliás, já há cerca de quinze anos o escrevi (num caderno).
A minha ideia de então era, se bem me lembra, a de que a História servia sobretudo para esclarecer a essência profunda de cada instituição – Assim teríamos para estudarmos o Município, que determinar qual a tradição municipal; assim, nos sindicatos; assim, na Universidade - sem nunca se poder excluir um período qualquer por não ser espontâneo (iluminismos, liberalismo, república). Para bem ou para mal, todos os períodos históricos conformaram os «factos» de hoje — e são eles que interessa apreender.
Aliás, fazer remontar o estrangeirismo a Renascimento, como o faz P. Rebelo (2), é provar por absurdo que o caminho está errado. Desvios à tradição datados de há quatro séculos são também uma tradição.
E porquê o Renascimento? Porque não os legistas da escola bolonhesa, cheios de noções «imperiais» do poder régio, tão alheio às tradições godas e feudais? Teríamos recuado quase um século e meio em relação ao Renascimento mas teríamos também «excomungado» João das Regras e as Ordenações Afonsinas...
*
Mas a esta luz que fica do Integralismo?
A esta luz, o IL (3) foi o primeiro movimento político português que foi Monárquico, isto é, que defendeu conscientemente a verdade política do princípio do poder pessoal de um rei hereditário.
Foi o primeiro movimento político português que defendeu conscientemente a primazia do facto sobre a ideologia, a primazia da natureza social sobre os sistemas.
Foi o primeiro movimento político português que acusou os defeitos do parlamentarismo sem lhe opor como alternativa o domínio totalitário de uma ideologia oficial, ou o poder pessoal de um César; que buscou realizar a necessária eficácia do governo, procurando não lhe sacrificar as liberdades individuais, nem a genuinidade da representação nacional.
A esta luz o Integralismo está hoje tão vivo como há 50 anos.
É a esta luz-que sou integralista.

(1) Raúl Proença 
(2) Pequito Rebelo 
(3) Integralismo Lusitano


  • Rivera Martins de Carvalho in Diário Político e outras páginas. Biblioteca do Pensamento Político, 1971.

José Fernando Rivera Martins de Carvalho (1927-1964)

José Fernando Rivera Martins de Carvalho nasceu em Madrid a 14 de Maio de 1927, mas logo com 15 dias, veio viver para Portugal.
Licenciou-se em Direito com 19 valores, na Universidade de Lisboa, em 1949. Especializou-se em Direito Internacional em Cambridge e Milão.
Exerceu a advocacia durante dois anos. Foi director geral do Banco Português do Atlântico desde 1959.
Casou em 26 de Setembro de 1959 e teve três filhos.
Faleceu num acidente de aviação, perto de Braga, a 15 de Agosto de 1964, com 37 anos de idade.
A sua acção religiosa desenvolveu-se nas Conferências de S. Vicente de Paulo na J.E.C. (de que foi Presidente Geral) e na revista FLAMA, de que foi um dos fundadores.
No plano científico, devem-se-lhe valiosos estudos jurídicos e económicos dispersos por revistas e jornais portugueses e estrangeiros.
No plano cultural, foi um dos fundadores da Juventude Musical Portuguesa e do Centro Nacional de Cultura (a que chegou a presidir) e publicou, sob o pseudónimo de José Pinto de Miranda, numerosos artigos de crítica musical e alguma obra poética.
No campo da Política, foi dos mais assíduos colaboradores da “Cidade Nova”, participou em actividades do Centro de Cultura Popular e pertenceu-lhe a iniciativa e o principal esforço organizador do Instituto António Sardinha.
À terra dos seus avós — Cinfães — dedicou grande parte do seu espírito de servir.

(Da badana do livro póstumo “ Diário Político e outras páginas” – Biblioteca do Pensamento Político, 1971.)

terça-feira, agosto 02, 2011

Burra me confesso


CARTA DO CANADÁ
por Fernanda Leitão

            No tempo em que era primeiro ministro,  Cavaco Silva acabou com a agricultura e as pescas em troca de ficar sentado em cima de uma pipa de massa vinda daquele clube que deu origem à  União Europeia. Muitos lavradores e pescadores foram pagos  para não exercerem  a sua arte. Foram queimados barcos e as terras ficaram  ao abandono,um pouco  por toda a parte.  O  mato cresceu desarvorado entre pinheiros.  A desertificação  do interior do país aconteceu. Foi o  tempo em que os portugueses que não emigraram começaram a consumir frutas e vegetais vindos de Espanha e outros países da Europa, enquanto iam mirando autoestradas por todo o território, asfalto a dar com um pau  e paquidermes arquitectónicos que o tempo viria a transformar em armazéns de cultura.  Ou nem por isso.
     Agora,  catapultado a venerando no Palácio de Belém,  Cavaco  Silva desdobra-se em apelos ao regresso à agricultura,  à floresta  e às pescas,  sublinhando de modo dramático  a urgência do repovoamento das muitas aldeias abandonadas.  Não  evocou as suas posições passadas  por amor à coerência: é que veio ao  mundo  com o glorioso destino de nunca ter dúvidas e nunca se enganar.  Assim  o declarou urbi et orbi  e o povo, sereno,  compreende.
     No tempo em que era primeiro ministro,  Cavaco Silva acabou com  o escudo e entronizou o euro  por entre hossanas e aleluias  à  União Europeia. Sem reticências,  preocupações ou dúvidas. E sem perguntar aos portugueses se queriam  a nova moeda.  Agora,  sempre coerente, corajoso e oportuno,  critica a União Europeia e louva as moedas nacionais que se podiam desvalorizar em função de interesses de mercado internacional.
     Passos Coelho e os seus amigos deitaram abaixo  o governo anterior e gritaram por socorro à troika porque, afirmaram,  Portugal estava de cofres vazios, à  beira da bancarrota. Os portuguses decidiram acreditar. O  governo aceitou a imposição de vender os anéis para que salvemos os dedos.  A primeira venda foi o BPN, aquele banco que nos tem custado os olhos da cara, defraudado por um gang democrata e social, que parece herdar a mesma impunidade dum outro, o da Caixa Económica Faialense,  que no  tempo de Cavaco Silva desgraçou milhares de emigrantes em França e no Canadá.  Os portugueses acharam boa ideia vender o trambolho pelo melhor preço. Apareceram  dois grupos interessados que pagavam  mais de cem milhões de euros e garantiam os  postos de trabalho.  O governo vendeu por 40 milhões, aceitando que seriam despedidos mais de 700 trabalhadores e  assumumindo os custos desses despedimentos, a um banco angolano de que é   representante em Portugal  um social  e democrata com grande traquejo de governo em tempos idos de farta  estrada e abundante betão.
     Não  percebo nada disto.  E a culpa é só minha, sou eu que sou burra.

quarta-feira, junho 22, 2011

TIMOR A QUEM MERECE


CARTA DO CANADÁ
por Fernanda Leitão

            No inverno de 1975/76 havia em todo o país um silêncio magoado e estupefacto. Centenas de milhar de pessoas vindas das colónias, algumas apenas com a roupa que traziam vestida, eram despejadas em Portugal por uma ponte aérea. Ninguém queria a continuação da guerra colonial, produto da cegueira política opressiva que dominou 48 anos. Excepção feita a alguns obstinados do regime, todos entendiam como legítima a independência das colónias. Mas ninguém estava preparado para aquela debandada sem honra nem dignidade, aquela entrega de territórios e povos, sem referendo, aos partidos de obediência comunista. Manifestamente, era uma entrega nada inteligente como o tempo se encarregou de demonstrar, e era um acto de crueldade como ficou claro aos olhos do povo português.
            Entre os milhares de desgraçados que aportaram a Lisboa, estavam os timorenses, esses que o regime actual abandonou depois de ter plantado no território a árvore de frutos envenenados. Foram jogados ao Vale do Jamor, instalados à trouxe-mouxe em casas pré-fabricadas com que a Noruega generosamente acudiu. Fazia frio, chovia muito, o vale era um mar de lama e aquela pobre gente sem agasalhos.
            O Portugal político remeteu-se a um sepulcral silêncio em torno desta situação. Nunca percebi se era medo, se era indiferença. Má consciência não podia ser porque não a tinham. Só gente sem consciência pode proceder assim e fazer o que fez.
            E eis que o silêncio foi quebrado por um grito de alarme soltado pelo Príncipe Dom Duarte Pio de Bragança. Foram bastantes os que acorreram ao grito e trabalharam para minorar a desolação e miséria dos timorenses. Lembro-me de muitos, entre eles os familiares do General Silva Cardoso, da Força Aérea, que regressou de Angola, onde ocupou  o posto de Alto Comissário, completamente ensopado em amargura e angústia.  Não me lembro de alguma vez ter encontrado, no Vale do Jamor, os homens e as mulheres que eram então os donos do regime. Nem um. Nem uma.
            O Duque de Bragança não mais parou na sua luta em favor do povo timorense. Ramos Horta era presença certa ao seu lado.
            Uma das mais gratas recordações que guardo foi os timorenses do Vale do Jamor terem acedido ao meu pedido de cantarem a missa solene de celebração do aniversário de Tomar, na Igreja de São João Baptista.  Nesse tempo não se celebrava o dia da cidade, porque era herança “fascista”!!!
Nem que o cavaleiro templário Gualdim Pais tivesse andado na escola com estes democratas de fancaria...  Sem pachorra para aturar coisas estúpidas, celebrei eu e muitos portugueses de antes quebrar que torcer.  Presidiu à celebração o Arcebispo Emérito de Luanda, D. Manuel Nunes Gabriel.  O filho de um régulo desfraldou junto ao altar uma bandeira portuguesa que a sua tribo tinha escondido durante a ocupação japonesa durante a Segunda Guerra Mundial. Foi lindo. E inesquecível.
            Soube agora pela imprensa que a Assembleia Legislativa de Timor decidiu dar a cidadania timorense  ao Senhor Dom Duarte de Bragança.  Ninguém a merece mais nem tanto. É uma decisão feliz e honrosa, este acto de gratidão de um povo que tem todos os motivos para ressentimento e afinal nos quer bem. É um sinal de estarem certos os que, como o Duque de Bragança, procederam de acordo com princípios de Pátria.

sexta-feira, maio 13, 2011

Salve, Rei!, poesia de Camilo Castelo Branco dedicada ao rei Dom Miguel I

ELUCIDAÇÃO
Em 1911, quando faziamos ainda parte da redacção da Nação, reproduzimos naquelle periodico, n.o 15.255, de 13 de Outubro, a poesia “Salve, Rei!”, de Camillo Castello Branco, de que mandámos tirar uma separata, de 32 exemplares numerados, sendo 3 em papel Whatman e os restantes em papel de linho nacional.
Estando todos aquelles exemplares distribuidos, e sendo muitos os camillianistas que desejam possuir a poesia Salve, Rei!, resolvemos, sem nenhuns intuitos mercantís, que tambem da primeira vez não tivemos, pois que a edição foi destinada unicamente a offertas, fazer a presente reedição daquella pouco conhecida producção do Maior de Todos, como justificadamente os seus mais enthusiastas admiradores cognominaram o auctor do Amor de Perdição e de tantissimas obras que honram a litteratura portugueza.
Eis a razão desta nova especie da extensissima bibliographia camilliana.
Novembro de 1915.
Frazão de Vasconcellos


Nótula da nossa 1.a edição
A poesia que se segue, dedicada a El-Rei Dom Miguel I, por occasião do seu casamento, foi impressa originalmente, em janeiro de 1852, em uma folha solta, e reproduzida
no diario legitimista A Nação, n.o 1834, de 22 de novembro de 1853, em parallelo com uma outra poesia do mesmo Camillo, transcripta do jornal O Portuense, de 17 de novembro de 1853, em honra de Dona Maria II, a quando do seu fallecimento.
Na sua preciosa Bibliographia Camilliana, refere-se o nosso presado amigo Sr. Henrique Marques a esta pouco conhecida producção do notabilissimo e fecundissimo espirito que foi Camillo Castello Branco, dizendo que viu um exemplar da folha solta, na Bibliotheca Publíca do Porto, e informando mais que o Jornal da Manhã, daquella cidade, a reproduziu no seu n.o 137, de 19 de maio de 1890.
Frazão de Vasconcellos


SALVE, REI!

Cantor d'outr'ora, quando vi sem flores
Os magicos jardins da phantasia,

Minha lyra depuz.
Não mais pedi inspirações terrenas.
Curvei-me ante o altar, sagrei meu estro

Aos canticos da cruz.

E, sem magoa, quebrei prisões da terra,
Mas uma, se então quiz tambem quebral-a,
Não pude... em vão tentei...

Eram saudades a viver d'esp'ranças,
Saudades, que nem Deus manda esquecel-as,

Saudades do meu Rei!

Ficava-me no mundo um nome grande,
Um symbolo d'amor, de luz radiante,

Sob um manto real...
Imagem do que vi na minha infancia,
Sentado no docel, herança augusta

Dos Reis de Portugal

Christão, pedi com fé - senti que a tinha
Prostrado ante o altar, quando eu pedi

Recursos ao meu Deus...
Recursos, não pr'a mim que nasci servo,
Recursos para Vós, Rei desterrado

Sob inhospitos céus!--

Pulsou-me o coração, senti no labio,
Em vez da oração, soltar-se o hymno

D'um peito portuguez!

Ás lagrimas succede essa alegria
Dos extasis que á mente imprimem vôos

D'energica altivez!

Rei! no dia em que descestes
Do Vosso throno real
Apagou-se a luz da gloria,
Cerrou-se o livro da historia
Do Reino de Portugal.
Surge o anjo do exterminio
Sobre as trevas infernaes!
Traz de fogo a fera espada,
E com mão ensanguentada
Rasgas as purpuras reaes.

Sobre o solio dos Affonsos
Ferreo sceptro esmaga a lei:
Ruge alli o despotismo
Se não verga ao servilismo
Quem lhe diz «Tu não és Rei!»
Não és Rei! és uma affronta
Feita ao povo portuguez!
Não és Rei que não herdaste
Este chão que escravisaste
A quem falso Rei te fez!

Vaga o anjo do exterminio
Como inspiração do algoz!
Corações com Vossa imagem,
Oh meu Rei! são a carnagem
Do punhal que fere atroz!
Foram dias de martyrio,
De terror e maldição!
Mas o martyr, expirando,
Esquecia-Vos só quando
Lhe morria o coração!

Vaga o anjo do exterminio
Do mosteiro sobre a cruz,
E roçando a negra aza
Pela cruz o templo arraza
E do altar extingue a luz.
Cospe injurias e sarcasmo
Sobre a face do ancião,
Porque orava, é réo, e expulso
Foge á morte, e cede ao impulso
De penuria, e pede pão.

Pede o pão que amassa em pranto
De saudades que crê vem
D'uma cella que comprára
Quando o mundo cá deixára
Com as pompas que elle tem!
Pede o pão que lhe usurparam
Com tamanho desamor...
Fraco, ao vêr que chega a morte,
Morre... e então mostra que é forte
Perdoando ao matador!

Lá, no campo da carnagem,
Mutilado um corpo jaz...
Ficaram-lhe alli seus ossos...
Pois que foi um d'entre os Vossos
Real Senhor! não terá paz.
Nem a paz dos que morreram
Sem a nodoa da traição
Nem a paz da sepultura
Ao fiel que honrado jura
Morrer sob o seu pendão

Lá se abraça ao corpo exangue
No abandono da viuvez
A que alli vive arrastada
Mendigando, envergonhada,
Improperios... talvez!
Pobre, e só, mãe de tres filhos
Quando a fome a constrangeu,
Inda assim, um pensamento,
Uma esperança, um grato alento
Foi por Vós que o concebeu...

Vaga o anjo do exterminio
Enverga o manto real;
D'um diadema a fronte cinge,
Mas o sangue que lh'o tinge
Brada vingança fatal!
N'essa fronte ensanguentada
Escreveu a mão de Deus!...
Mas tambem homens puzeram
Inscripções onde se leram
Infamias como tropheus!

Oh Rei de Portugal! Quando a amargura
D'este povo infeliz, é sem conforto,

Valemo-nos do céu!
Pedimos-lhe por Vós, anjo proscripto,
Pedimos-lhe vigor á doce espr'ança

Que em vós o céu nos deu!

Vireis, Senhor vireis, que Deus é justo!
Vireis enxugar lagrimas amargas

Que se choram por Vós!
Sereis de todos Pae, não vingativo,
E nós todos irmãos, e Vós de todos...

O Rei de todos nós!

Fatidica aureola circumda
Nas plagas do desterro dolorosas

Vossa fronte real.
Sentado sobre as rochas da montanha
Lá mesmo na solidão d'amargo exilio

Sois Rei de Portugal!

Deu-vos um anjo a Providencia augusta
Em galardão á dôr que amargurastes

Com Santa intrepidez.
Um dia curvaremos o joelho
Perante Essa que o ceu fadou Rainha

Do povo portuguez.



Camillo Castello Branco

Salve, Rei! - Poesia de Camillo Castelo Branco. Lisboa, Typographia A. J. Ferros & Ferros: 1915.

quinta-feira, maio 05, 2011

Mário Saraiva - Razões Reais

Entre o Liberalismo e o Absolutismo

Não teria sentido que ainda hoje a questão do poder real se pusesse nos mesmos termos em que há século e meio tão apaixonadamente se debateu entre os nossos bis e trisavós. Tal hipótese denunciaria um absurdo arcaísmo político, uma lamentável inércia do pensamento, indiferente às duras experiências entretanto vividas e de olhos fechados às exuberantes realidades do nosso tempo. Aliás, em nenhuma das duas soluções contrárias e extremas -- liberalista ou absolutista -- se respeita ou compreende o verdadeiro espírito da Realeza.

O demo-liberalismo, sonegando todos os poderes efectivos ao Rei, desprestigiou e inutilizou quase por completo a Monarquia. Soberana de facto era a maioria parlamentar a quem o Rei devia, constitucionalmente, obediência.

E como haveria o monarca de exercer as funções de árbitro nacional desprovido de poder?

A doutrina absolutista, por motivo oposto, inutilizou igualmente a Monarquia. Fazendo do Rei um "governante" absorvente, transformando-o num ditador, anulou as virtualidades da instituição real. Em lugar da personificação da unidade nacional, da instância de apelo e de justiça ("Aqui del Rei!"), fez dele causa de discussões e divisões, alvo de crítica e de oposição, objecto de ódios, em que redundam geralmente as prolongadas oposições ao governo em política. E a oposição ao rei-governante confunde-se fatalmente com a oposição à Monarquia.

O Integralismo Lusitano marcou neste ponto uma sensata solução intermédia, enunciando a conhecida máxima de Gama e Castro: "O Rei governa mas não administra".

Queria com isso indubitavelmente significar que a autoridade é inseparável da dignidade real, mas que ao Povo cabe o direito activo de conduzir a administração pública.

Assim, nestes termos, ficou a questão até aos nossos dias. O que nunca se fez foi a destrinça, algo difícil, entre governo e administração. Daí as vagas ideias que mais ou menos pairam sobre o assunto quando se quer uma definição actual e explícita das funções do Rei.

Por nós, temos insistido em que, em princípio, o Rei não deve arcar com as responsabilidades do governo corrente, isto é, das funções comuns do executivo, nem a elas estar directamente ligado. Tais funções e responsabilidades são, por natureza, encargo próprio de um governo ou ministério.

O facto de fazermos depender do Rei a nomeação e a demissão dos ministérios já tem sido interpretado por alguns críticos como causa necessária da responsabilidade real, ainda que indirecta, na sua acção governativa.

Não cremos que justamente assim seja. O governo responde pelos seus actos perante o Rei, mas também responde perante a Assembleia parlamentar, que ambas as entidades, cada uma por seu modo, são representativas da Nação. À Assembleia incumbe, exactamente como principal função, fiscalizar o Governo e isso responsabiliza-a na obra deste. Enquanto o não censure ou não lhe manifeste a sua desconfiança, implicitamente fica entendido que o acompanha. Apenas numa circunstância pareceria legítimo cobrir com a responsabilidade real a responsabilidade do governo: no caso teoricamente admissível de o rei persistir pessoalmente em manter no poder um Governo reprovado pela opinião nacional. Apenas nesse caso, aliás improvável.

Mas a monarquia é o regime tradicional das liberdades populares («Nos liberi sumus»...) e o Rei o seu melhor garante.

Não o poderia ser o monarca coacto do Liberalismo. Também o Rei há-de ser livre («Rex noster liber est»...), se encarnar a nação livre. A liberdade real é o penhor indispensável da suprema justiça.

Um árbitro justo, independente do poder executivo, é o que é difícil conseguir, por muitos artifícios que se tentem, nos regimes de base electiva e que, com naturalidade, é fácil de possuir através da realeza.

Mas se o Rei fosse chefe do próprio governo, onde estaria a arbitragem, a jurisdição para a qual se apelasse e que, em última instância, pudesse decidir contra esse governo?

Voltemos um pouco atrás, à formula que o Integralismo perfilhou. -- governar, mas não administrar.

É evidente que, diante da centralização absorvente que o demo-liberalismo do século XIX operara, o Integralismo, ao enunciar que o Rei não administra, tinha em vista preservar as prerrogativas e o direito de administração autónoma que o povo local mantinha. Na verdade, era dentro de cada velho município que se determinava a vida pública quase totalmente.

A interferência do poder real na administração municipal fazia-se em grau mínimo, e notemos que o termo administração abrangia dentro dos seus limites a maior parte do poder legislativo e executivo que a regia.

É claro que o municipalismo -- bela florescência das liberdades populares na Idade Média -- foi definitivamente ultrapassado; mas não morreu nem jamais morrerá o espírito que o inspirou. Creio que seríamos felizes se o país inteiro pudesse ser o conjunto dos seus municípios, tendo no Rei o defensor dos respectivos forais.

Imaginar as disposições foraleiras dos municípios portugueses vivendo à sombra protectora da instituição real, talvez fosse o meio mais seguro de traçar o esquema de uma Constituição que, para já, nos serviria de suma política.

Entretanto, passando do idealismo à prática, num esforço objectivo de concretização, procuremos distinguir o que, à face do tempo actual, se colocaria no âmbito do ministério-governo ou ficaria debaixo da alçada régia.

Na lógica do nosso pensamento, parece não oferecer quaisquer hesitações atribuir ao ministério-governo a gerência e responsabilidade dos seguintes departamentos: Finanças, Economia, Comércio, Indústria, Agricultura, Obras Públicas, Comunicações, Educação, Saúde e Assistência, Trabalho, Transportes, Previdência Social.

Com efeito, estes departamentos compreendem aquela matéria que hoje podemos classificar de administração, segundo o sentido do escritor José da Gama e Castro. Governar, para o autor de «O Novo Príncipe», como para os integralistas, não era concentrar numa só mão todos os poderes; não era gerir directamente nem administrar, mesmo de forma indirecta.

A descentralização foi, pelo contrário, um dos pontos principais de resistência doutrinária do Integralismo. Por governo real significava-se aqui, essencialmente, a fiscalização atenta da conduta da gerência ministerial e do parlamento e o zelo activo pelo equilíbrio harmónico dos poderes do Estado.

Nunca será demais repetir que o papel por excelência da Realeza, inigualável, e que a todos supera, é o de personificar a unidade da Pátria e que a sua principal função, tradicionalmente expressa e aceite, é a de «defensora dos descaminhos do reino». Decerto que o Rei, cujas atribuições não se confinam estritamente nos limites do Estado, mas que é também chefe de Estado, há-de deter em suas mãos, em potência, um poder supremo; também a Nação o possui e o pratica, quando deixa de haver Rei de facto ou de direito. Mas o poder real exerce-se principalmente ao vigiar e moderar o parlamento e o ministério-governo, órgãos normais de administração e legislação.

Do carácter nacional e apartidário do Rei deduz-se que lhe deverão competir aqueles sectores que por natureza são exclusivamente nacionais. Contam-se, neste caso, as Forças Armadas, a Diplomacia e o Poder Judicial.

Em primeiro lugar, as Forças Armadas. Constitui um dos absurdos das repúblicas de partidos submeter à autoridade e ao mando de um ministro político ou de um presidente eleito as forças militares da Nação, pelo risco fatal de serem transformadas em instrumento de partido. Claro que pode perguntar-se: -- Quem haveria então de as comandar, se nesses regimes, ordinariamente, o Presidente é ele mesmo um político do partido? -- Só o Rei -- respondemos.

Numa monarquia de amanhã, o Governo deveria dispor dos corpos policiais suficientes para a manutenção da ordem pública, mas a Marinha, a Força Aérea e o Exército deveriam conservar-se independentes dos governos e apenas subordinados às ordens do Rei. A sua eficácia de árbitro nacional redundaria assim evidentemente fortalecida.

Por outro lado, há que salvaguardar a independência dos Tribunais e da Magistratura e evitar que a condução da Diplomacia caia na mão de governos efémeros, o que a diminuiria e lhe tiraria prestígio. As relações externas, pela sua continuidade e permanência, têm de estar sob a alçada de um poder que não morra. Esse poder é o do Rei.

Defesa Nacional, Diplomacia, Poder Judicial, eis tarefas de carácter nacional e apartidário que só um magistrado supremo, independente, moderador e agregador poderá desempenhar a contento. Dentro desta orientação inovadora, caberia ao Rei designar pessoalmente os ministérios responsáveis por tais tutelas.

Esclareça-se que o que acabámos de escrever configura apenas uma tentativa de desbravar um caminho até à data muito pouco pisado. Media via entre o Liberalismo e o Absolutismo, síntese integradora de contrários, importa traçá-lo doravante em linhas mais direitas.

Mário Saraiva

quinta-feira, abril 14, 2011

Na hora do desastre


"Na hora do desastre, só o enraizamento na história pode dar a confiança necessária para transformar o presente" - Ivan Illich

DA COMUNA AO SINDICATO E DO SINDICATO À COMUNA 

por Teresa Maria Martins de Carvalho


Penso que o homem não é capaz de formar no seu espírito projecto mais vão e mais quimérico do que pretender, quando escreve sobre qualquer arte ou qualquer ciência, escapar a toda a espécie de crítica e grangear a aprovação de todos os seus leitores. - La Bruyère


I - A COMUNA

A multidão não deixa de ser multidão mesmo se estiver bem alimentada, bem vestida, bem alojada e bem disciplinada. - T. S. Eliot

O povo é o conjunto de uma multidão racional, associado na comunhão concorde das coisas que ama. - Santo Agostinho

I

                Comuna foi a palavra lançada a desfavor dos ventos e marés dos socialismos abundantes depois do 25 de Abril e eis que ficou enigmática e brilhante como estrela nova em céus desvendados, portadora de múltiplas ressonâncias, tanto revolucionárias como longa e medievalmente tradicionais.
                E esta palavra, assim aparentemente paradoxal que sugere subversão, parece acordar também o eco longínquo de certa liberdade julgada há muito extinta no altar das massas e do Estado: a liberdade de cada um.
                Ao mesmo tempo desperta em nós o desejo e as forças de um amor comum por algo de comum, ainda indefinido mas perto de nós, alcançável, interpretado e açambarcado por sistemas e partidos mas que os ultrapassa sempre, os gasta e corroí porque nasce a cada momento da liberdade de cada momento.

II - O QUE É A COMUNA

Nada queremos da república dos burgueses nem da monarquia dos plutocratas! - António Sardinha

Não há meio termo: a comuna ou será soberana ou sucursal; ou tudo ou nada. - J. Proudhon

                Não nos cabe a tarefa de nos ocuparmos de maneira funda e completa das raízes históricas da comuna, do seu lugar e papel na sociedade anterior à era industrial e sobretudo da sua importância como elemento estruturante do nosso País.
                Outros o fizeram com a competência mais que bastante e necessária e a eles recorrerá quem desejar documentar-se mais fartamente.
                Precisamos, no entanto, de nos referir embora por alto às suas linhas essenciais para desenvolvermos de modo prudente e claro a reflexão que nos compete aqui e hoje. É sempre preciso começar pelo princípio.
                E o princípio foram comunidades há séculos radicadas em vales e montes e ao longo dos rios, com organizações já complexas, pois o aparecimento do homem agricultor tornou automaticamente mais complicada a definição do poder. Anteriormente, aos chefes caçadores ou pastores pouco fora preciso para delimitarem os agregados familiares ou o aglomerado de vizinhança. Mas, em seguida, a atribuição das terras de amanho não se mostrou tão fácil. De todo o malabarismo de contratos, privilégios, direitos, deveres, obrigações, isenções, foros, usos e costumes estabelecidos quer no povo entre si, quer entre este e o dux, o rex ou a Igreja, resta-nos ainda em certas povoações nossas, o sabor ancestral de misteriosas divisões de águas, o uso dos baldios, o cunho de certas romarias e a persistência anacrónica de confrarias.
                Mas não olhemos como puro folclore para estas reminiscências. Elas demonstram sobretudo a profundidade da sua razão primeira, que as fez resistir, não só ao «progresso» actual, televisionado ou não, mas sobretudo, através de séculos, às reformas pombalina e liberal, centralizadoras e de administração burocrática.
                Esta resistência, este apego aos usos e costumes da «sua terra» constitui no povo português o contraponto à sua visceral e eterna desconfiança para com toda e qualquer disposição governamental. A memória persistente de velhos direitos perdidos e profanados, de uma autonomia antiga criadora de dignidade e de cultura, faz com que a maioria dos portugueses, como notou, com espanto, alguém estrangeiro vivendo entre nós, possua sempre a «sua terra» e que não é normalmente aquela em que se vive, eternos exilados dentro da nossa Pátria, por força das conveniências ou inconveniências dos governos centrais, distribuidores arbitrários, desarmonizadores e tecnocratas, de mão-de-obra e de serviços ao jeito do capitalismo.


III - VIDA E MORTE DA COMUNA

Nós somos livres e o nosso Rei é livre. - Proclamação nas Cortes de Lamego em 1143

Assim instituídas, as Cortes, se não foram o fundamento da liberdade municipal, base da única liberdade verdadeira que, em nosso entender, tem existido no mundo, e talvez a única possível, foram por certo desde essa época uma grande manifestação dela e, até certo ponto, uma garantia da sua conservação. - Alexandre Herculano

                Toda a vida medieval portuguesa era um emaranhado de contratos, regalias, corporações, corpos e municípios que tentavam engrenar o poder do Rei com as liberdades de cada comunidade, fosse ela local (município), de corpo social (clero, nobreza, povo) ou de ofício (corporação), e este tecido de vida social não deixava espaços vazios nem para os vagabundos que segundo a lei das Sesmarias já D. Fernando compelia «à batalha da produção».
                O medo e a curiosidade são comuns ao homem e ao animal, mas, se neste são reacções momentâneas, a consciência daquele faz nascer a ciência da curiosidade e do medo, a noção da precariedade permanente da existência.
                Esta insegurança trágica do ser humano não era então de modo nenhum coberta pelos grupos naturais de interesses comuns de vizinhança, cultivo e convívio. Daí a necessidade de recorrer aos poderosos, sobretudo aos do poder legítimo, isto é, à realeza, cuja legitimidade de origem religiosa dava outras garantias do que o simples conde ou barão.
                Pode dizer-se que o homem medieval era um homem sempre integrado. Não havia marginais, nem desocupados, nem desempregados. Esta integração, obra e serviço do Rei, foi a textura fecunda donde nasceram as nações. E se aos nossos olhos modernos apresenta laivos desagradáveis de sujeição, ela foi naquele tempo a única condição de liberdade dentro de uma segurança possível. Mantinha os homens relacionados uns com os outros, em contratos livremente aceites de parte a parte e no jogo dos interesses e direitos, do clero, da nobreza e do povo, o Rei equilibrava-se a si próprio, anulando abusos deste corpo, fazendo prevalecer os direitos deste município ou daquele, protegendo este nobre seu partidário ou aqueles burgueses de quem precisava auxílio. E equilibrando-se a si próprio, trazia em harmonia a nação que se ia consciencializando como unidade.
                Feitas as nações, os preceitos idealistas nascidos da Revolução Francesa sacudiram estas inclementes cadeias de privilégios e contratos pois há muito que o poder real se abstinha de reunir as Cortes, isto é, deixara de lado como supérfluo o conselho dos corpos da nação e assumira a responsabilidade absoluta do seu cargo.
                E assim a Revolução instalou o homem na sua dignidade de homem só, à moda de Jean Jacques Rousseau, mas ao mesmo tempo que libertava as gentes para a igualdade de uma só lei, deixava que a fraternidade fosse engolida rapidamente pela plutocracia, o poder do dinheiro, que já se vinha opondo ao poder da linhagem ou da terra e encontrava assim caminho aberto.
               E os homens libertos de correntes, de contratos e de obrigações, puderam finalmente ficar apenas como mão-de-obra diante do capital. No dealbar da era industrial foi o liberalismo, filho da Revolução Francesa, que inventou o proletário.


IV - COMUNA URBANA E COMUNA RURAL

Na hora do desastre, só o enraizamento na história pode dar a confiança necessária para transformar o presente. - Ivan Illich


IV

                Talvez convenha voltar atrás um pouco e considerar os dois tipos de comuna, aquela que de facto encarnou o nome e o plasmou na História, isto é, a comuna urbana dos burgueses, e a outra, a rural, o concelho dos homens bons e vilões.
                Foi a primeira que ao enriquecer-se no comércio ou tomando poder com as corporações dos ofícios (não esqueçamos aqui os espantosos privilégios dos burgueses do Porto em relação aos fidalgos que na cidade nem sequer podiam pernoitar...) e sobretudo nas cidades portuárias abertas aos ventos da Índia, carregadas de oiro e dispostas à caldeação rápida de ideias novas que mais conviessem a uma reestruturação da sociedade, correspondente ao novo jogo de forças, foi esta comuna urbana, dizíamos, que perdeu o seu carácter comunitário global e se transformou pouco a pouco em grupos de interesses individuais.
                A realeza participou desta preponderância de alguns corpos da sociedade que desorganizava a antiga harmonia e para se manter flutuante por sobre os fidalgos aburguesados e os burgueses afidalgados, acentuou o poder real como direito divino em detrimento da autoridade como serviço. E tornado absoluto, desembaraçando-se das Cortes, o Rei cortou quase completamente a comunicação com os concelhos rurais e as necessidades imediatas das regiões, do povo camponês e do pequeno artesão.
                Deste modo se dividiu Portugal em gente da abundância e gente da carência, geograficamente situadas, um litoral exuberante cortando caminho ao interior decadente, as urbes inchando-se euforicamente na nova liberdade de enriquecer ao lado ou quase sempre à custa dos outros.
                Mas o absolutismo real não era o Estado totalitário. As comunas rurais decerto já não tinham aos olhos do Rei aquela essencial existência que era preciso guardar, acompanhar, vivificar para que todo o Reino crescesse em 1ìberdade equilibrada, o que tantos cuidados e solicitude lhe merecia e pedia, como mostram até ao séc. XVI e à longa noite filipina as inúmeras disposições legais a seu favor.
                O próprio povo disso tinha consciência. A restauração de 1640 ainda foi ele, esse povo que guardava no seu sebastianismo fruste e ingénuo a esperança da liberdade reencontrada na pessoa do Rei escolhido. E embora a partir de D. Pedro II se tenha visto privado de Cortes, ele bem sentia que a nova ordem que a aurora liberal lhe prometia, centralizadora e eficiente, cortando os poderes ao Rei também os cortava às Comunas.
                Daqui o aparente paradoxo da devoção tocante por parte do povo pelo Rei D. Miguel que finalmente viria a reunir Cortes à moda antiga (1828), as últimas. Ele, rei absoluto, era ainda preferível como interlocutor à nudez fria e burocrática do código administrativo do Estado moderno.
                A última Casa dos 24, a do Porto, foi encerrada em 1834. Tinham acabado as lusitanas antigas liberdades, os contratos, os privilégios, os usos e costumes. Agora não mais havia do que pagar os impostos e receber em silêncio as benesses da civilização.


V - NO REINO DO LIBERALISMO

Conseguiram os seus intentos, os homens do partido liberal. Têm governado o país por mais de quatro lustros decorridos mas por maneira tal que nem pretéritos nem vindouros lhe hão-de invejar o nome. - Luz Soriano

No ambiente subtil e esterilizador dessa conspiração permanente que é a essência do parlamentarismo (os partidos) perderam a noção da realidade; e enquanto o mundo se transforma vão repetindo maquinalmente as costumadas teses duma filosofia política caduca e que nem já compreendem. - Antero de Quental


V

                O liberalismo em Portugal foi fértil em revoltas e conspirações entre facções e partidos, na disputa fervorosa do poder dos favores do Rei, maneiras expeditas de acumular riquezas.
                A mística do progresso material, prato forte dos oradores de então, constituía também o único valor com cotação na bolsa da vida pois ele vinha desculpar, disfarçando no bem comum que por vezes era, o crescente desequilíbrio económico da sociedade.
                As antigas liberdades de autonomia, de poder de decisão que disfrutavam os aglomerados municipais ou as associações de classe, enfim, a dignidade política das pessoas e das comunidades, traduzida em participação real e efectiva nos negócios da vida pública local, profissional ou nacional, tinham sido relegados para o esquecimento como coisas de somenos importância, velharias insuportáveis ao pé da novidade progressista do voto universal e directo dado ao povo. A Eça de Queiroz se deve o retrato impiedoso e indelével das eleições desse tempo, manejo de um povo recebendo a aprendizagem da passividade das mãos de caciques e demagogos.
                Não adianta fazer o processo do Liberalismo. Há muito já que foi feito e por contemporâneos seus ilustres, que por sua inteligência e cultura com ele se desiludiram e com lucidez se desenredaram das suas armadilhas, pondo ao mesmo tempo em evidência, como descoberta fundamental e preciosa, o modo como dantes se governavam os portugueses. Damos-lhes portanto a palavra, simplesmente.
                «Desse despotismo é que todos nós receamos, não é do absolutismo da antiga monarquia, é do novo, que, trazendo-nos todos os males que naquele existiam, não nos dá uma só das garantias que as antigas instituições formulavam.
                Sim, mil vezes sim, que, obrigado a escolher, eu sem hesitar optaria antes por esse governo absoluto que fosse regulado por leis e costumes, por um absolutismo que não fosse deste que se faz por portaria e decreto nas secretárias do Terreiro do Paço. Não tenho medo que me acusem de absolutista; rio-me e escarneço dessa acusação.»
Almeida Garrett

                «Os partidos sejam quais forem as suas opiniões ou os seus interesses, ganham sempre com a centralização. Se não lhes dá maior número de probabilidades de vencimento nas lutas do poder, concentra-as num ponto, simplifica-as, e, obtido o poder, a centralização é o grande meio de o conservarem. Nunca esperem dos partidos essas tendências (de descentralização). Seria o suicídio. Daí vem a sua incompetência, a nenhuma autoridade do seu voto na matéria. É preciso que o país da realidade, o país dos casais, das aldeias, das vilas, das cidades, das províncias acabe com o país nominal, inventado nas secretarias, nos quartéis, nos clubes, nos jornais e constituído pelas diversas camadas do funcionalismo que é, do funcionalismo que quer e que há-de ser»
Alexandre Herculano

                “A História do período constitucional entre nós pode definir-se uma administração centralizada, explorando o país no sentido dos interesses dum pequeno número de monopolistas políticos. A primeira consequência deste estado de coisas é a extensão progressiva, incalculável, verdadeiramente fenomenal do funcionalismo. Há uns anos que a consciência e o interesse popular reagem contra esta monstruosidade, este aleijão da nossa sociedade (...) é ele que nos tem assim exangues ê pálidos à beira do nosso sepulcro entreaberto.
                Os reis então (durante a Idade Média) não eram absolutos; e não o eram porque a vida política local, forte e vivaz, não só não lhes deixava um grande círculo de acção, mas ainda, dentro desse mesmo círculo, lhes opunha, à expansão da autoridade, embaraços e uma contínua vigilância.
                Os privilégios da nobreza e do clero, por um lado e pelo outro as instituições populares, os municípios, as comunas, equilibravam com mais ou menos oscilações o peso da coroa. Para as questões sumas, para os momentos de crise, lá estavam as Cortes, aonde todas as classes sociais tinham representante e voto. A liberdade era então o estado normal da Península.»
Antero de Quental

VI - QUANDO O POVO SE DEFENDE

As sete mulheres do Minho
Mulheres de grande valor
Armadas de fuzo e roca
Correram com o regedor

- Quadra popular sobre a Maria da Fonte

O que são as revoluções políticas do nosso tempo? São o protesto contra o Renascimento; uma rejeição da unidade absoluta; uma renovação das tentativas para organizar as variedades. - Alexandre Herculano

VI

                Um dos fenómenos mais curiosos da época do liberalismo e que nos interessa aqui focar é a guerra da Patuleia, vulgarmente também chamada da Maria da Fonte.
                Partindo de um facto insignificante em si mesmo, a resistência no Minho de algumas mulheres à nova lei, mais higiénica e ”progressista”, que proibia a inumação dos defuntos dentro das igrejas, propagou-se no entanto como um rastilho por quase todo o país, pondo em cena de novo, os miguelistas e os setembristas.
                À luz desta revolução popular, sem motivo suficiente para a extrema violência que desde logo tomou e levou D. Maria II a pedir a intervenção estrangeira, vale a pena cavar mais fundo e ultrapassar a simples oposição ao ministro Costa Cabral. Assim, o ressurgimento do miguelismo não significará tanto o oportunismo de políticos frustrados mas antes uma identificação instintiva e imediata com a última razão do descontentamento popular. Sempre os mandões liberais, começando logo por Mousinho da Silveira, pequeno ditador por detrás de D. Pedro IV, se autorizavam a fazer leis «nas costas do povo». O que irritou as mulheres do Minho e fez vir à superfície a irritação latente desses portugueses que tinham passado a ser considerados de «segunda ordem», terá sido sobretudo o peso deste abuso, esta tirania «esclarecida» que abria em Portugal as portas ao progresso. Não interessa tanto saber se a lei era acertada ou não (no caso até seria) mas o modo como fora promulgada. Aliás, como eram promulgadas todas as leis liberais, sem o conselho e a aceitação prévia das comunas populares.

Por outro lado reapareciam no conflito os setembristas, batendo-se pela Constituição de 1822, representando a pureza de um ideal revolucionário que vinha sendo constantemente desvirtuado por compromissos sucessivos. A vitória lógica de 1822 só se concretizaria em 1910 com o advento da República. A instituição monárquica constituía o grande obstáculo à «revolução de cima», burguesa e maçónica, porque no Rei existia sempre latente o defensor legítimo do Povo. Não foi por acaso que os dois únicos reis portugueses do séc. XIX verdadeiramente populares tivessem sido D. Miguel e D. Pedro V, encarnações efémeras, românticas, sebastiânicas de uma outra relação de Iiberdades e de poder.
Não admira portanto, que o povo, deste modo entregue a si mesmo, liberto das antigas garantias tentasse pouco a pouco defender-se, organizando-se à margem dos partidos.
Enquanto que a população rural quando não possuía leiras que lhe garantissem subsistência e se via entalada entre duas soluções extremas a submissão ou o banditismo, abalava para o Brasil, uma indústria incipiente mas já exploradora, desenvolvendo-se sobretudo no eixo Lisboa-Porto aglomerava um povo operário, desenraizado e desintegrado de comunidades naturais e que só despertou para um acordar difícil por volta de 1871. Sentindo-se joguete do mercado de trabalho, a sua reacção primeira tomou a forma de associações mutualistas que sucediam nas suas funções às extintas confrarias pois outra finalidade não tinham do que conseguir certa segurança material para os seus associados. Nasceriam a seguir as associações profissionais ou de classe, herdeiras indirectas das antigas corporações de ofícios que já pretendiam alcançar para os operários e artífices melhoria de salário e de condições de trabalho, possibilidade de melhor instrução e competência profissional. Surgiram até algumas cooperativas de consumo, aliás de vida efémera.
Estas iniciativas tinham carácter reformista, isto é, apenas pretendiam melhorar as condições de vida do proletariado e portanto não tinham ainda cariz revolucionário, ou seja não punham em questão a estrutura social existente. Esta movimentação primeira, quase espontânea, era equivalente à das trade unions, as venerandas organizações operárias inglesas, antepassadas de todas as outras e que nasceram também sob o signo humanitário.
Não tardaria no entanto que o operário português, embora mais tarde que os seus colegas europeus, começasse a tomar consciência da força social que representava e do seu valor no jogo da cena política.

VII - O MOVIMENTO SINDICAL E OS PARTIDOS

O humanitário é sempre um hipócrita - George Orwell

O idealista revolucionário que não sem ironia a gíria social alcunha de puritano, é um tipo curiosíssímo, de rigidez austera, de sentimentalidade extrema, ingenuamente puro e simples, leal e franco, com o horror grotesco do intervencionismo e do que ele chama desdenhosamente o politicantismo. - Manuel Ribeiro

VII

Esta consciência de força social nascida no reencontrar do gesto comunitário, embora ainda e apenas esboçado como defesa e entre-ajuda, desde as mais remotas associações mutualistas de 1840 e 1850, até ao enérgico Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas de 1871, fortificou-se sobretudo a partir da divulgação da Internacional Socialista num opúsculo da autoria de Antero de Quental.
Poucos anos antes tinha o grande poeta aderido à iniciativa de José Fontana na fundação do Partido Socialista.
Os ecos da Comuna de Paris não foram também alheios a certo sopro revolucionário de cariz diferente que ia aparecendo aqui e ali, fortalecendo instituições que se esboçavam em tentativas precoces de cooperativas de produção e consumo ou mesmo de federalismo. Ao mesmo José Fontana, que fora com Andrade Corvo e Santos Silva, um dos grandes entusiastas da ideia das cooperativas, se deve a criação da Fraternidade Operária, organização já nitidamente à margem do estilo reformista e humanitário das associações operárias da época e de cujos cofres se valeram as primeiras greves de 1872 e 1873.
Embora ínfima no contexto político-social da época, a classe operária em Portugal começou então a despertar o interesse e a cobiça dos partidos eleiçoeiros, a coberto de um humanitarismo por vezes bastante suspeito. Se não era grande a quantidade de votos potenciais, representava pelo menos um grupo social coeso que se conquistaria de uma só vez e, o que era mais importante, mostrava tendência para crescer em número e influência.
Era o Partido Socialista aquele que se achava naturalmente com direito a consideração e concessões da parte da classe operária e se, de princípio, preconizava o afastamento desta das disputas eleitorais, esperando que caísse de podre a construção do parlamentarismo liberal com as suas contendas ocas, não tardou a deixar-se iludir pela tentação da conquista do Poder, vendo como este passava tão facilmente de mão para mão, ao sabor de intrigas e combinações à volta das urnas.
O aparecimento em 1876 do Partido Progressista, fusão dos partidos histórico e reformista que trazia no seu programa um esboço de descentralização do poder (que aliás depois não foi cumprido) e a criação meses antes do Centro Republicano Democrático Português que anunciava claramente as suas intenções de pugnar pelo estabelecimento do regime republicano em Portugal, serviram de impulso decisivo e de desculpa doutrinária aos membros do Partido Socialista para se lançarem no jogo eleitoral. E com a adesão prestigiosa de Oliveira Martins em 1885 os socialistas acabaram por se distribuir estrategicamente por outros Partidos com maior probabilidade de êxito.
Não era outra, aliás, a reviravolta dos partidos marxistas europeus, chamados então sociais-democratas. Marx e Engels, cansados de esperar por uma revolução operária que, segundo a teoria que tinham elaborado era cientificamente inevitável mas que, apesar das condições para a sua eclosão estarem cumpridas, nunca mais vinha, tinham enveredado pelo caminho mais longo da conquista do poder por via eleitoral e, assim, os socialistas entretinham-se pacificamente com a caça aos votos.
Entretanto a grande maioria dos operários portugueses, sem pedirem licença aos Partidos, vinham ultrapassando o socialismo reformista e a social-democracia, empurrados por essa outra corrente de exigência mais funda de autonomia e liberdade, e desembocavam com toda a força no sindicalismo revolucionário.
As vozes de Proudhon e de Bakunine que tinham provocado a cisão na Internacional Socialista entre marxistas e anarquistas, depois de horas de glória e prestígio em França e na Alemanha onde começavam a perder influência, ressoavam agora com redobrada energia na Itália, em Espanha e em Portugal.
Várias razões podem ser achadas para este rápido e fecundo enraizamento do anarquismo nestes três países, aliás com populações de índole semelhante.
A mais superficial e mais fácil incide na pouca preparação e uso político destas massas operárias, de tipo temperamental, terreno propício portanto ao primarismo doutrinário anarquista mais emocional do que racional ou científico. Nestes países onde não vingara o protestantismo, jardineiro paciente e longínquo da sociedade liberal, o bloco institucional católico, integrante e global, criaria com mais facilidade o negador total do que o revolucionário metódico.
Outro, mais pertinente pelo menos no caso português, para além da memória antiga de uma liberdade comunal cerceadora do poder central, aponta acusadoramente para aqueles que dizendo-se dedicados à causa operária se enleavam gostosamente nas intrigas eleitorais com a preocupação única de ganhar votos, fossem eles progressistas, socialistas ou mesmo os católicos recém-chegados, que perdida a primitiva colaboração humanitária no Centro Pro motor, começavam a arrancar para a política social depois da publicação da encíclica Rerum Novarum de Leão XIII.
E finalmente o último logro em que o movimento operário caiu quando, já melhor organizado e representativo, acedeu a aderir à implantação da República, nela concentrando esforços e acção militante, julgando contribuir assim para nova reestruturação da sociedade portuguesa. Além da eliminação do Rei que reinava mas não governava e da perseguição à Igreja, a República nada mudou em Portugal. Pode até dizer-se, no campo que aqui nos interessa, que os conflitos com a classe operária e a repressão governamental se agravaram de modo trágico, com prisões, mortes, deportações, indo até à suspensão da Casa Sindical e do Partido Socialista.
Postas assim as coisas, compreende-se que o velho desconfiado que é o povo, no puxa para ali, puxa para aqui das conveniências de grupos e tendências, tenha lançado às malvas eleições e partidos. O operário português militante foi até à Ditadura de Salazar predominantemente anarquista.

VIII - O QUE É O ANARQUISMO?

Não procureis na renúncia a vós mesmos uma Liberdade que vos priva precisamente de vós mesmos. Que cada um de vós seja um eu todo poderoso. - Max Stirner

Eu detesto o comunismo porque ele é a negação da liberdade e eu não posso conceder nada de humano sem liberdade. Não sou comunista porque o comunismo concentra e faz absorver todos os poderes da sociedade no Estado, porque leva necessariamente à centralização da propriedade nas mãos do Estado, enquanto que eu quero a abolição do Estado a extirpação radical desse princípio de autoridade e de tutela do Estado que sob o pretexto de moralizar e civilizar os homens, até hoje só os sujeitou, explorou e depravou.
Bakunine

VIII

É muito difícil lutar contra preconceitos sobretudo quando são simplificadores de realidades complexas. O anarquismo é, para a maioria das pessoas, sinónimo de desordem, de atentado à bomba, de amor livre. Não podemos desistir, evidentemente, diante do obstáculo semântico dessa palavra maldita porque não há outra que a substitua para exprimir o conjunto de ideias, sentimentos e factos que sob ela se abriga.
Vamos tentar por isso uma aproximação tanto quanto possível desapaixonada, livre e lúcida e desenterrar algumas razões do anarquismo que nos darão que pensar.
O seu aspecto mais evidente e até fundamental é a revolta, o grito visceral, instintivo e sadio da reacção natural de defesa contra o poder tornado opressão, contra o afogamento da pessoa na massa, contra a manipulação hipócrita, demagógica dos povos através dos seus legítimos sonhos e anseios, transformados em palavras sedutoras e vazias, promessas aliciantes e falsas.
Daqui se fixou o retrato vulgar do anarquista, exasperado e violento como por vezes é, o sindicalista revolucionário de acção directa, o nihilista russo do séc. XIX ou o alemão de agora. No entanto, esta redução do anarquista ao terrorista é injusta, hoje mais do que no passado. Agora, muitos outros grupos não anarquistas praticam o terrorismo para os mais variados fins e o movimento hippy adverso à violência, é de filiação nitidamente anarquista embora a opinião pública dificilmente o saiba reconhecer, apenas e ainda por causa desse seu carácter pacifista.
E o que é, no fundo o movimento hippy senão o protesto vivo contra uma sociedade de consumo em que os valores humanos são falseados e a pessoa manipulada para produzir e consumir, a fim de que gire a máquina industrial capitalista? A descoberta do valor específico de cada um e a liberdade da sua plena realização pessoal é também uma constante do pensamento anarquista.
Além disso e já que se falou do movimento hippy, notemos também o aspecto comunitário e de entreajuda espontânea que ele apresenta, idêntico na sua motivação natural — o homem não é homem sozinho mas em comunidade — à mais querida e acarinhada das ideias anarquistas: a organização da sociedade em grupos de afinidade, quer profissionais, quer locais.
Porque, apesar do seu nome indicar urna decapitação da autoridade, isso não quer dizer que o anarquismo faça a apologia da desordem. O anarquista odeia o Estado como odeia qualquer poder que não emane das pessoas, minuciosamente relacionadas através dos seus interesses directos. Nada há de mais organizado do que o pensamento anarquista sobre a sociedade, e o próprio Proudhon, que lançou como primeiro desafio ao filisteu a palavra anarquista, gostava de se intitular «mutualista» para acentuar em contrabalanço esta face construtiva do anarquismo.
Outra característica dos hippies é a comunidade dos bens, aquilo que é de um é naturalmente de todos. A partilha é de regra, regra também do anarquismo em que a socialização dos bens de produção, consumo e cultura através da auto-gestão, se processa directamente nas comunidades e entre as comunidades sem intervenção de órgãos estatais centralizadores e dispensadores de comida, conforto e trabalho, sufocando as liberdades e alienando os espíritos para obter mais eficácia na organização.
Não se pretende aqui canonizar cegamente o anarquismo, passando uma esponja sobre os seus excessos, ingenuidades e ambiguidades. Ele é por sua própria natureza excessivo, multifacetado, inconsistente e flutuante como tudo o que procede directamente da intuição, mas fecundo, rico de ideias, descobertas e avisos em que a razão de cada um poderá pescar o seu peixe. Aliás os seus pensadores, muito coerentemente sempre se negaram a sistematizar e muito menos a dogmatizar as suas ilações, invenções, desconfianças e experiências. Não se codifica a indignação nem a imaginação.
Mas, se seria idiotice ignorar propositadamente a rebelião selvagem que o anarquismo é, com as dores e sangue que arrasta consigo, mais idiota seria desperdiçar a bússola crítica que ele representa. Um vulcão quando explode tem as suas razões para explodir.
Depois desta incursão pela densa floresta anarquista em que a palavra liberdade, sem os ouropéis pesados do liberalismo legalista ou do socialismo científico, nos surge multiplicando-se em liberdades sucessivas, com todas as suas implicações políticas económicas e culturais, liberdade da pessoa, liberdade das pessoas em comunidade, liberdade das comunidades nas regiões, liberdade das regiões dentro da Nação, liberdade das Nações por sobre as fronteiras, parece não ter sido de todo escusado o passeio.

X - A RESSURREIÇÃO DA COMUNA

O homem é tanto mais livre quanto mais relações tiver com os outros homens. - Proudhon

O sindicalismo pode e deve bastar-se a si próprio na luta que trava contra a exploração patronal mas não pode ter a pretensão de resolver sozinho o problema social. - Jean Grave

IX

Enfermo da sua própria liberdade que o impedia de construir uma estrutura própria e definitiva, o movimento anarquista depois de muito gritar, esbravejar e revolver, encarnou em algo que andava ali à mão em recusa constante a enfeudamentos políticos: o sindicalismo na sua forma primitiva reformista, isto é, preocupando-se sobretudo com os interesses de classe. A afinidade encontrada entre o sindicato, sistema de autodefesa da classe operária, e o anarquismo, contestação total do poder, residia como vimos na aversão comum ao jogo eleitoral dos Partidos, mesmo daqueles que se diziam defensores dos operários ou instauradores de nova ordem social.
O operário desconfiado, armado com a experiência das suas construções de defesa e ataque, proporcionou ao anarquista a base concreta para uma organização da sociedade autónoma, descentralizada e livre a que ambos confusamente aspiravam.
Desta simbiose a que se chama o anarco-sindicalismo, advêm não só a roupa revolucionária que o movimento sindical passou também a envergar, nomeadamente em Portugal, sobretudo a partir da criação da Confederação Geral do Trabalho em 1919, mas também o esboço da sociedade libertária que os pensadores anarquistas delinearam mais à vontade, com indicações de ordem prática.
De uma harmonia de interesses, instável e sempre precária, entre patrões e empregados, constantemente procurada, achada, perdida e buscada, por entre greves, reivindicações, representações e comissões, em que os sindicalistas centralizavam a sua luta, os anarquistas fizeram-nos passar para a exigência da apropriação imediata dos bens de produção, para a auto-gestão nas empresas, para a recusa de qualquer liderança mesmo técnica na planificação da produção e na circulação dos produtos manufacturados ou das matérias-primas e para a colectivização dos instrumentos de trabalho do mesmo ramo de indústria, através de federações.
Esta revolução proletária de tipo anarquista era evidentemente refractária a todo e qualquer dirigismo por parte de um grupo mais esclarecido, à moda socialista, pois nesse grupo estaria sempre a semente de um Estado sôfrego de poder. O apelo à imaginação dos operários para criarem eles próprios órgãos de poder, se exigia um esforço auto--educativo monumental, não era tão utópico como parecia. Os sovietes ou comissões de trabalhadores que formaram a base indispensável da revolução russa foram uma criação anarquista, falsificada depois por Lenine quando os transformou em simples instrumentos do Partido.
Desde que não saísse do campo económico, a organização anarquista de tipo colectivista e federativo até era fácil de imaginar como exequível, como aliás aconteceu em Espanha em 1936. Mas o próprio sindicalismo é limitado no seu campo de acção. Nem tudo é sindicável na sociedade e querer reestruturá-la à base de sindicatos é um bocado curto...

Esta falha não passou desapercebida à imaginação anarquista, e já Proudhon, ultrapassando o horror à «política», tinha esboçado uma teoria para a administração territorial, lembrando-se que os homens formam entre eles, em base local, o que ele chama e nós chamamos e toda a gente chama um grupo natural, ou seja, a comuna.
Esta descoberta da pólvora, «Para cá do Marão mandam os que cá estão», de comunidades locais, autónomas, federando-se em regiões ou em províncias foi retomada avidamente pelos seguidores de Proudhon, para além da solução prática das Uniões Sindicais, isto é, da associação dos operários dos vários ramos da indústria presentes na mesma localidade, até ao simples reconhecimento de um poder autónomo da comunidade territorial, tanto que hoje os anarco-sindicalistas portugueses falam de comunalismo municipal, à boa moda antiga.
Depois deste longo caminho andado, quando os vemos atracar ao porto antiquíssimo e seguro da nossa melhor tradição de liberdade, em vez de repetirmos descuidadamente que teria sido talvez mais fácil terem logo começado por aí, lembremo-nos de Pombal, do absolutismo e dos liberais que desmancharam Portugal e consideremos com respeito esta descoberta tão duramente conquistada.
A nós, a quem não roem preconceitos viscerais contra o poder, desde que legítimo, defender a reconstrução da sociedade portuguesa com base na comuna autónoma é tarefa estimulante pelo que de criador se adivinha no desenrolar do processo: construir tudo de novo na verdade e na liberdade de cada um e de todos, despertando a imaginação e a criatividade de cada um e de todos, sem esquemas prévios que não sejam a aceitação da competência de cada um e de todos no governo dos seus interesses directos, a consideração da alteridade das pessoas e das comunidades e o seu ajustamento ao bem comum.
E se nos calhar avistarmos as dificuldades dos anarquistas que por fidelidade a uma intuição básica fundamental, a recusa a aceitar o poder de alguns homens sobre os outros, andam ingloriamente à roda de uma solução satisfatória para o problema dos serviços públicos, comuns a toda a Nação, não os olhemos com a comiseração de quem tudo sabe.
Ou ainda quando congeminam, altamente preocupados e com razão, no modo de evitar que a auto-gestão local se torne selvagem e egoísta sem que para isso se tenha de recorrer a processos repressivos ou autoritários, não lhes concedamos o sorriso irritante de quem conhece a solução.
Ou mesmo quando não são capazes de definir o papel do sindicato, sempre ambíguo na sua finalidade dentro de uma sociedade comunalista, defensor de uma classe, sempre à beira de descambar para a hegemonia política dessa classe, o Estado operário, que por ser operário não é menos Estado e menos gerador de opressão, não pensemos que temos muita sorte em não estarmos, assim, coitados, obcecados por lutas quiméricas de classe.
Ou finalmente quando procuram sem esperança o elemento unificador que evite a pulverização das comunidades, que sem ele se tornará inevitável, e no entanto resistem à tentação de um qualquer governo central, mesmo cheio de boas intenções, não cantemos de galo só porque não temos essas pedras no sapato. Lembremo-nos antes que nenhuma intuição certa de descentralização de poder está livre de ser adulterada, viciada, para serviço e glória de ditadores, sejam homens, partidos ou sistemas. E quanto mais a fórmula encontrada estiver próxima da maior liberdade possível, isto é, em distribuição minuciosa e natural, mais fácil será a sua reconversão em rede estranguladora de um poder central, sejam os sovietes anarquistas nas mãos de Lenine, o corporacionismo do Integralismo Lusitano nas de Salazar ou a comuna nossa de agora, noutras que por aí apareçam...
Agradecemos por isso aos anarquistas a sua resistência em acolher de olhos fechados a comuna, com as potencialidades imensas que traz consigo para uma organização razoável da sociedade, sem a passarem primeiro pelo crivo vigilante e implacável do ódio ao poder, tarefa ambígua de meia dúzia de iluminados que rejeitam ao mesmo tempo quaisquer ingerências de grupos de iluminados...
E como não existe neste mundo nenhum sistema político perfeito, pois todos são aproximações, mais ou menos frágeis, mais ou menos poderosas, nem o comunalismo, sairá isento de pecado e a hesitação continuará.
Mas se este idealismo férreo do anarquismo na hora cia escolha nos pode parecer estéril, ele será na hora do desastre, sempre possível e sempre provável, a memória preciosa e exacta do sabor da liberdade.


X - NO MUNDO DESTE TEMPO

Efectuar sábios cálculos para prospectar o futuro já não basta. A casa está a arder, chegou o momento de chamar os bombeiros. - René Dumont

O último impedimento à reestruturação da sociedade não é nem a falta de informação sobre os limites necessários, nem a falta de homens resolvidos a aceitá-los se eles se tornarem inevitáveis, mas é o poder da mitologia política. - Ivan Illich

X

Ao fim e ao cabo, o anarquismo, como facilmente se adivinha, não é só fenómeno datado e circunscrito a determinada época, mas representa fundamentalmente uma recorrência do espírito humano. Podemos detectar traços seus nos cínicos da Antiguidade, nos movimentos cátaro e franciscano da Idade Média, nos Anabaptistas do séc. XVI, não contando já com as inúmeras “jacquerIes” que enxameiam a História, simples tumultos ocasionais de revolta sem projectos de vida subjacentes.
É esta uma das razões por que lhe damos lugar central a desfavor de sistemas políticos seus contemporâneos mas que partem de premissas filosóficas e sociológicas marcadas pela época, como é o caso por exemplo do liberalismo e do socialismo, elaborados sobretudo ao sabor do vento magnífico que começou soprando no séc. XIX e entrou pelo séc. XX, caindo há pouco na hora do ocaso: o mito do progresso, a crença de que, como pensavam uns, a criação da riqueza e bem-estar era uma curva eternamente ascendente, acrescentando outros que a sabedoria política consistiria em saber também reparti-los equitativamente segundo variados métodos.
Este optimismo ingénuo encontra-se hoje num beco sem saída, onde as palavras de ordem que ontem entusiasmavam multidões perderam sentido e justificação. Pelo menos para aqueles que estão acordados e atentos aos sinais dos tempos.
Neste contexto, o grito anarquista permanece, ainda e sempre, actual e oportuno.
Por exemplo, um dos vincos que mais ressaltam na fisionomia do tempo presente é a violenta aparição dos nacionalismos, fenómeno paradoxal se apenas o virmos assim vindo ainda dentro de uma época em que o internacionalismo é palavra-força para a revolução final a caminho do paraíso terrestre.
Não nos queremos referir ao fim do domínio europeu sobre o mundo descoberto, quando nasceram as nações americanas, estão ressuscitando as asiáticas e vêm à luz as africanas. Isto representa um acomodar dos povos no concerto das nações. Era previsível e pertence ainda ao caminho natural da evolução da humanidade.
O que queremos aqui considerar é a sacudidela que sofrem as velhas nações dentro do seu próprio corpo. A revolta do país basco, da Galiza, da Catalunha, dos Ocitanos, da Córsega, dos Bretões, dos Croatas, do Québec, et j’en passe estão evidentemente mais próximas do furor e da razão anarquista do que das reivindicações classistas cio socialismo.
Existe como que uma procura angustiosa de identidade, uma ânsia de restabelecer raízes culturais antigas, de reencontrar a fala-mãe ancestral, de reencarnar na tradição peculiar ligada a comunidades localizadas ou localizáveis, de não deixar perder o passado precioso que explica o presente e prepara o futuro, deixando-o à mercê das mãos frias e burocratas dos governos centralizadores, tanto dos que pretendem criar deste homem antigo, o homem novo, nivelado e socialista, como os que o escravizam a uma sociedade de consumo e bem-estar, entorpecedora e estupidificante.
Esta exigência de uma autonomia cultural e política por parte de comunidades diferenciadas em risco de se perderem na estandardização e imposição de modelos culturais, a recusa portanto de todo o tipo de sociedade desumanizante, encontra eco e parceiros em vários outros fenómenos sociais, alguns não políticos e não localizados como o movimento hippy e os seus antepassados beatniks já nascidos na década dos anos cinquenta, outros que, embora não ligados a comunidades, introduzem a interferência política, como o movimento contestatário dos intelectuais russos ou o dos estudantes de Berkeley, na Califórnia que se espalhou pelo mundo até culminar em França em 1968.
É curioso verificar que, se parte desta juventude violenta, ao arrefecer em frustração, se marginalizou como os seus colegas hippies, não fugiu no entanto para Katmandu mas simplesmente para o campo, na procura de comunidades rurais em que se integrar, procurando relações com os outros homens e com a natureza, mais directas e verdadeiras.
Esta tomada de consciência pacífica ou violenta, de que o resultado da era industrial, ao lado de reais vantagens, trazia males gravíssimos, foi pouco depois coadjuvada por outra, mais alarmista ainda, pois, se a primeira incide em erros de caminho, a segunda aponta para o fim catastrófico desse caminho.
De facto, a descoberta do mundo e das suas riquezas e o desenvolvimento fulgurante da técnica, filha dilecta de uma ciência triunfante, toda poderosa, assassina de deuses inúteis, dera à planetização consequente do viver humano o carácter de marcha ascendente e irresistível, o tom de urna aventura excitante cujas metas brilhavam já como paraísos acessíveis.
O toque a rebate já foi no entanto dado e, se ainda ouvidos moucos o não ouviram, na surdez dos interesses privados ou políticos, não virá longe o tempo, esperamo-lo, em que a maioria de-repente terá consciência do suicídio colectivo a que a espécie humana está condenada pelas mãos da era industrial, criadora de bens e de serviços, cada vez mais opressivos, cada vez mais desumanizantes.
Felizmente já não se prega no deserto quando se alude à poluição, ao esgotamento dos recursos naturais, à degradação da paisagem, ao desaparecimento irremediável de espécies animais, à «morte» de lagos, rios e mares. A ecologia é hoje o traço de união mais forte que une todos os que, por cima de crenças, cores, países e gerações, sobrepõem aos seus Interesses imediatos e egoístas a preservação de um mundo vivível, esta terra dos homens que é de todos e que é só uma.
Temos assim que a condenação violenta ou pacífica da sociedade pletórica e mecanicista da era industrial se apresenta em duas correntes convergentes, uma psicológica, procedendo da recusa da degradação consequente das relações humanas, a outra científica, partindo da consciência lúcida da degradação progressiva e, por fim fatal, da própria terra.
Esta dupla condenação, que é simultaneamente um atestado de óbito, mostra também que é necessário e urgente que cada povo, ultrapassando os sistemas vigentes da mitologia política, redescubra a forma de viver em comum que lhe é peculiar e que possibilite o desenvolvimento harmonioso do homem nas suas relações com Deus, consigo próprio, com os outros homens, com a natureza. Não é outro aliás o sentido bíblico da palavra justiça.

XI - PODER POPULAR E DEMAGOGIA

Aqueles que nada têm aceitam o que lhes prometem mesmo que seja tudo. - Hipólito Raposo

Mas em Utopia onde tudo é propriedade pública, ninguém tem medo de ficar sem nada, desde que os armazéns públicos estejam cheios. Cada um recebe parte suficiente para si; por isso nunca há pobres ou pedintes. Ninguém tem nada mas toda a gente é rica — porque que maior riqueza existe do que a alegria, a paz de espírito e a libertação da ansiedade?
Thomas More

XI

A distribuição equitativa das riquezas é um fim desejável e por ela suspira a população mais pobre e todos aqueles que sofrem com o sofrimento dos outros.
O esforço mais antigo para alcançar este ideal encontramo-lo entre os Hebreus. De cinquenta em cinquenta anos, o ano jubilar marcava uma redistribuição de riquezas, pois todos os bens e propriedades voltavam à posse dos seus primitivos donos e as dívidas eram perdoadas. Deste modo, como sinal religioso do reconhecimento do domínio de lahvé sobre todas as coisas, se procurava tanto quanto possível evitar a acumulação excessiva de riquezas nas mãos de uns, exploradores da miséria ou da pouca sorte de outros.
Este costume, único na História, ressalta extraordinariamente pela sua singularidade, sobretudo quando o comparamos com os sistemas económicos dos grandes Impérios que rodeavam o minúsculo e insignificante povo judeu.
Esta aspiração de comunhão de bens concretizou-se depois, ainda dentro desse mesmo povo, nas comunidades dos essénios, pouco tempo antes de Cristo, e nas comunidades cristãs primitivas da Igreja de Jerusalém. O monaquismo retomou este gesto comunitário que se tornou uso e costume nas ordens religiosas desde a Idade Média até aos nossos dias. Aparece igualmente em algumas seitas protestantes e em comunidades islâmicas, hippies ou similares.
Estes exemplos são, no entanto, de grupos voluntários, minoritários, selectivos e mais ou menos marginais. A concepção de uma distribuição global da riqueza, extensível a toda a sociedade, se vinha há séculos surgindo periodicamente na ficção literária ou na especulação filosófica, só se afirmou como possibilidade concreta na segunda metade do séc. XIX com a doutrina marxista.
A sua realização não se reconhecia executável, no entanto, senão vindo atrás de revoluções sociais que constituíam, aliás, com as guerras -- e ainda constituem — os agentes normais e vulgares de redistribuição da riqueza, quer dentro de um país, quer de povo para povo.
O produto do saque, tanto humano corno material, fazia parte - fará ainda? - do salário do soldado ou do quinhão do revolucionário. Houve, é certo, chefes militares ou cabecilhas de revolta que se opuseram ao saque, chamando roubo ao que outros arvoravam como direito. O saque destrói muito mais do que redistribui, o que sempre acontece quando a «partilha» se faz à força...
Mas repartir está bem, saber repartir melhor ainda. Até é exequível uma partilha suficientemente justa. Sejamos optimistas neste ponto. Repartir, porém, pressupõe algo para repartir. É preciso conseguir produzir já com a intenção de partilhar... Aqui reside a dificuldade. O poder popular chamado à revolução retoma o instinto ancestral do saque, distribuindo, roubando ou delapidando as riquezas existentes, produzidas anteriormente, mas por fim dará por si, inevitavelmente, na penúria e no descontentamento geral porque o fizeram sobrepor a distribuição à produção, destruindo a engrenagem desta sem ter cuidado primeiro em manter funcionando qualquer outra que a não interrompesse de modo a garantir a contínua criação de novos bens distribuíveis.
É aqui que reside a dificuldade, de facto. A partilha põe uma produção comum de riqueza, não é equivalente ao saque até quando este se processa em nome de espoliações anteriores. Mesmo pondo de parte a desilusão do povo a quem foi demagogicamente prometida Ia grande vie para todos e imediatamente apenas com a apropriação das riquezas existentes, método que redunda sobretudo e vergonhosamente em único proveito dos supostos representantes do poder popular, continua enorme como a montanha de Maomé o facto de nunca ser fácil convencer aqueles que nada têm a produzir para todos.
A China parece ter resolvido o problema numa histeria colectiva constantemente alimentada com revoluções culturais ou seja manejando a população contra os perigos reais ou fictícios que dentro dela nascem ou podem vir a nascer. Assim o povo produz com entusiasmo revolucionário sem pensar por si, obedecendo cegamente a directrizes superiores a fim de se salvar dos monstros que vai sempre gerando...
Outros regimes caem francamente no sistema policial e repressivo. O Big Brother de George Orwell, espiando tudo e todos a cada momento é o já hoje clássico e triste símbolo da realidade quotidiana de muitos países em que teoricamente ninguém tem nada, tudo é de todos e todos produzem tudo para todos.
Já Thomas More, na sua Utopia, em que o viajante português descreve a cidade idílica em que tudo está devidamente distribuído, todos têm a parte que lhes cabe e lhes é suficiente, acaba por apontar de-repente que cada um tem mesmo de fazer o seu trabalho «porque há sempre gente que te está a observar». Não há de facto lugar nem para S. Francisco, nem para o monge budista nem para todos os poetas vagabundos à moda de Jack Kerouac...
Este constrangimento inevitável que parece acompanhar qualquer produção quando ela é para todos e para nenhum em particular, mas em benefício de uma entidade distribuidora, essa, nunca cem por cento pura, deriva da desconfiança visceral e antiquíssima que rói o povo em relação a entidades que ele pressente, adivinha e sabe não serem cem por cento puras. Há-de procurar sempre enganá-las, visto que lhes levam o que produz não tendo ele conhecimento directo para onde, para que mãos, para que fins, através de que manipulações, descontos, desvios, bolsos de burocratas, embora essas entidades lhe garantam determinados direitos de serviço de saúde, instrução e habitação.
O poder popular que é capaz de fazer sozinho uma revolução não tem capacidade para impor uma fiscalização por sua conta a qualquer minoria que tomou em seu nome a direcção centralizadora da sociedade igualitária. E até quando consegue um arremedo modesto não escapará à corrupção e ao suborno.
E no entanto o humanismo económico tem de partir exactamente do poder popular porque este não é só palavra de ordem que provoca as verdadeiras revoluções mas é também o único poder sobre o qual se poderá instaurar uma sociedade mais justa para todos e que hoje forçosamente se tem de colocar numa perspectiva ecológica, sem metas utópicas de abundância e num quadro de libertação e desenvolvimento humano que não cabe evidentemente nas estruturas policiais ou repressivas dos estados socialistas nem nas estruturas degradantes das sociedades capitalistas ou liberais.
Poder popular não é sinónimo de arruaça, de motim descontrolado, de massas raivosas, de barricadas intempestivas, de ocupações e saques. O poder popular é qualquer coisa de fundamental, forte, antigo e construtivo, que não deve ser confundido com a desordem, os gritos, a selvajaria. O anarquismo, que é a forma instintiva e contestatária de certo poder popular, assenta, não só na revolta que comporta violência, resposta da violência descontrolada à violência controlada da repressão e da injustiça. Ë algo mais. É o desejo profundo de uma ordem justa e livre.
Este poder popular fundamental exprime-se correcta e eficazmente com todo o seu valor ¡insubstituível quando se exerce directamente naquilo que lhe diz directamente respeito. Comissões de moradores, comissões de trabalhadores, assembleias de aldeia, sindicatos, municípios, comunas, corpos regionais. Aqui, quando o poder popular é efectivo e real, constitui a pedra de toque de uma organização social firme, fecunda e séria, construída sobre a rocha segura da vontade do povo respeitada.
Resumir o poder popular apenas ao sufrágio universal a favor de partidos, ou levar a comissão dos moradores da Picheleira a ter opiniões sobre o imperialismo americano, é o seu desvirtuamento na máquina burocrática e a sua manipulação demagógica.
De facto, se no seu campo próprio nada há de mais forte e sólido do que o poder popular, não só na recusa como na construção, nada há também de mais frágil, nada há de mais lisonjeável, manejável e ingénuo, sempre à beira de ser despedaçado, desrespeitado e de se afundar no desespero e no desalento, quando é arrastado para o campo dúbio das lutas políticas à escala nacional. O triunfo nunca será seu embora aconteça em seu nome, mas será o triunfo camuflado de qualquer facção ou partido que o desalinha e dele se serve e servirá, servidão tanto mais abjecta quanto, levado pelo engano, dificilmente voltará a ter expressão correcta e própria, tomando depois quando muito a forma explosiva do anarquismo ou o apelo e o anseio veemente do tirano salvador.
O poder popular só se subtrairá à pressão demagógica quando lhe for dado exactamente aquilo que lhe é devido, que ele merece e que todos merecemos e precisamos de que se apodere, isto é a liberdade de aconselhar, prevenir, refilar, inquirir, exigir dentro da sua comuna tudo e sobre tudo o que directamente lhe interessa e nela ter autonomia de decisão e execução, opondo-se assim eficazmente a qualquer poder central socializante.

XII - AS COMUNAS E O REI

Se o Estado se desvalorizar na sua forma constrangedora, tornar-se-ão necessárias instituições para arbitrar os conflitos... - René Dumont

A legitimidade da realeza é primigénia, prototípica e exemplar e portanto é a única originária e que larvarmente perdura sob todas as outras formas...
Quando houve em terras da Grécia, da Itália e da Europa plena e pura legitimidade, esta foi sempre a monarquia, quer queiramos quer não. - Ortega y Gasset

XII

Quando confinamos o poder popular à comuna, parecerá aos mais desprevenidos ou prevertidos por vozes demagógicas, que é com certeza nossa intenção subreptícia restringi-lo, diminuí-lo, dominá-lo. Trata-se exactamente do contrário. Dando-lhe a dimensão exacta ao seu valor imprescindível, haverá menos probabilidade de ser adulterado e mais de se exprimir com liberdade e proveito.
Além disso, a capacidade de socialização que possui quando actua na sua esfera própria é muito mais justa, eficaz e humana do que qualquer socialismo de gabinete, exactamente porque se efectua na prática para bem de uma comunidade restrita em que todos se conhecem e se reconhecem e não à maneira teórica, nivelante, rígida e impessoal da sociedade anónima socialista, tantas vezes catastrófica, exactamente por não ter em conta o elemento humano individual, pedra imprescindível nos caboucos de cada comunidade.
A comuna, quando não é completamente despojada da tributação por governos centrais esfomeados, mas pode aplicar como entender a maior parte dos seus rendimentos comuns, proporciona imediatamente aos seus habitantes uma participação política activa, sã e eficaz, consciente e livre de demagogia.
A comuna é um pequeno governo autónomo com a escala suficientemente pequena para não escapar às possibilidades de entendimento e de decisão dos seus habitantes e suficientemente grande para lhes poder prover às necessidades quotidianas sem ter que andar a lisonjear partidos, facções políticas, homens influentes, ou manejar longa e penosamente a papelada burocrática.
O velho refrão, infelizmente tão nosso conhecido, «a Câmara não tem dinheiro», para desculpar escolas sem vidros ou estradas com buracos, falta de água ou de esgotos, seria calado para sempre se não existisse esta jiga-joga de dinheiros em impostos para lá, em subsídio5 para cá. Subsídios é uma palavra humilhante que as comunidades deviam banir, passando a governar-se a partir das suas próprias forças.
Também não está vedado ao poder popular, centrado na comuna, que alargue o seu âmbito e aumente a sua força, se com as comunas vizinhas se concentrar em federações ou províncias para melhor cuidar de interesses comuns regionais, quer hospitalares, escolares, industriais, agrícolas, culturais e outros.
À dimensão comunitária dos casais, aldeias, viras, ruas, bairros, cidades e regiões, o poder popular iria ainda anexar a força sindical dentro das empresas que, vinculadas às comunas, teriam de passar a servi-las directamente e não mais a explorá-las quer em matérias-primas quer em mão-de-obra, e isto fossem patronais ou de auto-gestão, porque para o caso tanto faz. A auto-gestão não é só por si a solução ideal socializante, pois pode tomar formas encapotadas de capitalismo de grupo, se não estiver realmente submetida à comuna.
O sindicato tem de se articular com o poder comunal, quer através das uniões locais de operários de classes diferentes, os chamados sindicatos verticais, quer ainda através dos sindicatos horizontais, isto é, do mesmo ramo de indústria estabelecida noutras comunas. Por este segundo projecto decorrerão permutas de experiência técnica e o incremento da valorização profissional.
O papel das associações sindicais numa sociedade comunalista virá assim a ser a primeira contribuição para o esboço de toda e qualquer planificação industrial correcta, pois terá sempre em conta as possibilidades e as necessidades de cada comuna ou de grupos de comunas e as permutas possíveis ou desejáveis e não se irá basear no lucro absoluto a favor de particulares ou do Estado, seja em nome de uma riqueza nacional distribuível, porque estará sempre à partida eivada de colonialismo interior com os seus aspectos desequilibrantes.
Para quem está habituado a esquemas de desenvolvimento baseados na criação rápida de riqueza será difícil aceitar esta visão restrita, ecológica, comunitária e descentralizada do viver humano, sobretudo por ser evidentemente muito mais lenta e muito menos eficaz no aspecto total do rendimento.
Para quem está habituado a considerar toda a revolução como reivindicativa e classista, esta procura e reencontro das relações exactas entre as pessoas em comunidade parecerá um atalho escusado que não levará a luta nenhuma.
Para quem está habituado a ter o mundo rural como analfabeto e inculto, incapaz de se desenvolver por si até ao maravilhoso nível urbano, meta única desejável apesar de roída por dentro por mil bactérias, esta promoção imediata das comunidades rurais redundará no retrocesso inevitável a formas sociais arcaicas e condenadas.
E no entanto para a sociedade futura que vemos poder desenhar-se por sobre os limites frágeis e doentes da actual existência humana, parece-nos a comuna um dos caminhos possíveis, mesmo e seguramente ao preço de certa austeridade económica, para a recriação entre as pessoas de relações de convívio, cultura, recreio e sobretudo de diálogo para concerto de uma política directa comum, relações perdidas na euforia da produção da riqueza e bens de consumo, na reivindicação social e na urbanização desumanizante, criadora de solidão. O tédio, a fadiga física e psicológica, o ódio e o desengano do homem da era industrial são o resultado de uma secularização de vida, sacrificados que foram de ânimo leve todos os símbolos, os ritos, os usos e costumes ligados a esses valores comunitários afinal essenciais. Na ressurreição comunal ¡remos encontrá-los de novo, pois serão necessários ao próprio funcionamento da comuna.
Esta dimensão comunitária da sociedade não racionalmente global mas humanamente fraccionada é a base do comunalismo que acreditamos ser neste momento e para Portugal o viver político possível e desejável, pois não só corresponde à invenção da sociedade convivial conforme com os dados presentes e futuros da situação actual do homem na Terra mas tem em conta além disso as raízes históricas mais profundas da nossa tradição política.
E se falamos em tradição política não é para logo nos atirarem à cara com a monarquia, chamando-nos retrógrados por assim irmos buscar algo que foi enterrado há mais de cinquenta anos.
Toda a tradição política de um país deixa nele os vincos bem ou mal traçados de feitos, sistemas e ideais. Não renegamos nenhum deles, desde que valorados à luz da sua pureza intencional na procura constante da verdadeira libertação e felicidade dos Portugueses.
Não renegamos nem as Cortes nem o Rei, contrato exemplar entre a vontade popular e o poder legítimo, nem o absolutismo esclarecido, primeiro impulso para a modernização do País ao diapasão da Europa, nem o liberalismo com os seus ideais de fraternidade contra o despotismo dos grandes, nem a luta sindicalista, primeiro assomo da consciência de uma ordem social injusta.
E no entanto não é por amor rotineiro da tradição ou por saudosismo romântico que somos monárquicos mas porque nos parece que o Rei é o elemento unificador mais eficaz para evitar a pulverização da sociedade comunalista e, encarnando-o, libertar o instinto da identidade nacional.
Não é por ambição despótica absolutista que somos monárquicos, mas porque, estando o Rei fora de pressões materiais ou de partidos, é o único poder verdadeiramente independente e livre, base inequívoca da sua legitimidade e nele se acha o árbitro incorrupto para sancionar os conflitos inevitáveis entre os interesses comunais. Do mesmo modo, é serviço do Rei tornar possível a criação por exemplo de serviços nacionais de distribuição de energia, de saúde ou de transportes.
Será por idealismo fraternal que daremos às comunas voz contra o Rei se isso se tornar necessário. O Rei não se discute. Escolhe-se. E essa escolha é um direito contratual de parte a parte que tem de ser cumprido de parte a parte.
Constará ainda do serviço do Rei manter o equilíbrio entre o poder regional e as forças que o possam representar ou que necessariamente terão de o representar. É a justiça social que aqui apela para o Rei, o criador mais apto de uma harmonia entre as comunas ricas e as comunas pobres, quer através da tributação, quer da representação.
Seria jogo inútil e até prejudicial à ideia fecunda da organização comunal, tentar delinear ou definir os órgãos do poder comunal, regional e nacional e como se conjugam entre si.
A comuna e livre e livre é a sua criatividade. Acreditamos que o País liberto em comunas chamaria por si e para si o Rei, como garantia única da sua liberdade própria por sobre qualquer administração nacional que se mostrar imprescindível.
Se o Rei governa mas não administra é no entanto a presença pessoal, o Tu presente e permanente, impedimento constante a qualquer sufocação por parte do funcionalismo.
É evidente que não estamos delineando um sistema político perfeito, sem nódoas nem erros, resultado brilhante da razão e do raciocínio, à moda das futuras e felizes e estagnadas sociedades socialistas.
A vida é por sua natureza variada e variante e de soluções sempre diferentes. Nem os homens são seres impolutos, cobertos de perfeições. Nem o Rei por ser Rei será para sempre impecável. Naturalmente que haverá descontentamentos, desavenças, egoísmos, tensões. Naturalmente haverá também discussão, diálogo, soluções.
A sociedade é algo vivo que se constrói, por vezes em ritmos contraditórios e inesperados.
A sabedoria política consiste em prever-lhe quadros suficientemente maleáveis, à dimensão humana, para que cresça e se desenvolva ao sol da liberdade, sem quebrar nem definhar, em evolução constante.


Teresa Maria Martins de Carvalho