domingo, maio 30, 2004

NO FUNDO DE NÓS

CARTA DO CANADÁ

por Fernanda Leitão


Não era só eu, naqueles anos de férrea disciplina das agências noticiosas da Europa, que tinha pavor de casamento de príncipes e morte de Papa. Porque éramos nós, os das agências noticiosas, quem traduzíamos, interpretávamos, redigíamos, compunhamos, até ao mais ínfimo pormenor, aquela macia e gostosa papa que os jornais se limitavam a maquetar e a servir ao grande público. Quando casavam príncipes ou morria um Papa, nós trabalhávamos como escravos durante longas horas.

Valia pena? Parece que sim, a avaliar pela publicação integral das nossas prosas, em páginas e páginas, que depois víamos as pessoas devorar, reler, comentar. Quando, recentemente, casou o príncipe Filipe de Espanha com a plebeia Letizia, o fenómeno repetiu-se, agora amplamente ajudado pela cobertura directa das televisões. As multidões de espectadores e leitores de Portugal embriagaram-se de sonho ao mesmo tempo que as multidões, felizes e comovidas, que cobriam as ruas de Madrid e um pouco por toda a Espanha. Alguns comentadores inquietaram-se e tomaram este interesse popular por uma perigosa colagem à Espanha. Eu permito-me discordar.

Já vivi o tempo suficiente para ver como o nosso povo acorreu ás ruas, se quedou de ouvido colado à telefonia ou de olhos pregados na TV, para viver apaixonadamente o funeral da Raínha Dona Amélia, o casamento da princesa Maria Pia de Saboia, no Estoril, a visita da Raínha Iabel II e da Princesa Margarida a Portugal, a visita do imperador Hailé Selassié, da Etiópia, a trasladação das ossadas da mulher e filhas do imperador Pedro I para o Brasil, o noivado e o casamento do príncipe Carlos com Diana, o casamento e o noivado do nosso príncipe Dom Duarte de Bragança com Dona Isabel Herédia, os nascimentos e baptizados dos infantes nascidos desse matrimónio. Com o andar dos tempos verifiquei que era a mesma paixão subterrânea, inexplicada e intensa, que leva várias famílias do País Real a guardarem no fundo das arcas fotografias, faianças, moedas e outras recordações dos últimos reis de Portugal. Uma memória teimosamente conservada, de pais para filhos, mesmo em lugares longínquos. Em Timor, por exemplo. Ou em Angola, onde Paiva Couceiro ainda hoje é o santo e a senha da história por escrever, do mesmo modo que o príncipe D. Luís Filipe ficou como um garante da honra portuguesa para o povo de Cabinda. Ou em Moçambique, onde Mouzinho de Albuquerque é muito mais do que um nome.

Porque será? Tenho para mim que, no fundo de nós, há uma magoada saudade da monarquia. Magoada, porque a República começou tristemente por um crime e um mar de sangue, abatendo pessoas que o povo amava. E porque, encarando de frente o exemplo que sempre tem de vir de cima, o nosso povo, hoje mais do que nunca, que a hora é de fim de vergonha e fim de regime, não pode deixar de olhar com respeito, admiração e confiança os príncipes da Casa de Bragança. Espoliados pela República, de modestos meios, órfãos de pai e mãe muito cedo, nunca envergonharam a Nação nem desonraram o povo a que pertencem. Impuseram-se ao respeito do povo por mérito próprio, permanecendo fiéis a princípios de Pátria, iguais a si mesmos contra ventos e marés, servindo a Portugal e a Deus, não se servindo.

Não, o nosso povo não ficou de cabeça virada com o casamento real de Espanha. Não há esse perigo, porque o nosso povo nunca traíu, as élites é que têm sempre traído, nem há o perigo de Espanha, a braços com problemas sérios de unidade nacional, se meter na aventura de pegar ao colo em mais 10 milhões de pessoas que iriam exigir tudo e não dar nada. O que se passa, e todos evitam ver, é que o povo tem saudades de si mesmo. Tem saudades de Portugal. Porque, como há dias disse na TV o fadista João Ferreira-Rosa, uma coisa é viver na República Portuguesa e outra bem diferente é viver em Portugal.

Talvez seja a Hora. Aquela de que falou Fernando Pessoa.

quarta-feira, maio 26, 2004

A «PAIXÃO» E AS PAIXÕES

Por Teresa Maria Martins de Carvalho

Quando saltou para a imprensa a primeira notícia de que Mel Gibson tencionava realizar um filme sobre a “Paixão de Cristo” em que os actores falariam em aramaico e em latim, os risos soltaram-se como se fosse a coisa mais ridícula do século, um gesto desafiador e grotesco.

Qual era a ideia dele? E depois soube-se que, durante as filmagens haveria Missa diária, celebrada em latim... Levantou-se o clamor: “Mel Gibson é um fundamentalista, um Lefevriano, adepto de alguns aspectos mais reaccionários, mais “doloristas” da fé católica, é da Opus Dei, etc..

De facto, o realizador foi buscar a Roma um padre pertencente à Congregação dos Rominianos (Quem era Romini, o fundador? Um reaccionário qualquer? Deixem-me rir!) porque, com licença especial do Papa Paulo VI, celebrava a Missa de S. Pio V que considera uma “obra-prima absoluta” como nos confidencia em entrevista recente (Figaro magazine). Nessa entrevista este padre (irmão da escritora francesa Edmonde Charles-Roux) conta também como lhe era estranho dar a comunhão a um homem (o actor Cazeviel) maquilhado de Jesus Cristo... Cinema e Eucaristia, não pode dar...

Outra desconfiança surgiu, desta vez com mais força, com todo o lobby judeu a sustentá-la: “um filme anti-semita, pois nele se assinala que tinham sido os judeus que condenaram Cristo à morte na Cruz.” A obra ficou assim marcada com esse sinal repelente.

Finalmente a troça subiu, de novo, à tona, rodeada de evidente desprezo: “que ideia foi essa de filmar coisa tão obsoleta para este novo mundo, tão normal, tão laico?... Só um fanático o faria.” De facto, não houve nenhum produtor que arriscasse capital “em tão estúpida empresa, destinada a perder dinheiro, a ser um fracasso imenso.” Foi o próprio “fanático” Mel Gibson que pagou tudo com o seu dinheiro, tendo criado uma empresa especialmente para filmar o seu projecto. Quando o filme se estreou foi, imediatamente, um êxito de bilheteira (grande “melão” para as grandes produtoras...), muitas vozes lançaram o boato de que não haveria exibição em Portugal. “O filme é atroz, duma brutalidade enorme. Não terá público aqui”. A paixão de Cristo ainda está em cartaz e provocou a discussão que se sabe.

Várias deducções se podem retirar deste acontecimento e do pó que levantou.

· A ideia de pôr o pessoal a falar aramaico e latim foi uma ideia de génio. Quem aguentaria toda aquela gente a falar inglês?
· Se Mel Gibson queria fugir aos santinhos, “azul e cor de rosa”, e mergulhar no drama de modo realista e sério, a brutalidade da época surgiria, inevitavelmente. (Daquela época? E hoje? O Holocausto? As mãos cortadas aos ladrões e as mulheres apedrejadas até à morte, segundo a “sharia” nos países muçulmanos? Nem vale a pena insistir...)
· “Os judeus não tiveram culpa da morte de Cristo na Cruz. Foram os romanos e Judas”. Para elucidação deste ponto será aconselhável a leitura dos relatos evangélicos da Paixão. Naturalmente, não foram estes judeus de agora (Sharon e Cia) mas os daquela época, mais ferozes...
· “Os legionários não eram tão brutais, com certeza. Eram romanos e civilizados. Brutais são os soldados americanos que torturam prisioneiros iraquianos”. Em primeiro lugar, quanto à bondade dos antigos romanos, estamos conversados. Aliás, aqueles legionários já nem seriam romanos nem mesmo italianos, mas provavelmente sírios, ardácias, albanos... Eram recrutados nos confins do Império quando o serviço era nesses confins... Civilizados?
· “Aquela pancadaria era exagerada. Ninguém aguentava vivo”. É verdade, tanto que Jesus não aguentou levar a cruz (foi Simão de Cirene) e esteve pouco tempo crucificado. Os crucificados “normais” levavam mais tempo a morrer, às vezes dias... Quando José de Arimateia foi pedir o corpo de Jesus a Pilatos este ficou admirado de Jesus já ter morrido. Deu todo o seu sangue...
· "Assim, tirada do contexto evangélico, a Paixão não tem sentido” argumentam os bons católicos, entre os quais os bispos franceses. Ora o que Mel Gibson quis filmar foi exactamente a Paixão, aquela que contemplamos quando rezamos a “Via Sacra” com o Papa, em Sexta-Feira santa, no Coliseu de Roma. O realizador, aliás, faz os flash-backs necessários para lembrar os textos evangélicos a quem os conhece. Para quem os não conhece o filme não faz sentido nenhum, de facto.
· “Mel Gibson acrescentou coisas que não vêm nos Evangelhos”. É verdade, como o episódio da Verónica, por exemplo, que pertence à piedade popular e se repete, incessantemente, em todas as Procissões dos Passos, sem levantar clamor. A mulher adúltera, que estava para ser apedrejada e que Jesus salvou in extremis, não era Maria Madalena, como Mel Gibson quis fazer crer. O episódio é, no entanto, cinematograficamente, muito belo. Do mesmo modo a Pietá, com Nossa Senhora com o Filho morto no colo, também não pertence ao relato evangélico. Presentes à sepultura (que é pena não ter sido dada no filme...) estavam, ao longe, três mulheres que viram onde tinham sepultado Jesus e que vieram ao túmulo dois dias depois. Foram as primeiras testemunhas do túmulo vazio e da Ressurreição... Mas a Pietá (Nossa Senhora da Piedade, em português...) é uma presença muito forte na iconografia religiosa, que pertence também à devoção da Via Sacra. A presença de Satanás em todo o desenrolar da Paixão, realiza a ameaça da última tentação no deserto, em S. Lucas: “retirou-se de junto dele, até um certo tempo” (Lc 4, 13). O tempo da suprema tentação é na Paixão, não no início da vida pública de Jesus. “Satanás entrou em Judas”... conta-nos ainda S. Lucas (22, 2) e, no filme, ele está presente na Agonia no Horto onde a presença da serpente recorda-nos o pecado de Adão, no Génesis, ali, diante do “novo Adão” como lhe chama S. Paulo e que, com “a sua obediência até à morte e morte de cruz” (Fil 2, 8), vai gerar uma nova humanidade. Do mesmo modo, quando, no caminho para o Calvário, Jesus encontra sua Mãe (episódio não evangélico mas pertencente à Via Sacra, e lhe diz e promete como a querer explicar-lhe todo aquele sofrimento: “Eu vou fazer novas todas as coisas”, que é uma frase do livro do Apocalipse (Ap. 21, 5), livro que frisa a Redenção da humanidade realizada pelo Cordeiro imolado e que faz eco ao Cordeiro obediente, ao homem das dores, imagens que o profeta Isaías evoca, na sua descrição do martírio do Servo de Javeh, em que os cristãos vêm a figura profética de Jesus Cristo sacrificado (Is 53, 4).
· É brutalidade excessiva. Não era preciso mostrar tanta violência. Chega a ser pornográfico”... como decide um iluminado crítico de cinema do jornal Público. Para ele certamente o filme não fará sentido e ficou cego àquilo que perpassa por todo o drama, a permanência constante do perdão e ausência de qualquer ameaça de “vingança”, esse valor supremo da nossa sociedade actual. Os Bispos franceses lamentam de que assim não se pode mostrar a Paixão de Cristo às crianças. Pois não. É uma execução capital. A preocupação pastoral fica-lhes bem mas este filme não é uma lição de catecismo infantil. Para nós, adultos, bem precisávamos de um abanão destes e não de uma Paixão light.


O escritor francês Daniel Goldhagen, a propósito do filme, acha que “a Igreja deve fazer tudo para combater o anti-semitismo nos próprios católicos e em numerosas passagens da Bíblia cristã.” (entrevista na Revista Lire, Maio de 2004). Esta “revisão” dos Evangelhos para ficarem mais conformes com o “politicamente correcto” é uma boa ideia. Ninguém ainda tinha pensado nisso. Nem o Concílio Vaticano II... Francamente!

Da mesma opinião é um esclarecido leitor do Público que, numa carta (10 de Maio), se insurge contra o “dolorismo” de Mel Gibson e da Igreja, que repudia, por não ser evangélico. Esqueceu-se que o sofrimento humano vai buscar sentido à Paixão de Cristo, participando nela, como diz S. Paulo, valorizando-se e justificando-se na obra de Redenção, porque o Senhor, como diz Pascal, “está em agonia até ao fim do mundo.”

A este propósito, lembro o assombroso tríptico de Mathias Grünewald (séc XVI) em Ingelheim em que a figura do crucificado é mil vezes mais dolorosa do que a do filme “A Paixão de Cristo”. Essa imagem insuportável tem contraponto no mistério do Ecce homo da pintura portuguesa medieval (Museu Nacional de Arte Antiga). A “Paixão” mostra-nos, ao mesmo tempo, o imenso amor de Deus e a brutalidade dos homens.

No fim do filme, é projectada a longa lista dos colaboradores e nela se agradece aos jesuítas, pelos vistos conselheiros de Mel Gibson... Ninguém se lembrou de dizer mal dos jesuítas... que tão mal aconselharam o realizador. Ou não?


P.S. – Já está em exibição «Kill Bill 2» para grande felicidade dos críticos amachumados. Uma Thurman pode, por vingança, matar toda a gente. Foi alívio. Não haverá casos de consciência!

terça-feira, maio 25, 2004

A HORA DO OCIDENTE

Por Mendo Castro Henriques

De ambos os lados do Atlântico, perante o calendário da retracção americana do Iraque, ouve-se afirmar que, se os Estados Unidos fracassam, é o conjunto do mundo ocidental que fracassará. Acrescenta-se que o fim da esperança de um Iraque democrático, será o toque de finados dos regimes muçulmanos moderados; e que a derrota da maior potência militar será a oportunidade dos fundamentalistas.

São tudo argumentos errados e, sobretudo, nocivos. Assentam na ideia do Ocidente como um eixo geopolítico mantido pela confrontação com um inimigo comum, que há quinze anos era efectivamente a URSS e que agora seria o Islão.

Há uns dez anos atrás, na Foreign Affairs, Owen Harries antecipava o declínio do eixo ocidental, devido ao desaparecimento do inimigo comum. E desde então, mentes insidiosas têm avisado que está à vista o fim da aliança ocidental, excitando a comunicação social de massas e perdendo de vista o bom senso das populações.

Charles A. Kupchan, ex-director de Assuntos Europeus no NSC de Clinton, em O fim da era americana, 2002, chega a falar da possibilidade de uma "guerra civil" entre os EUA e a UE. O Ocidente estaria fadado a dividir-se em duas metades, como o Império Romano após o século III. Robert Kagan escrevinhou que os Europeus descendem de Vénus e os americanos de Marte. Há ressentimento contra os EUA, apresentados como cow-boys grosseiros; Michael Moore acaba de ganhar a Palma de Ouro de Cannes. E boa parte dos media esquece que a tal Europa efeminada acaba de se alargar com sucesso na planície central, na cintura báltica, e a todas as ilhas do Mediterrâneo.

Todo este debate sofre da doença infantil dos debates: falta de cultura e de memória. O Ocidente provou que existe após os ataques do 11 de Setembro, quando os parceiros europeus da NATO invocaram o art.º 5 para com os EUA. O Ocidente prova que existe ao realizar o grande debate sobre se a Guerra do Iraque é justa, ao condenar sevícias e crimes de guerra, e ao defender a criação de regimes livres e democráticos, onde puderem ser criados de dentro para fora, e não à força. Por tudo isto, o Ocidente não vive à custa dos inimigos. Existe por si próprio.

Os princípios desta ordem ocidental vêm do fim da Antiguidade, sendo indicados na legislação de Justiniano como a força, a razão e a revelação. Desde então, o soberano ocidental deve ser um “imperator”, capaz de defender o Estado com a força das armas; um “religiosissimus juris”, pois a ordem jurídica tem fundamento racional e um “defensor fidei”, que sustenta a verdade revelada. Durante a Idade Média, os princípios de “imperium”, “studium” e “sacerdotium” definiam a organização dos três estados.

Na concepção historicista do séc. XIX estas bases foram apresentadas como os contributos da Grécia, de Roma e da religião judaico-cristã. E no séc. XX, após o aviso prematuro do declínio do Ocidente, os termos foram revitalizados na NATO, considerando-se a vertente religiosa assumida pela defesa da dignidade humana. E agora mesmo em 2004, na versão minimalista do Tratado Constitucional Europeu, refere-se os valores do humanismo, do respeito pelo direito e da decisão de forjar um destino comum.

Esse é o Ocidente que conta e a ser esfregado na cara dos Kagans do nosso tempo, dizendo-lhes que Camões, que percebia em primeira mão de defesa nacional e de letras e artes, não via problema nenhum em afirmar que os Portugueses descendem de Vénus e de Marte, unidos contra o intrigante e intriguista Baco que vem do Oriente.

Efectivamente, os desacordos sobre o Iraque não impedem a aliança ocidental. A NATO continua a ter a missão de facilitar a reconciliação europeia, integrando-a na segurança transatlântica. A estabilidade democrática na Europa central e do Leste é uma tarefa a prosseguir e o alargamento da segurança global para a área euro-mediterrânica é cada vez mais necessário.

Claro que há problemas pelo caminho. A luta anti-terrorista não deve distrair a atenção ocidental do projecto de uma Europa unida e livre. Os EUA só perdem se pretenderem refazer o mundo à sua própria imagem. O multilateralismo não pode ser uma fachada para o anti-americanismo. Sem acordo na aliança ocidental, não se podem esperar da ONU soluções eficazes. São desafios para os dirigentes ocidentais que têm as instituições capazes para os enfrentar.

sexta-feira, maio 14, 2004

AS RAZÕES DE O SER

Por Paulo Teixeira Pinto


Sou monárquico. Isso sei-o bem.

Desde quando sou monárquico? Isso já não o sei dizer bem. Desde sempre? Bem, pelo menos desde que me lembro. Porque sei que desde o momento em que, ainda adolescente, meditei pela vez primeira sobre o assunto descobri, no mesmo instante, que era, naturalmente, monárquico.

Porque sou monárquico? Como acabei de dizer, para mim tratou-se de uma revelação natural, isto é, feita de acordo com a própria natureza das coisas. Não que tal decorra como inerente à própria condição humana, mas no meu caso pessoal resultou do reconhecimento da relação emocional e racional existente entre alguém que é português e Portugal, o mesmo é dizer entre uma ínfima parte e o todo a que esta pertence, uma Mátria que se fez Nação sendo um Reino.

Portugal ganhou identidade fazendo-se unido na sua pluralidade. E o que precisamente congregou e conferiu unidade às diversidades que sucessivamente lhe foram acrescendo foram os seus reis. O que tinham em comum todos aqueles que foram fazendo Portugal, no curso dos séculos e nos domínios das terras cujas fronteiras estavam sempre mais distantes, era o respeito a quem os conduzia e à bandeira que todos representava. Neste sentido, portanto, pode dizer-se que Portugal , porque nasceu, cresceu e envelheceu como Reino, é sem dúvida uma construção monárquica. Nada de mais natural, por conseguinte, do que um português gostar de gostar de Portugal, e só por isso reconhecer-se monárquico. Sem com isso se pretender, obviamente, que não haja portugueses que sejam republicanos e patriotas.

Porquê ser hoje contra a República? O problema é assim frequentemente colocado, embora o ponto não seja esse, antes o seu contrário. Não são os monárquicos que estão contra a República, mas os republicanos contra a Monarquia. Pois se foram aqueles quem derrubou esta...

Ser monárquico não é ser contra alguém ou alguma coisa. É ser por um ideal e estar em defesa de quem o encarna. Porque o Rei não é o senhor do Reino mas sim quem personifica em cada e determinado momento todos aqueles que vivem com identidade comum, num tempo comum e num espaço comum. O Rei é o primeiro servidor da comunidade, ou, dito de outro modo, o Rei é o último dos súbditos do Reino.

Nós, os monárquicos portugueses, também sabemos bem, à entrada do terceiro milénio, que a tradição que encerra a monarquia não é sinal de antiguidade, mas fonte de modernidade. Porque é uma prova de esperança. Esperança que Portugal não se dilua nuns putativos Estados Unidos da Europa. Não desconhecemos que só os povos que preservem os códigos da sua própria identidade poderão permanecer enquanto tais. Sem dúvida que é legítimo que alguns pretendam ser apenas europeus. Mas é mais legítimo ainda querer continuar a ser o que se é: portugueses por natureza e universais por vocação, logo também europeus por consequência.

A Europa não é, nem será nunca, uma Nação. E se não o é, nem pode sê-lo, também não deve pretender fingi-lo. Acontece que o faz. E sucede que o fingimento consiste em mascarar diversas Nações com as vestes de um Estado Federal. Ora, tal transformismo só é possível de encenação se nesta participarem abstractamente os chefes de Estado actuais. Resultará sempre realmente impossível se for ensaiado com Reis de Povos.

Por isso, ser monárquico hoje não é só uma manifestação de lealdade histórica. É sobretudo uma declaração de luta futura pela defesa da Independência de Portugal, para sempre.

E é esta a razão fundamental para todos os portugueses redescobrirem a necessidade e a urgência de emprestarem a sua vontade à restauração da Monarquia. Sem que isto signifique que até agora estejam convencidos do contrário, porque felizmente quase não há republicanos militantes. Se bem que, infelizmente, muitos ainda se julguem republicanos, apenas porque enfim...

Assim será até à proclamação: monárquicos porque sim!



sexta-feira, maio 07, 2004

A NOVA CONSTITUIÇÃO E O REGRESSO A 1580

Por José Adelino Maltez

O recente anúncio de mais uma revisão constitucional mostra como tal decisão fundamental continua a estar dependente da hipótese de acordo entre o partido dominante da situação governamental e o principal partido da oposição parlamentar. Daí que os defeitos partidocráticos do actual sistema político sejam agravados pela tentação bipolarizadora, podendo ficar ainda maior a distância que separa a chamada classe política da chamada sociedade civil.

As revisões constitucionais continuam assim presas nas teias da partidocracia bipolar, nessa balança de poderes do sistema político português, onde prevalece o modelo de bipartidarismo entre partidos directores, apesar do ambiente ser formalmente pluralista.

Talvez seja conveniente lembrar aos dirigentes dos nossos principais partidos pós-revolucionários que o poder político numa democracia pluralista não é tanto uma relação entre governantes e governados, quanto uma relação entre a sociedade e o aparelho de poder. Ora, quando, ao arrepio destas tendências, os dois principais partidos portugueses assumem a pretensão de conformar a Constituição em termos da partidocracia de partidos directores, parecem esquecer que a complexidade do poder político em regime pluralista, vai além do mero aparelho de poder, exigindo que o Estado-Comunidade não se transforme num marginal, susceptível de se perspectivar como um pária ou um ser indiferente perante uma decisão excepcional como é a revisão constitucional.

Julgo que qualquer norma constitucional não pode deixar de inscrever-se no âmbito mais vasto de um pacto de união. Qualquer norma constitucional não é suprema por ser ditada de cima para baixo, isto é, do aparelho de poder para a sociedade, mas antes porque resulta daquela procura da perfeição democrática que é a única via que lhe pode dar esse sonho da soberania que se traduz no máximo consenso da comunidade.

Se a verdadeira autoria de uma Constituição deve caber à comunidade, qualquer desvio partidocrático do processo, apenas contribui para que se agrave a distância entre o Estado Aparelho e o Estado Comunidade. Sobre a matéria, apenas me apetece citar o antigo conselho de um dos pais-fundadores da Constituição americana, John Adams: "uma constituição é um padrão, um pilar, uma garantia, quando compreendida, aprovada e amada. Mas sem esta compreensão e amor, é como se fosse um papagaio de papel, um balão, pairando no ar".

De facto, as boas constituições, as constituições amadas e compreendidas pela comunidade, são as que vêm da república para o principado, as que constituem um Estado a partir da própria sociedade. Só assim é que as constituições podem unir. E só assim é que também podem durar.

Acontece também que a presente revisão à porta fechada, sufragada pelo Partido Popular, ao arrepio de todas as declarações que emitiu antes da subida à governamentalização, é o resultado de outra bipolarização dominante: a do oligopólio europeísta do Partido Popular Europeu, onde se integra o PSD, e do Partido Socialista Europeu, onde se dilui o PS.

Por outras palavras, PSD, PS e PP, abusando da posição dominante, fizeram com que Portugal voltasse ao ritmo de 1580, quando as nossas elites instaladas sufragaram Filipe II como rei de Portugal, ele que já acumulava o actual espaço da Espanha, da Bélgica, da Holanda e de outras largas parcelas da actual União Europeia.

Também então, distintos constitucionalistas, e candidatos a lugares cimeiros da supra-estadualidade, elaboraram uma científica teoria da justificação que demonstrava, com toda a qualidade hermeneûtica, que Portugal mantinha a sua formal independência.

Cá por mim, prefiro o partido de Febo Moniz e estou disponível para alinhar com o Manuelinho de Évora, contra todos os "ministros do reino por vontade estranha", esperando que distintos juristas da cepa de Francisco Velasco Gouveia e João Pinto Ribeiro preparem uma justa aclamação da república dos portugueses, onde as Actas das Cortes de Lamego possam subverter o conformismo situacionista dos Cristóvão de Moura e dos seus tachos eurocráticos ou os fundamentalismos teóricos dos Miguel de Vasconcelos.

(Artigo a publicar na próxima quarta-feira, dia 12 de Maio, na revista Tempo)