terça-feira, janeiro 30, 2007

Dizer não à irresponsabilidade

João César das Neves

Professor universitário
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt

Muitas pessoas votarão "sim" no próximo referendo do aborto só pela esperança de arrumar a questão de vez. No labirinto de manipulações, falácias e enganos em que este debate se tornou, esta é uma das ilusões mais amargas.

Ninguém tem dúvidas de que tratamos de uma questão que o País não quer tratar. A esmagadora abstenção no primeiro referendo em 1998 (68%) mostrou-o à saciedade e a apatia recente confirma-o. Trata-se de um problema que uma elite caprichosamente impõe à população, mergulhada numa conjuntura complexa, difícil e exigente.

Um punhado de forças políticas convenceu-se de que liberalizar o aborto constitui um imperativo de civilização e afirmou estar disposto a levantar sucessivamente esta exigência até que o País esteja de acordo consigo (ou, em certos meios mais extremistas, a forçá-lo na lei, mesmo que o povo se atreva a não concordar). Assim, espera-se que existam referendos até o resultado ser "sim", e que depois não haja mais nenhum.

O comodismo é uma das forças mais poderosas em Portugal. Perante este desinteresse da maioria do País, uma das opiniões que mais contarão no próximo dia 11 é a que afirma que o melhor é votar "sim" para ver se se acaba com isto e nos deixam dedicar ao que importa. Esta visão, extremamente atraente, não passa de uma das maiores tolices que têm surgido numa discussão cheia delas. De facto, a realidade é precisamente a oposta.

Se o "não ao aborto livre" vencer no dia 11 de Fevereiro, existe uma forte possibilidade de que a questão política fique resolvida. Duas derrotas sucessivas fazem hesitar até o fanático mais ardente. Os militantes histéricos quererão repetir a proeza, mas as forças sérias terão muitas dúvidas em arriscar terceira derrota. Além de que o clima internacional sobre o aborto está a mudar lentamente, e essa vitória da vida e responsabilidade em Portugal seria mais um passo na evolução. Tem de dizer--se que uma terceira tentativa para liberalizar o aborto entre nós é bastante improvável.

Pelo contrário, se o "sim" vencer, o aborto promete nunca mais deixar a actualidade mediática.

A razão principal não viria do lado partidário, aliás por razões semelhantes às invocadas no caso inverso. Embora se deva dizer que, com um empate entre os dois referendos, ambos certamente não vinculativos, seria muito mais provável existir um terceiro. Mas seria sobretudo a partir da vida real que o problema viria assombrar a política. Sobretudo no sector da saúde.

A primeira coisa que se passaria, se o "sim" eventualmente ganhasse, seria a manifestação do embuste da pergunta. Embora se fale de "despenalização", nada no sector penal ou judicial se veria modificado. Toda a frenética actividade daquilo que seria a real liberalização do aborto situar-se-ia nos hospitais.

Mas a liberalização está longe de ser garantida pela simples despenalização legal. O Código Deontológico da Ordem dos Médicos, para não falar do plurimilenar Juramento de Hipócrates, afirma que "constituem falta deontológica grave quer a prática do aborto quer a prática da eutanásia" (art. 47.º). Como poderão então médicos executar a imposição legal? Apareceria artificialmente uma nova luta intensa no meio hospitalar, que certamente não precisa de mais problemas.

Alguns dizem que esse documento vai ser revisto. Mas que devemos pensar de uma classe que muda as suas regras éticas ao sabor das votações e das modas culturais? Mais importante, como se pode entender que alguém que dedicou a vida à saúde dos outros, que estudou durante anos para ser agente da luta contra a dor e a doença, aceite uma carreira a fazer abortos? Como entender que os hospitais, centros de vida e saúde, passem a ser locais de morte higiénica?

O embate seria certamente muito doloroso. Haveria médicos suspensos por objecção de consciência, zangas entre serviços e direcções hospitalares, discussões entre colegas. Isto para não falar das manifestações e dos aproveitamentos políticos. Nunca se deve esquecer que nos EUA e em alguns países europeus, onde a liberalização não foi feita por referendos, nunca mais houve paz desde que ela foi imposta. Em Portugal, depois de debate tão acalorado, a sua eventual implantação criaria problemas muito depois de 2007.

Este é portanto um caso feliz em que, se Portugal seguir a sua consciência e valores tradicionais, também evita muitas zangas e dolorosas soluções. O único voto que arruma a questão é dizer não à tentação facilitista.

sexta-feira, janeiro 26, 2007

Aí está a boa América

por Luciano Amaral
Professor universitário

A boa América já apresentou os seus candidatos a controlar os destinos do mundo a partir de 2008. Cada um deles com o seu toque folclórico: uma poderá vir a ser a "primeira mulher Presidente da América" (Hillary Rodham Clinton), outro o "primeiro Presidente negro da América" (Barack Hussein Obama), outro ainda o "primeiro Presidente hispânico da América" (Bill Blaine Richardson). Claro que ser "negro" ou "hispânico" (na verdade, tanto Obama quanto Richardson são mestiços) ou "mulher" não garante nada sobre o desempenho do cargo. Só que é destas coisas que se constrói essa qualidade esotérica das democracias modernas: a "elegibilidade". Mas se queremos ver a boa América em acção temos de olhar para outro lado, nomeadamente para o Congresso, que ela já controla. Ora, a semana passada, um conjunto de senadores da boa América votou uma resolução não vinculativa (non-binding, na linguagem local) sobre a guerra do Iraque. Convém começar por perceber os meandros constitucionais em causa, sobretudo no que respeita à convivência entre o Presidente e o Congresso em circunstâncias de guerra. De acordo com a Constituição americana, o Presidente é o comandante-chefe e só a ele lhe cabe a "condução da guerra". As grandes decisões estratégicas são suas e ao Congresso não cabe imiscuir-se nelas. Mas cabem-lhe apesar de tudo tarefas fundamentais. É o Congresso que autoriza a guerra e nenhum Presidente a pode declarar sem a sua autorização: por exemplo, por muito que Roosevelt quisesse entrar na guerra contra a Alemanha antes de 1941, não pôde sem receber a autorização do Congresso (a qual só veio depois de Pearl Harbor e de uma longa e penosa pedagogia do Presidente ao país acerca dos perigos de Hitler). Também a guerra do Iraque foi autorizada pelo Congresso em 2002. É verdade que na altura a maioria era republicana, mas a maior parte dos respresentantes da boa América deu então a sua autorização. Cabe igualmente ao Congresso autorizar o volume de financiamento da guerra. Qualquer decisão do Presidente que implique aumento de financiamento pode ser recusada pelo Congresso. Não propriamente a decisão, mas o finan- ciamento, o que põe em causa a decisão. Claro que há aqui um dilema constitucional, pois não financiar as decisões do Presidente pode ser confundido com intervir na "condução da guerra". Mas foi assim que terminou a Guerra do Vietname, quando o Congresso deixou de financiar o esforço militar americano e obrigou o Presidente Ford a encerrar a participação do país no conflito.

A recente resolução dos senadores refere-se à decisão do Presidente Bush de enviar mais cinco brigadas para o Iraque. A resolução inclui uma crítica à decisão, mas não a utilização de todos os meios disponíveis pelo Congresso para a tornar ineficaz. Por isso é "não vinculativa". Mas se os senadores quisessem ter actuado ao nível do financiamento podiam tê-lo feito, comprometendo a decisão estratégica do Presidente. Em termos políticos, essa seria efectivamente uma das duas únicas decisões coerentes. A outra seria não só não cortar os fundos como apoiar claramente o novo esforço do Presidente. A boa América tem-se oposto, alternativamente e de forma um pouco indistinta, à guerra em geral ou à sua condução. Se a oposição é à guerra em geral, então os senadores deveriam ter votado de forma vinculativa. No entanto, decidiram não o fazer. Se a oposição é à condução, então os senadores ficaram numa situação incoerente, porque o Presidente incorporou na sua decisão as críticas que a boa América lhe tinha feito: nomeadamente, demitiu Rumsfeld, aumentou o número de tropas e nomeou o general Petraeus como responsável operacional em Bagdad. Dadas estas condições, a boa América que criticou apenas a condução da guerra deveria agora apoiá-la. Mas mais uma vez decidiu não o fazer.

Estamos aqui perante o mesmo dilema que já tinha sido visível por alturas da divulgação do relatório do Iraq Survey Group. Por muito que se critique o Presidente Bush, só há uma política alternativa à sua: a retirada ou um qualquer compromisso preciso de retirada. A boa América decidiu não tomar nem um caminho nem o outro, optando em vez disso por manter todas as portas abertas: ela não quer ser responsável por uma retirada que se pode revelar desastrosa e também não quer ser responsável por um aumento de tropas e por uma mudança de estratégia que pode correr mal. Mas também não se quer desvincular daquilo que possa correr bem. Por isso seguiu a via oportunista: se as coisas começarem a correr bem, pode sempre dizer que se deveu à sua influência, se correrem mal, que já tinha avisado que iam correr mal.

Até pode ser uma boa estratégia para garantir o futuro da boa América e amparar os seus candidatos às presidenciais do ano que vem. Não se pode é dizer que seja exactamente um política dignificante. Mas quem acreditou que as coisas iam mudar muito? Esta América pode ser boa, mas não é parva.


In Diário de Notícias, 25 de Janeiro de 2007

sexta-feira, janeiro 05, 2007

Boa poupança, má poupança

CARTA DO CANADÁ

por Fernanda Leitão

Quando o primeiro-ministro decide reformas de fundo e apela à sensata contenção de despesas, públicas e privadas, a maioria da população concorda. Só assim se pode compreender que, apesar da gritaria de uma oposição inábil e desorientada, de uma comunicação social dita de referência que parece falha de coragem, apesar disso, dizia, as sondagens dão um amplo apoio popular ao governo. Finalmente, a maioria da população compreendeu que as reformas só pecam por tardias e que o atraso com que vêm (de uns bons 20 anos), se fica a dever a políticos que mais se importaram em ganhar eleições, para manterem cargos e mordomias inerentes, do que com a regeneração do país. Dito de outra maneira: o atraso na enunciação e implementação destas reformas (hoje urgentíssimas) tem de ser posto na conta da partidocracia, desdenfreada e sem escrúpulos, que tem sido o ganha-pão nutrido dos barões da política e dos sindicatos.
Quando de vários quadrantes oficiais, incluindo o honestíssimo Silva Lopes e o perseverante Medina Carreira, aconselham um regresso à poupança, todos temos de concordar que é mais do que tempo para os portugueses deixarem de viver muito acima das suas possibilidades, com recurso a um endividamento que toma proporções dramáticas. Na verdade, é mais do que tempo para os portugueses perceberem que a União Europeia (UE) não é a Santa Casa da Misericórdia. Os portugueses têm de voltar ao seu natural: qualidades de trabalho, afincado esforço, brio e frugalidade, que garantam mais o Ser do que o Ter. Não pode continuar a bandalheira de se julgarem no direito de tudo exigir e de nada produzir.
Este apelo à popoupança é comum em muitos países ricos. É o caso do Canadá. Todos temos por aqui sido solicitados a não esbanjar energia eléctrica e água, a fazermos reciclagem de tudo e mais alguma coisa. O Canadá é o país com maior reserva de água potável no mundo, além de contar com substanciais jazidas petrolíferas, de gás natural e de carvão, para além de possuir reactores nucleares fornecendo electricidade. Mas sendo um país generoso e respeitador dos direitos das pessoas, exige que a sua população não comprometa o futuro dos que vêm depois de nós. É tão claro e simples como isto.
O governo de Sócrates está no caminho certo quando preconiza, e realiza, poupanças que, para além do mais, são pedagógicas.
É por isso que, usando a liberdade democrática, me permito condenar a má poupança sobre os portes pagos da imprensa regional. Essa é uma poupança que vai trazer grandes prejuízos a Portugal. Eu explico porquê.
Fora do país residem cerca de 5 milhões de portugueses. A única informação que, de facto, atinge, eu diria ensopa, repassa, o português emigrado, é o jornal da sua terra. Porque é ele quem lhe traz notícia de pessoas e lugares que conhece, que defende interesses que também são seus, que recorda costumes e usos com os quais se fez gente, que proclama o exercício de valores morais e sociais com os quais o seu carácter foi moldado. Nem a RTP-Internacional, nem a Radiodifusão Nacional, penetram de forma tão profunda, apesar de serem de boa qualidade. Digamos que são um complemento ao aconchego dado ao emigrante pelo jornal regional. Tanto assim é que, desde há muitos anos, a imprensa regional tem um universo de 4 a 5 milhões de leitores, números que nunca a imprensa de âmbito nacional, e até mesmo a desportiva, se gabaram de realizar.
É provável que alguma imprensa regional se tenha desleixado na qualidade ou mesmo dado guarida a acções pouco sérias, mas isso não admite generalizações. Vivendo Portugal em regime democrático, o diálogo é a sua obrigatória pedra de toque. Assim, seria pelo diálogo que se promoveriam fusões de empresas, venda de outras para mãos mais competentes, a reciclagem dos seus dirigentes e funcionários. Condená-la à morte devido ao pagamento de portes de correio, é injusto, é insultuoso, é pouco inteligente.
Injusto e insultuoso, porque os emigrantes não merecem esta acção governamental – tanto mais que, apesar de todos os pesares, continuam a mandar para Portugal 6,7 milhões de dólares POR DIA. Porque, apesar de enganados por secretários de estado e deputados que andaram cá por fora a reinar durante 20 anos sem nada fazerem de positivo, a não ser para os compadres e afilhados, apesar de tudo isso os emigrantes levantam alto o nome de Portugal, sacrificam tempo e dinheiro a manterem as tradições trazidas da Pátria, aguentam escolas privadas apenas por amor à Língua Portuguesa e não porque recebam de Lisboa ajuda ou incentivo. Apesar de as suas poupanças engordarem a egoísta banca portuguesa, essa dos lucros escandalosos, essa que nunca se deu ao trabalho de listar negócios e investimentos, incluindo acções na bolsa, que dariam maior rendimento ao emigrante e, ao mesmo tempo, fortaleceriam o nosso país com dinheiro de nacionais, com o que se teriam evitado lamentáveis cedências ao estrangeiro.
Este corte dos portes pagos traz consigo uma carga negativa incomensurável: representa o mais aboluto desprezo pelos emigrantes e, ainda por cima, é pouco inteligente porque não é com essa poupança que Portugal tira o pé da lama em que está atolado após 32 anos de loucura e inépcia. Penso que o governo foi mal informado, foi induzido em erro, até me fazerem prova do contrário. A ignorância do que se passa na emigração não abona em favor de quem governa em Portugal. E obriga os portugueses residentes no estrangeiro a baterem com a porta, como fizeram no tempo de Salazar. É que, como se tudo isto fosse pouco, até as férias nas Caraíbas e na América do Sul são bem mais baratas e repousantes do que as passadas em Portugal. Quanto mais o resto...
Senhor Governo: veja se emenda a mão. Há mais coragem e nobreza em reconhecer um erro do que permanecer nele.