quarta-feira, setembro 17, 2003

O perfil da Europa (II)

Por Manuel Alves

No princípio, as leis da Cidade Antiga não tinham preâmbulos. Era Platão quem dizia que obedecer às leis era obedecer aos deuses; o rei era um pontífice, o magistrado um sacerdote, a lei uma fórmula sagrada.

A cidade antiga não se formava lentamente por agregação de famílias ou de indivíduos. Estabelecia-se num só dia e por confederação de grupos. Na base, estava a família e a religião do lar, com o seu chefe, o seu deus e o seu altar. Acima da família estava a fratria, com um deus guardando as várias famílias. A seguir estava a tribo, e o deus da tribo. Por fim, quando as tribos resolviam fundar uma cidade concebia-se um deus cuja providência a todas abrangesse.

A cidade antiga não se formava sem o sopro de uma ideia religiosa. Antes de ser uma comunidade política, a cidade era uma comunidade religiosa. Eram os deuses domésticos e as divindades políadas que geravam o direito a que o cidadão submetia a sua alma, o seu corpo e o seu património.

Foi a aristocracia quem começou por retirar a autoridade política aos reis. Depois, libertados os clientes, criou-se a plebe que vai participar no governo da cidade. O sistema de governo na cidade antiga passou então a poder tomar vários nomes: monarquia, aristocracia e democracia. No Ocidente, esses nomes já pouco nos podem dizer: a monarquia não é mais o governo de um só; é interdito impedir o acesso ao poder dos medíocres; em nenhuma parte o poder é exercido pela maioria dos cidadãos. E, no entanto, há uma receita que continua a ter seguidores: “Se se quiser fundar a democracia – escreveu Aristóteles na Política (VI, 2, II) – far-se-á o que Clístenes praticou entre os atenienses: estabelecer-se-ão novas tribos e novas fratrias; os sacrifícios hereditários das famílias, substituí-los-emos por sacrifícios aos quais todos os homens serão admitidos; confundam-se, tanto quanto possível, as relações dos homens entre si, tendo o cuidado de destruir todas as associações anteriores”.

Estabelecida a democracia antiga, confundidas as relações dos homens entre si, destruídas todas as associações anteriores, estava aberto o caminho para o governo daqueles que se contentavam com o epíteto de tiranos. Enquanto os reis haviam retirado a sua autoridade do culto do lar; os tiranos eram apenas chefes políticos, com uma autoridade assente na força ou na eleição.

A democracia antiga acrescentou direitos políticos aos cidadãos, como poder votar-se na nomeação de alguns magistrados, mas nem um só direito individual conquistou o poder de resistir ao Estado. O Estado continuava a ser omnipotente na vida privada, na educação, na religião. Sócrates foi condenado à morte porque cometeu a grande impiedade de duvidar da Atena Políada. Anaxágoras teve o mesmo fim, depois de tornar pública a sua concepção do Deus-Inteligência.

Face à omnipotência de um tal Estado, percebe-se bem a importância, para cada homem, de possuir direitos políticos: só possuindo alguma parte da soberania podia o homem ser alguma coisa. Os cidadãos não estavam interessados na liberdade, queriam possuir algo que os outros homens pudessem ter em consideração. A segurança e a dignidade do homem consistia em ser membro de uma soberania.

A democracia de Atenas, exemplar a muitos títulos, não o era menos pelo apreciável número de magistrados: o arconte, que velava pelos cultos domésticos; o rei, que realizava os sacrifícios; o polemarca, que chefiava o exército e julgava os estrangeiros; os tesmótetas, que presidiam aos julgamentos; os adivinhos que consultavam os oráculos; os que acompanhavam o arconte e o rei nas cerimónias; os atlótetas, que preparavam as festas quadrianuais de Atenas; os prítanes que vigiavam pela manutenção do fogo público e sagrado; os estrategos, que cuidavam dos negócios da guerra e da política; os astínomos, que cuidavam da polícia; os agoránomos, que vigiavam os mercados da urbe e do Pireu; os metrónomos, que verificavam pesos e medidas; os guardas do tesouro; os recebedores de impostos; os encarregados da execução das sentenças...

Os membros do Senado – o mais importante dos órgãos políticos da cidade - eram sorteados, bem como a maioria dos magistrados. Os atenienses queriam o seu quinhão de soberania, mas desconfiavam muito dos caprichos do sufrágio universal. Só os magistrados que não exerciam funções de ordem pública eram eleitos, e só entravam na eleição aqueles que se submetiam à observação e ao interrogatório do Senado e do Areópago. Com a excepção dos atlótetas, as restantes magistraturas eram normalmente anuais, responsáveis e revogáveis a qualquer momento. Porque a maior parte destas magistraturas se repetia em cada uma das tribos e dos demos, era praticamente impossível dar um passo na cidade ou no campo, sem logo se topar com algum magistrado.

Apesar de tão grande número de magistrados, e da igualdade no acesso, nem por isso as guerras civis deixaram de avassalar a Grécia. Obtida a igualdade política da democracia, ficou sublinhada a desigualdade das riquezas, passando os homens a guerrear-se por interesses. Segundo os testemunhos de Aristóteles (Política, V, 7, 19) e de Plutarco (Lisandro, 19), os ricos nunca perderam o hábito de pronunciar entre si o seguinte juramento: «Juro ser sempre inimigo do povo, e fazer-lhe todo o mal que puder». E, em todas as guerras civis, diz Políbio (XV, 21, 3; VII, 10), tratava-se de deslocar as fortunas. Desde a guerra do Peloponeso até à conquista da Grécia pelos romanos, as inúmeras guerras civis oscilaram sempre entre as que espoliavam os ricos e as que os reintegravam na posse dos bens. Todo o demagogo fazia como esse Molpágoras de Cios que entregava à multidão os que possuíam dinheiro, massacrava uns, exilava outros, e distribuía os seus bens pelos pobres.

Tucídides, apesar de não morrer de amores pela democracia, considerava que “o regime democrático era necessário para que os pobres tivessem um amparo e os ricos um freio”. Preocupava-se com os meios capazes de assegurar a paz civil; o amparo dos pobres, num sociedade em que o trabalho era uma indignidade, era o seu direito de viver do sufrágio, fazendo-se pagar para assistir à assembleia, para votar, para testemunhar, ou para julgar nos tribunais (Aristóteles, Política, II, 9, 3; Aristófanes, Cavaleiros, 51, 255; Vespas, 682).

Quando os ricos estavam no poder, a democracia era uma oligarquia. A democracia dos pobres, essa, era invariavelmente uma tirania. O tirano começava sempre por ser um demagogo saído do partido popular. O meio de obter o poder estava em ganhar-se a confiança da multidão, e ganhava-se essa confiança declarando-se inimigo dos ricos. Assim o fizeram Pisístrato em Atenas, Teágenes em Mégara e Dionísio em Siracusa (Política, V, 8, 2-3; V, 4, 5).

Mas, e apesar da frequência das conspirações e das guerras civis, não esteve apenas na cupidez dos pobres e no medo dos ricos a causa da ruína da democracia grega e, por fim, da própria Grécia Antiga.

Quando os convencionais da União Europeia nos recordam a oração fúnebre de Péricles, na boca de Tucídides (II, 37) - «A nossa Constituição ... chama-se "democracia" porque o poder está nas mãos, não de uma minoria, mas do maior número de cidadãos» – não desconhecem decerto as profundas diferenças políticas e sociais que nos separam do mundo antigo, mas recordam-nos, talvez sem o desejar, que Péricles defendeu ali a Constituição de Atenas enunciando um novo tipo de "patriotismo" ao serviço de um projecto imperial.

Na oração fúnebre, as palavras de Péricles dirigem-se tanto a nativos como a estrangeiros, apresentando a democracia de Atenas como «um padrão de referência», como um modelo a imitar por todas as cidades gregas: porque «há igualdade perante a lei»; porque «dá aos homens a liberdade e a todos abre caminho das honras»; porque «mantém a ordem pública, assegura aos magistrados a autoridade, protege os fracos, e dá a todos espectáculos e festas que são educação da alma»; e, ao concluir, «Eis aqui porque os nossos guerreiros preferiam morrer heroicamente a deixar que lhes tirassem esta pátria; eis ainda porque quantos sobrevivem estão sempre prontos a sofrer por Atenas e a consagrarem-se-lhe.»

Para Péricles, a pátria deixara de merecer ser amada por nela estar o lar de seus pais, pela sua religião e pelos seus deuses. A pátria merecia ser amada pelas suas leis, pelas suas instituições e pelos seus direitos. O cidadão ainda tinha deveres e ainda se podia sacrificar pela sua cidade, mas porque nela usufruía de instituições que lhe davam vantagens.

O patriotismo mudara de natureza. No lugar do patriotismo da piedade e da fé dos primórdios da cidade, surgia o patriotismo das leis, das instituições, dos direitos e da segurança. O patriotismo tornava-se um sentimento variável, dependendo das circunstâncias e das incertezas das leis e do governo. Só se amava a pátria pelo seu regime político, e, se as leis eram más, o cidadão já nada mais encontrava a liga-lo à pátria.

No tempo de Péricles, havia na verdade um novo tipo de “patriotismo” dando os primeiros passos no palco da História – o patriotismo das ideologias. A Ideia de cada um tornava-se mais importante e mais sagrada do que o bem da sua própria pátria; o triunfo da sua ideologia, do seu partido, da sua facção, tornava-se-lhe mais querida do que o bem da sua cidade. Doravante, a cidade natal podia ser preterida por outra na qual se encontrassem as instituições de que se gostava. O exílio deixava de ser temido, podendo ser mesmo motivo de orgulho e de jactância. E daqui a armarem-se contra a própria pátria, não foi grande distância; muitos se passaram a aliar à cidade inimiga para, na sua cidade, fazer triunfar o seu partido. Esparta tinha partidários em todas as cidades jónicas. Atenas tinha partidários em todas as cidades do Peloponeso. Para terem a constituição que queriam, muitos gregos sacrificaram a independência da cidade a que pertenciam.

Moribundo o culto dos antepassados que fundara a cidade, enfraquecido o espírito municipal, por toda a parte os gregos passaram a lutar pelo estabelecimento de uma constituição do seu agrado, por uma constituição que consagrasse a hegemonia da cidade que tomavam como modelo. Não foi outro o teor do “patriotismo” de que Tucídides (III, 69-72, 82; IV, 46-48) nos deu demoradamente conta para mostrar como essa nova tendência dos espíritos contribuiu de forma decisiva para gerar e fazer durar a guerra do Peloponeso.

A mentira procura sempre imitar a verdade, mas não poucas vezes a verdade lhe responde com zombaria: no patriotismo das leis de Péricles está já bem presente a tendência do espírito, o «élan», que fez a fortuna dos conquistadores romanos.