segunda-feira, dezembro 27, 2004

A questão afinal é de regime

por António de Sousa-Cardoso*

A jovem democracia portuguesa acordou, há cerca de três semanas, surpreendida por um acto Presidencial inusitado para que não estava preparada e que parece ter, a despeito das muitas omissões, um pelo menos aparente agasalho constitucional. Para além do estranho (quase) unanimismo na opinião publicada que, com mais ou menos reservas, proclama um sentimento de velada compreensão pelo Presidente da República, o que pensarão os portugueses?

Primeiro facto estranho: A anunciada dissolução do Parlamento. Os portugueses sabem que existia maioria parlamentar estável e coesa. Nenhum português assistiu a desinteligências graves nos partidos da coligação que condicionassem o exercício próprio das funções de uma maioria Parlamentar. Os portugueses ficaram suspensos de uma explicação cabal para esta tão drástica medida. Desconfiavam do pior, claro está. Algo de muito grave que permitisse justificar a aparente desproporção da iniciativa tomada com a crueza dos factos conhecidos.

Segundo facto estranho: O Presidente demora doze longos dias a dar qualquer explicação ao País. Com este silêncio, permitiu as maiores especulações, as reacções mais violentas por parte de "quem se sentiu" e, decorrentemente, um ambiente de instabilidade e falta de credibilidade institucional que ao próprio Presidente cumpre vigiar e preservar.

Terceiro facto estranho: O Presidente mostra vontade de que o Orçamento do Estado, sobre o qual tinha mostrado tantas reservas, fosse aprovado antes da dissolução da Assembleia. Para ser vigiado e executado por quem, pensaram os portugueses?

Doze dias depois, os portugueses assistem às explicações do Presidente. Tudo visto, o chefe de Estado vem dizer que uma série de episódios ou incidentes suscitados pelo Governo no período de quatro meses, causou no próprio Presidente a ideia geral de que haveria uma "substancial instabilidade" e uma deterioração da credibilidade e imagem do Governo.

Os portugueses abrem a boca de espanto. O Presidente invocando incidentes que não nomeia, da estrita responsabilidade do Governo, mantém o Governo e dissolve a Assembleia onde permanecia uma maioria estável e coesa. O Presidente que invoca que o Governo não garante a consolidação orçamental e o crescimento económico, está quieto durante doze dias para que a Assembleia que quer dissolver, aprove precisamente o Orçamento que concretiza a política económica e financeira do mesmo Governo.

Os portugueses puxam pela cabeça. A memória do "pântano" está ainda fresca. A que incidentes se referiria o Presidente? À conhecida e muito propalada demissão de um comentador politico de uma estação televisiva? À sesta do primeiro-ministro antes de participar num evento de moda? À saída barulhenta de um dos ministros? Às criticas de alguns sectores económicos à proposta de Orçamento? Ao artigo de um antigo primeiro-ministro da mesma família política do Governo, falando da teoria da "moeda boa"?

Mesmo sabendo que a "substancial instabilidade" brota do conjunto destes factos e não de um isoladamente, os portugueses recordam o Governo anterior, com sucessivos episódios e incidentes, com membros do Governo que saíam barulhentamente, com anteriores primeiros-ministros da mesma família política a escreverem artigos críticos sobre a governação de então. Com o absoluto descontrolo das contas públicas. Com a ausência total das reformas que o País reclamava. Quais as diferenças, perguntam os Portugueses?

Para além da sesta, a diferença parece ser a de que o Governo de então não estava baseado numa maioria parlamentar estável. A diferença parece ser que o então primeiro-ministro se demitiu reconhecendo que o país caminhava para um "pântano". A diferença parece ser a de que o partido que minoritariamente sustentava o Governo tinha acabado de perder, estrondosamente, umas eleições autárquicas. O que vez então o Presidente? Insistiu com o primeiro-ministro para que continuasse.

Do que podem suspeitar os portugueses? Sabem que o Presidente foi líder do maior partido da oposição, batendo-se galhardamente contra os adversários políticos que hoje constituem o actual Governo. Sabem que o Presidente foi eleito pela família política do actual partido da oposição, contra os votos daqueles que elegeram a actual maioria. Sabem que o Presidente está quase no final do seu segundo mandato. É um Presidente a prazo que pode ainda querer no final do mandato, como aconteceu com o seu antecessor, ter o seu partido espaço de intervenção e de acção política.

Não vale a pena falar de eventuais teorias da conspiração, justificando que o Presidente fez agora o que não fez há quatro meses, porque não sentiu no seu partido credibilidade suficiente para vencer eleições. Chega pensar que, com estes dados, o Presidente confirmou aquilo que é natural na Chefia de Estado republicana. A dificuldade em ser imparcial e independente. A dificuldade em estar acima do jogo partidário de que ainda recentemente se emergiu. A dificuldade, em suma, de ser o Presidente de todos os Portugueses.

Quem já jogou o jogo, quem foi inclusive capitão de uma das equipas, não está em condições de ser um árbitro a prazo do mesmo campeonato. Esta a ideia sobre a qual vale a pena que os portugueses reflictam.

A questão não é tanto de qual o sistema político que a Constituição deveria acolher. A questão é muito mais de qual o regime que melhor se adequa às características que são exigíveis ao Chefe de Estado numa democracia moderna. Se quisermos um exemplo comparativo basta um olhar para a vizinha Espanha. Em quase 30 anos de democracia teve quatro primeiros-ministros: Adolfo Suarez, Filipe Gonzalez, José Maria Aznar e, desde Março, José Luis Zapatero. Cada um dos líderes de governo teve oportunidade de criar as suas equipas, executar os seus programas e apresentar contas ao eleitorado. Nos mesmos 30 anos de Democracia, em Portugal acaba de se demitir o XVI Governo Constitucional.

A Espanha passou para o pelotão da frente, nós fomos sendo ultrapassados. A Espanha que é um País com questões nacionais por resolver, com instabilidade social, com terrorismo, com uma imprensa livre e acutilante. Por detrás desta estabilidade geradora de riqueza esteve a Monarquia. Acima das conjunturas do momento, para além dos partidos e dos seus interesses, imune a grupos e lobbies, esteve e está o Rei. Sem estados de alma, sem preocupações de curto prazo, sem nenhuma agenda que não a determinada pelo interesse nacional. Foi o garante da transição, consolidou a Democracia. É agora o garante da estabilidade, da coesão nacional e da soberania do Estado.

Num momento difícil para Portugal, interrompemos pela discricionariedade do Chefe de Estado mais um ciclo político. E depois, senhor Presidente? O que pode acontecer se nas eleições de 20 de Fevereiro os portugueses decidirem confirmar o voto na maioria que sustentou o XVI Governo? O que fará Vossa Excelência que tomou decisões graves por "sucessivos episódios" se o sufrágio popular designar os mesmos partidos, chefiados pelos mesmos líderes para assumirem funções legislativas e governativas para os próximos quatro anos? Este sim, constituirá um grave incidente que nenhum sistema político em República será capaz de resolver.

Julgo que no final de tudo isto o senhor Presidente da República prestou um único serviço ao País: o de demonstrar com a sua acção inusitada que nunca como hoje se tornou tão relevante, tão actual, uma profunda e séria reflexão sobre qual o regime que melhor serve o futuro de Portugal e dos portugueses.

*Presidente da Causa Real

(In «Público», 20 de Dezembro de 2004)

O vírus da III República

por António de Sampayo e Melo

«Os reis - não os presidentes - são os melhores intérpretes da magistratura serena.»


O SENHOR Presidente da República, ao dissolver a Assembleia, tomou uma decisão discutível que fragiliza a chefia do Estado.

Assumiu-a, é certo, a coberto de uma competência exclusiva e no desempenho do que, em finais do 1.º mandato, definia como magistratura de iniciativa. E, por razões que desconhecemos, disse que assumira «a responsabilidade dela apenas perante os portugueses».

Mas perante quem mais a poderia assumir? E o que significará assumi-la «perante os portugueses», em finais do 2.º (e último) mandato?

O seu acto veio satisfazer os que, com ou sem razão, desejavam a realização de eleições antecipadas, mas os motivos que avançou - excessivamente subjectivos -, em nada vieram contribuir para o esclarecimento dos portugueses ou para o aumento da confiança na chefia do Estado.

Antes pelo contrário. Nesta república bicéfala - seguramente uma das menos prestigiadas da Europa -, é já tido por adquirido que, em 1.º mandato, os presidentes agem como «rainha de Inglaterra» e, em 2.º mandato, dão largas à sua (também) real gana política.

Esta é a síndrome do 2.º mandato, o vírus da III República e uma das mais caricatas patologias da forma republicana de organização do Estado. E, no presente turbilhão político de que é um dos principais protagonistas, de pouco vale ao senhor Presidente da República pretender que exerce uma magistratura serena, quando é óbvio que lhe falta a necessária serenidade política e que não dispõe de um quadro institucional que o acredite.

Com efeito, em República, por melhor e mais íntegro que seja o seu presidente, nunca este se livra da suspeita de favorecer ou de tentar favorecer o grupo que o elegeu ou que o sustém politicamente. E é neste clima que se forja o complexo de afirmação que leva os recém-eleitos a afirmarem-se «presidentes de todos os portugueses» e os de fim de mandato, a praticarem actos cuja responsabilidade - dizem - «apenas» assumem «perante os portugueses».

Em República, só muito raramente se verifica uma identificação entre o povo e o chefe do Estado. Tinha razão Salvador Allende, quando, distanciando-se das ficções republicanas, dizia: «Não sou o presidente do Partido Socialista; sou o presidente da Unidade Popular. Tão pouco sou presidente de todos os chilenos. Não sou o hipócrita que o diz, não. Eu não sou o presidente de todos os chilenos».

Ora, não há uma coincidência necessária entre a chefia do Estado e a chefia da nação e a representação política de um povo não pode assentar em ficções. Só em monarquia é frequente verificar-se uma esmagadora identificação do povo com o seu rei, acolhido como chefe do Estado e da nação e primeiro servidor da «res publica».

Os reis são os melhores intérpretes da magistratura serena, pois são preparados para o seu exercício. Em monarquia, mesmo quando a Lei Fundamental o permite, o chefe do Estado não dissolve a Assembleia por razões subjectivas. Em monarquia, o chefe do Estado não tem complexos de afirmação.

Portugal tem que pensar!

(In «Expresso», 24 de Dezembro de 2004)

sexta-feira, dezembro 24, 2004

PANETONE MILANESE

CARTA DO CANADÁ

por Fernanda Leitão


Quando chega o Natal e tudo se faz mais íntimo para os que têm família, de uma solidão quase irreal para os que não a têm, e lá fora o frio dói, mas ainda assim menos do que as recordações, entro na silenciosa celebração comigo mesma. E então ponho a minha mesa de Natal, longa e larga, a ela se sentando aqueles que já passaram pela vida e deixei de ver, serenos e confortados por uma enorme lareira. Com eles converso do que vai indo, do que podia ter sido e não foi, retomando o diálogo interrompido um pouco bruscamente. Porque é sempre bruscamente que a morte nos cala.
Ontem, neste silencioso conversar com os que amei mais ou menos, mas amei, comprei um panetone milanese com a naturalidade de quem compra um mimo para um amigo. Por ter sentado à minha longa mesa o Aldo Trippini, um jornalista milanês que, nos anos 60, dirigiu o escritório de Lisboa da United Press International. No Natal, o Aldo convidava-me para almoçar em sua casa, com a mulher e o filho, um bambino lindo e doce, e foi assim que me tornei íntima do panetone milanese que era de obrigação à sua mesa. Era um jovem quando se juntou às forças da resistência contra Mussolini e Hitler, nas montanhas. Na aldeia, lá em baixo, tinha ficado a sua primeira namorada, o seu primeiro e grande amor. Uma vez por semana, a raggazza trepava aquele caminho com uma cesta de mantimentos e livros. Viviam no sonho de a guerra acabar e de se casarem. Naquele dia certo Aldo colocava-se num lugar donde via a moça vir pelo caminho. Foi por isso que a viu ser baleada, à falsa fé, por militares que faziam a guerra.
Depois disso a vida correu, porque a vida é um rio, não pára. Mas o coração do Aldo Trippini ficou ferido de morte, não podia durar muitos anos. Parou ainda Robertino era um jovem e ele mesmo não tinha chegado à meia idade. Era um homem bem humorado, leal, activo e lúcido. Tinha da situação portuguesa uma visão realista e por isso nos entendíamos bem, por ambos sabermos como era fatal o caminho por que se tinha optado. E ele tinha de Portugal uma pena antecipada. E eu era-lhe grata também por isso.
Reparo agora que a minha mesa de Natal está cheia de jornalistas, de escritores, de artistas, de boémios. E que, passadas as ilusões do mundo, estão todos lado a lado, a sorrirem, a darem-se bem, sem diferenças nenhumas. Todos quiseram esta paz para o mundo, este entendimento para Portugal. Mas esta paz não era para este mundo. Ninguém percebeu que o mundo era o exílio. Agora está tudo certo. E o panetone milanese, com o seu aroma de laranja, é por assim dizer um pão de partilha. Para sempre.

terça-feira, dezembro 14, 2004

Comunicado do Conselho Permanente da Conferência Episcopal Portuguesa

FÁTIMA, terça-feira, 14 de dezembro de 2004

Transcrevemos o comunicado do Conselho Permanente da Conferência Episcopal Portuguesa a respeito da situação política que o país atravessa. O texto foi difundido pela Agência Ecclesia.

Comunicado do Conselho Permanente
da Conferência Episcopal Portuguesa

1. A delicadeza do actual momento político que o país atravessa sugerir-nos-ia, porventura, que ficássemos em silêncio, para que ninguém pudesse interpretar as nossas palavras como ingerência na política, considerada enquanto legítima actividade partidária em ordem à conquista do poder através do voto dos cidadãos. Não queremos tomar posição a esse nível. Por outro lado a Hierarquia não se pode desligar do todo da Igreja, composta por todos os crentes e essa faz parte da sociedade, empenha-se em todas as lutas para a construção de uma sociedade mais justa e fraterna. Fá-lo também participando nos processos democráticos, sempre, mas de modo particular naqueles momentos em que se discutem e decidem etapas importantes do nosso futuro colectivo.
Empenhar-se na construção da comunidade nacional é, para os cristãos, uma forma de exprimirem a sua fidelidade cristã. Dirigimo-nos, assim, a todos os membros da Igreja em especial, mas também a toda a sociedade de que fazemos parte, no desejo de contribuir para o nosso futuro comum.

2. Aceitamos a actual situação política como um facto, ponto de partida para uma nova etapa, renunciando a comentá-la ou analisá-la, a julgar as suas causas ou os seus protagonistas. Mas estamos convencidos que os problemas que o País sente não se resumem à presente crise política; esta é, talvez e apenas, o seu efeito e um dos seus sintomas. E por isso a etapa democrática que agora começa não pode limitar-se a resolver uma crise política, mas deve enfrentar, com serenidade e lucidez, os problemas de fundo do país, apresentando para eles soluções credíveis e viáveis, a serem escolhidas pelo voto dos portugueses.
Temos assistido a um processo contínuo de sublinhar as divergências e as dificuldades, sem surgirem convergências em verdadeiros objectivos nacionais, que os partidos políticos parecem ter dificuldade em definir e propor. O progresso do País precisa do empenhamento generoso de todos, da renúncia a egoísmos pessoais ou grupais, da competência dos agentes económicos, culturais e sociais. É urgente criar uma onda de fundo de entusiasmo por Portugal, em que as legítimas diferenças se transformem em riqueza e não em obstáculo. Os meios de comunicação social, indispensáveis numa sociedade democrática, terão nesta convergência de perspectivas e neste suscitar da esperança, um papel importante. É preciso que o direito à liberdade se afirme na responsabilidade construtiva, em prol do bem comum.

3. Neste quadro, o primeiro dever dos cristãos é a participação responsável. Que ninguém se esconda por detrás de desculpas habituais: “estamos cansados dos políticos”, “isto não tem solução”, “para quê votar se é sempre a mesma coisa”, etc. Não esqueçamos que só tem direito de criticar e denunciar quem se empenha generosamente na busca de soluções. Na campanha eleitoral que se aproxima temos todos o dever de nos esclarecermos criteriosamente, passando para além do discurso eleitoralista e apreciando as soluções objectivas que nos são propostas para o Governo da Nação. Para tal, importa avaliar da sua justiça, da sua viabilidade, da sua consonância com os princípios da dignidade humana, do respeito pela vida, da dimensão social que todas as políticas devem ter. Para os cristãos, o critério de avaliação é o Evangelho e a doutrina social da Igreja.
A democracia é o quadro político da liberdade, mas também da responsabilidade. E esta só se exprimirá na busca generosa do bem comum. Não deixemos o futuro do nosso País só nas mãos dos “políticos profissionais”. Ajudemo-los com a nossa consciência crítica e com a nossa escolha responsável. A nossa convivência democrática aprofundar-se-á qualitativamente se votarmos em propostas, mais do que em partidos, motivados pela esperança objectiva que essas propostas suscitam e não tanto pela nossa tradicional simpatia partidária. Forcemos os partidos a porem o acento da sua intervenção na qualidade das propostas que nos fazem, na competência e dignidade das pessoas e não apenas nos discursos que o ambiente de campanha habitualmente inflama.

4. Para construir este discernimento responsável, é importante uma análise em grupo. As comunidades cristãs podem ser lugar para a discussão crítica das propostas que nos vão ser feitas, ajudando-nos uns aos outros naquele esclarecimento que antecede a nossa escolha, na certeza de que não há soluções perfeitas, nem definitivas. Escolhamos aquelas que suscitam mais esperança e aceitemos, depois, contribuir para a sua implementação. Votar é escolher caminhos e escolher é comprometer-se generosamente na sua concretização. E não esqueçamos, em nenhum momento, que a participação política é sempre busca da verdade, expressão do amor fraterno, escolha da honestidade e da generosidade como padrões de comportamento. E nós cristãos sabemos que passa também por aí a construção do Reino de Deus.

Fátima, 14 de Dezembro de 2004

quarta-feira, dezembro 08, 2004

NA HORA INCERTA

por Vasco Leónidas


Ó Senhora da Conceição
que És a Senhora mais Linda
deste País que se fina
e que foi Pátria-Nação.

Em hora triste hoje está,
com o reino a naufragar.
Só Teu amparo poderá
dar-lhe forças e o salvar.

A Palavra de Teu Filho
levámos pelo mar fóra
num esforço cujo brilho
importa lembrar agora.

Teu Nome sempre seria
nosso lema e segurança
conosco ele seguiria
em penhor de Nova Esperança.

Senhora neste momento
periga a nossa salvação.
Este pedido é lamento
a esperar consolação!

Casa de Santa Maria, 8 de Dezembro de 1993 in Cantar a Nossa Senhora, Lisboa, 1994.


quinta-feira, dezembro 02, 2004

Em defesa do Catolicismo, isto é, da Universalidade

"Urge que, na floresta espessa dos mitos e superstições dominantes, não nos abandonemos cegamente ao encanto bárbaro da aspiração nacionalista. Acentuamos "encanto bárbaro", porque, na sua ânsia impetuosa, há na aspiração nacionalista que desvaira a Europa uma força de agressividade primitiva - um total olvido da harmonia que é imperioso restabelecer nas relações dos povos, como assento sólido da Cidade de Deus".

António Sardinha in Ao princípio era o Verbo, 2ª ed., p. xvi.

quarta-feira, dezembro 01, 2004

Comemorando o 1º de Dezembro

por José Adelino Maltez

Os nossos restauradores da independência nunca precisaram de utilizar, nos respectivos textos de combate e de teorização, expressões como Estado e Soberania, ao contrário do que fizeram outros portugueses adeptos do filipismo como Salgado Araújo e Miguel de Vasconcelos.

A teoria básica dos nossos teóricos da Restauração, como Francisco Velasco Gouveia e João Pinto Ribeiro, permaneceu ancorada nas teses da escolástica peninsular que, a partir de Francisco de Vitória, Menchaca e Covarrubias, já tinham dado argumentos para as célebres Alegações de Direito, de 22 de Outubro de 1579, elaboradas pelos juristas Félix Teixeira, Afonso de Lucena, Luís Correia e António Vaz Cabaço, onde, sustentando-se os direitos de D. Catarina, se defendia o princípio de à república pertencer escolher o rei, trespassando nele o poder, já que a liberdade, por direito natural, pertencia à comunidade.

Estes fundamentais factores democráticos da formação de Portugal, avessos à teocracia, ao concentracionarismo e ao absolutismo, inseriam-se numa corrente europeia consensualista que, depois de ser magistralmente reinterpretada por autores como Bento Espinosa, Francisco Suárez e Johannes Althusius, vai servir de fundamento para uma precoce manifestação da soberania popular no nosso 1640, da mesma maneira como levou ao separatismo das Províncias Unidas, à partida da Mayflower e à constituição da Confederação Helvética.

Com efeito, o Primeiro de Dezembro, menos do que uma simples secessão face a Madrid, foi um grito de revolta contra as tentações absolutistas manifestadas por Olivares e uma última tentativa de restauração das teses consensualistas, tanto em Portugal como nos restantes reinos da Hispania.

1640 poderia ter sido o ponto de partida para uma "portugalização" de toda a Espanha, para utilizarmos uma imagem de Miguel de Unamuno, aplicada noutro contexto. E, a partir de então, as teses da soberania popular, poderiam ter transformado a Europa Católica na vanguarda da Revolução Atlântica, precedendo as Revoluções Inglesa e Americana e evitando a ruptura de 1789.

Infelizmente, vai acabar por triunfar a Razão de Estado à maneira de Richelieu que, entre nós, atinge o seu clímax com Sebastião José de Carvalho e Melo que logo tratou de taxar os juristas da Restauração como monarcómacos e republicanos, colocando-os no index do despotismo esclarecido, donde ainda não foram retirados.

Pode parecer paradoxal, mas os nossos teóricos da Restauração, entre o soberanismo e o federalismo, optaram pelo segundo, respeitando aquela profunda tradição democrática portuguesa, que levou à institucionalização da nossa polis, de baixo para cima.

Com efeito, Portugal começou por ser uma stateless society, isto é, entre nós, o Estado Comunidade, o Estado enquanto res publica, precedeu o Estado Aparelho de Poder, o principado.

Aliás, uma das primeiras teorizações do Estado em Portugal, com o Livro da Virtuosa Benfeitoria do Infante D.Pedro, pensou a República como uma espécie de concelho em ponto grande, uma aliança entre o Príncipe e a comunidade da sua terra. De qualquer maneira, é inequívoco que antes de se ter estruturado ou construído o Estado, já estavam enraizadas as comunidades concelhias e outros corpos intermediários.

Isto é, a comunidade política portuguesa, a comunidade dos portugueses, o nosso pacto de união, precedeu, em muitos séculos, o pacto de sujeição que tivemos de constituir face a um soberano absoluto.

Com efeito, antes de Maquiavel ter inventado o nome de Estado e de Bodin ter estruturado o conceito de soberania, Portugal, como organização política dos portugueses, já tinha mais de quatro séculos de existência e uma revolução clarificadora, como o foi a de 1383-1385.

Os que continuam complexados pela circunstância de sermos uma jovem democracia, não deviam desconhecer este nosso antiquíssimo enraizamento constitucional que constituiu o alento fundamental para as regenerações de 1383-1385, 1640, 1820, para não falarmos de outras que se lhe sucederam em esperanças e frustrações.