CARTA DO CANADÁ
por Fernanda Leitão
Quando chega o Natal e tudo se faz mais íntimo para os que têm família, de uma solidão quase irreal para os que não a têm, e lá fora o frio dói, mas ainda assim menos do que as recordações, entro na silenciosa celebração comigo mesma. E então ponho a minha mesa de Natal, longa e larga, a ela se sentando aqueles que já passaram pela vida e deixei de ver, serenos e confortados por uma enorme lareira. Com eles converso do que vai indo, do que podia ter sido e não foi, retomando o diálogo interrompido um pouco bruscamente. Porque é sempre bruscamente que a morte nos cala.
Ontem, neste silencioso conversar com os que amei mais ou menos, mas amei, comprei um panetone milanese com a naturalidade de quem compra um mimo para um amigo. Por ter sentado à minha longa mesa o Aldo Trippini, um jornalista milanês que, nos anos 60, dirigiu o escritório de Lisboa da United Press International. No Natal, o Aldo convidava-me para almoçar em sua casa, com a mulher e o filho, um bambino lindo e doce, e foi assim que me tornei íntima do panetone milanese que era de obrigação à sua mesa. Era um jovem quando se juntou às forças da resistência contra Mussolini e Hitler, nas montanhas. Na aldeia, lá em baixo, tinha ficado a sua primeira namorada, o seu primeiro e grande amor. Uma vez por semana, a raggazza trepava aquele caminho com uma cesta de mantimentos e livros. Viviam no sonho de a guerra acabar e de se casarem. Naquele dia certo Aldo colocava-se num lugar donde via a moça vir pelo caminho. Foi por isso que a viu ser baleada, à falsa fé, por militares que faziam a guerra.
Depois disso a vida correu, porque a vida é um rio, não pára. Mas o coração do Aldo Trippini ficou ferido de morte, não podia durar muitos anos. Parou ainda Robertino era um jovem e ele mesmo não tinha chegado à meia idade. Era um homem bem humorado, leal, activo e lúcido. Tinha da situação portuguesa uma visão realista e por isso nos entendíamos bem, por ambos sabermos como era fatal o caminho por que se tinha optado. E ele tinha de Portugal uma pena antecipada. E eu era-lhe grata também por isso.
Reparo agora que a minha mesa de Natal está cheia de jornalistas, de escritores, de artistas, de boémios. E que, passadas as ilusões do mundo, estão todos lado a lado, a sorrirem, a darem-se bem, sem diferenças nenhumas. Todos quiseram esta paz para o mundo, este entendimento para Portugal. Mas esta paz não era para este mundo. Ninguém percebeu que o mundo era o exílio. Agora está tudo certo. E o panetone milanese, com o seu aroma de laranja, é por assim dizer um pão de partilha. Para sempre.
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