por António de Sousa-Cardoso*
A jovem democracia portuguesa acordou, há cerca de três semanas, surpreendida por um acto Presidencial inusitado para que não estava preparada e que parece ter, a despeito das muitas omissões, um pelo menos aparente agasalho constitucional. Para além do estranho (quase) unanimismo na opinião publicada que, com mais ou menos reservas, proclama um sentimento de velada compreensão pelo Presidente da República, o que pensarão os portugueses?
Primeiro facto estranho: A anunciada dissolução do Parlamento. Os portugueses sabem que existia maioria parlamentar estável e coesa. Nenhum português assistiu a desinteligências graves nos partidos da coligação que condicionassem o exercício próprio das funções de uma maioria Parlamentar. Os portugueses ficaram suspensos de uma explicação cabal para esta tão drástica medida. Desconfiavam do pior, claro está. Algo de muito grave que permitisse justificar a aparente desproporção da iniciativa tomada com a crueza dos factos conhecidos.
Segundo facto estranho: O Presidente demora doze longos dias a dar qualquer explicação ao País. Com este silêncio, permitiu as maiores especulações, as reacções mais violentas por parte de "quem se sentiu" e, decorrentemente, um ambiente de instabilidade e falta de credibilidade institucional que ao próprio Presidente cumpre vigiar e preservar.
Terceiro facto estranho: O Presidente mostra vontade de que o Orçamento do Estado, sobre o qual tinha mostrado tantas reservas, fosse aprovado antes da dissolução da Assembleia. Para ser vigiado e executado por quem, pensaram os portugueses?
Doze dias depois, os portugueses assistem às explicações do Presidente. Tudo visto, o chefe de Estado vem dizer que uma série de episódios ou incidentes suscitados pelo Governo no período de quatro meses, causou no próprio Presidente a ideia geral de que haveria uma "substancial instabilidade" e uma deterioração da credibilidade e imagem do Governo.
Os portugueses abrem a boca de espanto. O Presidente invocando incidentes que não nomeia, da estrita responsabilidade do Governo, mantém o Governo e dissolve a Assembleia onde permanecia uma maioria estável e coesa. O Presidente que invoca que o Governo não garante a consolidação orçamental e o crescimento económico, está quieto durante doze dias para que a Assembleia que quer dissolver, aprove precisamente o Orçamento que concretiza a política económica e financeira do mesmo Governo.
Os portugueses puxam pela cabeça. A memória do "pântano" está ainda fresca. A que incidentes se referiria o Presidente? À conhecida e muito propalada demissão de um comentador politico de uma estação televisiva? À sesta do primeiro-ministro antes de participar num evento de moda? À saída barulhenta de um dos ministros? Às criticas de alguns sectores económicos à proposta de Orçamento? Ao artigo de um antigo primeiro-ministro da mesma família política do Governo, falando da teoria da "moeda boa"?
Mesmo sabendo que a "substancial instabilidade" brota do conjunto destes factos e não de um isoladamente, os portugueses recordam o Governo anterior, com sucessivos episódios e incidentes, com membros do Governo que saíam barulhentamente, com anteriores primeiros-ministros da mesma família política a escreverem artigos críticos sobre a governação de então. Com o absoluto descontrolo das contas públicas. Com a ausência total das reformas que o País reclamava. Quais as diferenças, perguntam os Portugueses?
Para além da sesta, a diferença parece ser a de que o Governo de então não estava baseado numa maioria parlamentar estável. A diferença parece ser que o então primeiro-ministro se demitiu reconhecendo que o país caminhava para um "pântano". A diferença parece ser a de que o partido que minoritariamente sustentava o Governo tinha acabado de perder, estrondosamente, umas eleições autárquicas. O que vez então o Presidente? Insistiu com o primeiro-ministro para que continuasse.
Do que podem suspeitar os portugueses? Sabem que o Presidente foi líder do maior partido da oposição, batendo-se galhardamente contra os adversários políticos que hoje constituem o actual Governo. Sabem que o Presidente foi eleito pela família política do actual partido da oposição, contra os votos daqueles que elegeram a actual maioria. Sabem que o Presidente está quase no final do seu segundo mandato. É um Presidente a prazo que pode ainda querer no final do mandato, como aconteceu com o seu antecessor, ter o seu partido espaço de intervenção e de acção política.
Não vale a pena falar de eventuais teorias da conspiração, justificando que o Presidente fez agora o que não fez há quatro meses, porque não sentiu no seu partido credibilidade suficiente para vencer eleições. Chega pensar que, com estes dados, o Presidente confirmou aquilo que é natural na Chefia de Estado republicana. A dificuldade em ser imparcial e independente. A dificuldade em estar acima do jogo partidário de que ainda recentemente se emergiu. A dificuldade, em suma, de ser o Presidente de todos os Portugueses.
Quem já jogou o jogo, quem foi inclusive capitão de uma das equipas, não está em condições de ser um árbitro a prazo do mesmo campeonato. Esta a ideia sobre a qual vale a pena que os portugueses reflictam.
A questão não é tanto de qual o sistema político que a Constituição deveria acolher. A questão é muito mais de qual o regime que melhor se adequa às características que são exigíveis ao Chefe de Estado numa democracia moderna. Se quisermos um exemplo comparativo basta um olhar para a vizinha Espanha. Em quase 30 anos de democracia teve quatro primeiros-ministros: Adolfo Suarez, Filipe Gonzalez, José Maria Aznar e, desde Março, José Luis Zapatero. Cada um dos líderes de governo teve oportunidade de criar as suas equipas, executar os seus programas e apresentar contas ao eleitorado. Nos mesmos 30 anos de Democracia, em Portugal acaba de se demitir o XVI Governo Constitucional.
A Espanha passou para o pelotão da frente, nós fomos sendo ultrapassados. A Espanha que é um País com questões nacionais por resolver, com instabilidade social, com terrorismo, com uma imprensa livre e acutilante. Por detrás desta estabilidade geradora de riqueza esteve a Monarquia. Acima das conjunturas do momento, para além dos partidos e dos seus interesses, imune a grupos e lobbies, esteve e está o Rei. Sem estados de alma, sem preocupações de curto prazo, sem nenhuma agenda que não a determinada pelo interesse nacional. Foi o garante da transição, consolidou a Democracia. É agora o garante da estabilidade, da coesão nacional e da soberania do Estado.
Num momento difícil para Portugal, interrompemos pela discricionariedade do Chefe de Estado mais um ciclo político. E depois, senhor Presidente? O que pode acontecer se nas eleições de 20 de Fevereiro os portugueses decidirem confirmar o voto na maioria que sustentou o XVI Governo? O que fará Vossa Excelência que tomou decisões graves por "sucessivos episódios" se o sufrágio popular designar os mesmos partidos, chefiados pelos mesmos líderes para assumirem funções legislativas e governativas para os próximos quatro anos? Este sim, constituirá um grave incidente que nenhum sistema político em República será capaz de resolver.
Julgo que no final de tudo isto o senhor Presidente da República prestou um único serviço ao País: o de demonstrar com a sua acção inusitada que nunca como hoje se tornou tão relevante, tão actual, uma profunda e séria reflexão sobre qual o regime que melhor serve o futuro de Portugal e dos portugueses.
*Presidente da Causa Real
(In «Público», 20 de Dezembro de 2004)