segunda-feira, dezembro 27, 2004

O vírus da III República

por António de Sampayo e Melo

«Os reis - não os presidentes - são os melhores intérpretes da magistratura serena.»


O SENHOR Presidente da República, ao dissolver a Assembleia, tomou uma decisão discutível que fragiliza a chefia do Estado.

Assumiu-a, é certo, a coberto de uma competência exclusiva e no desempenho do que, em finais do 1.º mandato, definia como magistratura de iniciativa. E, por razões que desconhecemos, disse que assumira «a responsabilidade dela apenas perante os portugueses».

Mas perante quem mais a poderia assumir? E o que significará assumi-la «perante os portugueses», em finais do 2.º (e último) mandato?

O seu acto veio satisfazer os que, com ou sem razão, desejavam a realização de eleições antecipadas, mas os motivos que avançou - excessivamente subjectivos -, em nada vieram contribuir para o esclarecimento dos portugueses ou para o aumento da confiança na chefia do Estado.

Antes pelo contrário. Nesta república bicéfala - seguramente uma das menos prestigiadas da Europa -, é já tido por adquirido que, em 1.º mandato, os presidentes agem como «rainha de Inglaterra» e, em 2.º mandato, dão largas à sua (também) real gana política.

Esta é a síndrome do 2.º mandato, o vírus da III República e uma das mais caricatas patologias da forma republicana de organização do Estado. E, no presente turbilhão político de que é um dos principais protagonistas, de pouco vale ao senhor Presidente da República pretender que exerce uma magistratura serena, quando é óbvio que lhe falta a necessária serenidade política e que não dispõe de um quadro institucional que o acredite.

Com efeito, em República, por melhor e mais íntegro que seja o seu presidente, nunca este se livra da suspeita de favorecer ou de tentar favorecer o grupo que o elegeu ou que o sustém politicamente. E é neste clima que se forja o complexo de afirmação que leva os recém-eleitos a afirmarem-se «presidentes de todos os portugueses» e os de fim de mandato, a praticarem actos cuja responsabilidade - dizem - «apenas» assumem «perante os portugueses».

Em República, só muito raramente se verifica uma identificação entre o povo e o chefe do Estado. Tinha razão Salvador Allende, quando, distanciando-se das ficções republicanas, dizia: «Não sou o presidente do Partido Socialista; sou o presidente da Unidade Popular. Tão pouco sou presidente de todos os chilenos. Não sou o hipócrita que o diz, não. Eu não sou o presidente de todos os chilenos».

Ora, não há uma coincidência necessária entre a chefia do Estado e a chefia da nação e a representação política de um povo não pode assentar em ficções. Só em monarquia é frequente verificar-se uma esmagadora identificação do povo com o seu rei, acolhido como chefe do Estado e da nação e primeiro servidor da «res publica».

Os reis são os melhores intérpretes da magistratura serena, pois são preparados para o seu exercício. Em monarquia, mesmo quando a Lei Fundamental o permite, o chefe do Estado não dissolve a Assembleia por razões subjectivas. Em monarquia, o chefe do Estado não tem complexos de afirmação.

Portugal tem que pensar!

(In «Expresso», 24 de Dezembro de 2004)

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