sexta-feira, maio 13, 2011

Salve, Rei!, poesia de Camilo Castelo Branco dedicada ao rei Dom Miguel I

ELUCIDAÇÃO
Em 1911, quando faziamos ainda parte da redacção da Nação, reproduzimos naquelle periodico, n.o 15.255, de 13 de Outubro, a poesia “Salve, Rei!”, de Camillo Castello Branco, de que mandámos tirar uma separata, de 32 exemplares numerados, sendo 3 em papel Whatman e os restantes em papel de linho nacional.
Estando todos aquelles exemplares distribuidos, e sendo muitos os camillianistas que desejam possuir a poesia Salve, Rei!, resolvemos, sem nenhuns intuitos mercantís, que tambem da primeira vez não tivemos, pois que a edição foi destinada unicamente a offertas, fazer a presente reedição daquella pouco conhecida producção do Maior de Todos, como justificadamente os seus mais enthusiastas admiradores cognominaram o auctor do Amor de Perdição e de tantissimas obras que honram a litteratura portugueza.
Eis a razão desta nova especie da extensissima bibliographia camilliana.
Novembro de 1915.
Frazão de Vasconcellos


Nótula da nossa 1.a edição
A poesia que se segue, dedicada a El-Rei Dom Miguel I, por occasião do seu casamento, foi impressa originalmente, em janeiro de 1852, em uma folha solta, e reproduzida
no diario legitimista A Nação, n.o 1834, de 22 de novembro de 1853, em parallelo com uma outra poesia do mesmo Camillo, transcripta do jornal O Portuense, de 17 de novembro de 1853, em honra de Dona Maria II, a quando do seu fallecimento.
Na sua preciosa Bibliographia Camilliana, refere-se o nosso presado amigo Sr. Henrique Marques a esta pouco conhecida producção do notabilissimo e fecundissimo espirito que foi Camillo Castello Branco, dizendo que viu um exemplar da folha solta, na Bibliotheca Publíca do Porto, e informando mais que o Jornal da Manhã, daquella cidade, a reproduziu no seu n.o 137, de 19 de maio de 1890.
Frazão de Vasconcellos


SALVE, REI!

Cantor d'outr'ora, quando vi sem flores
Os magicos jardins da phantasia,

Minha lyra depuz.
Não mais pedi inspirações terrenas.
Curvei-me ante o altar, sagrei meu estro

Aos canticos da cruz.

E, sem magoa, quebrei prisões da terra,
Mas uma, se então quiz tambem quebral-a,
Não pude... em vão tentei...

Eram saudades a viver d'esp'ranças,
Saudades, que nem Deus manda esquecel-as,

Saudades do meu Rei!

Ficava-me no mundo um nome grande,
Um symbolo d'amor, de luz radiante,

Sob um manto real...
Imagem do que vi na minha infancia,
Sentado no docel, herança augusta

Dos Reis de Portugal

Christão, pedi com fé - senti que a tinha
Prostrado ante o altar, quando eu pedi

Recursos ao meu Deus...
Recursos, não pr'a mim que nasci servo,
Recursos para Vós, Rei desterrado

Sob inhospitos céus!--

Pulsou-me o coração, senti no labio,
Em vez da oração, soltar-se o hymno

D'um peito portuguez!

Ás lagrimas succede essa alegria
Dos extasis que á mente imprimem vôos

D'energica altivez!

Rei! no dia em que descestes
Do Vosso throno real
Apagou-se a luz da gloria,
Cerrou-se o livro da historia
Do Reino de Portugal.
Surge o anjo do exterminio
Sobre as trevas infernaes!
Traz de fogo a fera espada,
E com mão ensanguentada
Rasgas as purpuras reaes.

Sobre o solio dos Affonsos
Ferreo sceptro esmaga a lei:
Ruge alli o despotismo
Se não verga ao servilismo
Quem lhe diz «Tu não és Rei!»
Não és Rei! és uma affronta
Feita ao povo portuguez!
Não és Rei que não herdaste
Este chão que escravisaste
A quem falso Rei te fez!

Vaga o anjo do exterminio
Como inspiração do algoz!
Corações com Vossa imagem,
Oh meu Rei! são a carnagem
Do punhal que fere atroz!
Foram dias de martyrio,
De terror e maldição!
Mas o martyr, expirando,
Esquecia-Vos só quando
Lhe morria o coração!

Vaga o anjo do exterminio
Do mosteiro sobre a cruz,
E roçando a negra aza
Pela cruz o templo arraza
E do altar extingue a luz.
Cospe injurias e sarcasmo
Sobre a face do ancião,
Porque orava, é réo, e expulso
Foge á morte, e cede ao impulso
De penuria, e pede pão.

Pede o pão que amassa em pranto
De saudades que crê vem
D'uma cella que comprára
Quando o mundo cá deixára
Com as pompas que elle tem!
Pede o pão que lhe usurparam
Com tamanho desamor...
Fraco, ao vêr que chega a morte,
Morre... e então mostra que é forte
Perdoando ao matador!

Lá, no campo da carnagem,
Mutilado um corpo jaz...
Ficaram-lhe alli seus ossos...
Pois que foi um d'entre os Vossos
Real Senhor! não terá paz.
Nem a paz dos que morreram
Sem a nodoa da traição
Nem a paz da sepultura
Ao fiel que honrado jura
Morrer sob o seu pendão

Lá se abraça ao corpo exangue
No abandono da viuvez
A que alli vive arrastada
Mendigando, envergonhada,
Improperios... talvez!
Pobre, e só, mãe de tres filhos
Quando a fome a constrangeu,
Inda assim, um pensamento,
Uma esperança, um grato alento
Foi por Vós que o concebeu...

Vaga o anjo do exterminio
Enverga o manto real;
D'um diadema a fronte cinge,
Mas o sangue que lh'o tinge
Brada vingança fatal!
N'essa fronte ensanguentada
Escreveu a mão de Deus!...
Mas tambem homens puzeram
Inscripções onde se leram
Infamias como tropheus!

Oh Rei de Portugal! Quando a amargura
D'este povo infeliz, é sem conforto,

Valemo-nos do céu!
Pedimos-lhe por Vós, anjo proscripto,
Pedimos-lhe vigor á doce espr'ança

Que em vós o céu nos deu!

Vireis, Senhor vireis, que Deus é justo!
Vireis enxugar lagrimas amargas

Que se choram por Vós!
Sereis de todos Pae, não vingativo,
E nós todos irmãos, e Vós de todos...

O Rei de todos nós!

Fatidica aureola circumda
Nas plagas do desterro dolorosas

Vossa fronte real.
Sentado sobre as rochas da montanha
Lá mesmo na solidão d'amargo exilio

Sois Rei de Portugal!

Deu-vos um anjo a Providencia augusta
Em galardão á dôr que amargurastes

Com Santa intrepidez.
Um dia curvaremos o joelho
Perante Essa que o ceu fadou Rainha

Do povo portuguez.



Camillo Castello Branco

Salve, Rei! - Poesia de Camillo Castelo Branco. Lisboa, Typographia A. J. Ferros & Ferros: 1915.

quinta-feira, maio 05, 2011

Mário Saraiva - Razões Reais

Entre o Liberalismo e o Absolutismo

Não teria sentido que ainda hoje a questão do poder real se pusesse nos mesmos termos em que há século e meio tão apaixonadamente se debateu entre os nossos bis e trisavós. Tal hipótese denunciaria um absurdo arcaísmo político, uma lamentável inércia do pensamento, indiferente às duras experiências entretanto vividas e de olhos fechados às exuberantes realidades do nosso tempo. Aliás, em nenhuma das duas soluções contrárias e extremas -- liberalista ou absolutista -- se respeita ou compreende o verdadeiro espírito da Realeza.

O demo-liberalismo, sonegando todos os poderes efectivos ao Rei, desprestigiou e inutilizou quase por completo a Monarquia. Soberana de facto era a maioria parlamentar a quem o Rei devia, constitucionalmente, obediência.

E como haveria o monarca de exercer as funções de árbitro nacional desprovido de poder?

A doutrina absolutista, por motivo oposto, inutilizou igualmente a Monarquia. Fazendo do Rei um "governante" absorvente, transformando-o num ditador, anulou as virtualidades da instituição real. Em lugar da personificação da unidade nacional, da instância de apelo e de justiça ("Aqui del Rei!"), fez dele causa de discussões e divisões, alvo de crítica e de oposição, objecto de ódios, em que redundam geralmente as prolongadas oposições ao governo em política. E a oposição ao rei-governante confunde-se fatalmente com a oposição à Monarquia.

O Integralismo Lusitano marcou neste ponto uma sensata solução intermédia, enunciando a conhecida máxima de Gama e Castro: "O Rei governa mas não administra".

Queria com isso indubitavelmente significar que a autoridade é inseparável da dignidade real, mas que ao Povo cabe o direito activo de conduzir a administração pública.

Assim, nestes termos, ficou a questão até aos nossos dias. O que nunca se fez foi a destrinça, algo difícil, entre governo e administração. Daí as vagas ideias que mais ou menos pairam sobre o assunto quando se quer uma definição actual e explícita das funções do Rei.

Por nós, temos insistido em que, em princípio, o Rei não deve arcar com as responsabilidades do governo corrente, isto é, das funções comuns do executivo, nem a elas estar directamente ligado. Tais funções e responsabilidades são, por natureza, encargo próprio de um governo ou ministério.

O facto de fazermos depender do Rei a nomeação e a demissão dos ministérios já tem sido interpretado por alguns críticos como causa necessária da responsabilidade real, ainda que indirecta, na sua acção governativa.

Não cremos que justamente assim seja. O governo responde pelos seus actos perante o Rei, mas também responde perante a Assembleia parlamentar, que ambas as entidades, cada uma por seu modo, são representativas da Nação. À Assembleia incumbe, exactamente como principal função, fiscalizar o Governo e isso responsabiliza-a na obra deste. Enquanto o não censure ou não lhe manifeste a sua desconfiança, implicitamente fica entendido que o acompanha. Apenas numa circunstância pareceria legítimo cobrir com a responsabilidade real a responsabilidade do governo: no caso teoricamente admissível de o rei persistir pessoalmente em manter no poder um Governo reprovado pela opinião nacional. Apenas nesse caso, aliás improvável.

Mas a monarquia é o regime tradicional das liberdades populares («Nos liberi sumus»...) e o Rei o seu melhor garante.

Não o poderia ser o monarca coacto do Liberalismo. Também o Rei há-de ser livre («Rex noster liber est»...), se encarnar a nação livre. A liberdade real é o penhor indispensável da suprema justiça.

Um árbitro justo, independente do poder executivo, é o que é difícil conseguir, por muitos artifícios que se tentem, nos regimes de base electiva e que, com naturalidade, é fácil de possuir através da realeza.

Mas se o Rei fosse chefe do próprio governo, onde estaria a arbitragem, a jurisdição para a qual se apelasse e que, em última instância, pudesse decidir contra esse governo?

Voltemos um pouco atrás, à formula que o Integralismo perfilhou. -- governar, mas não administrar.

É evidente que, diante da centralização absorvente que o demo-liberalismo do século XIX operara, o Integralismo, ao enunciar que o Rei não administra, tinha em vista preservar as prerrogativas e o direito de administração autónoma que o povo local mantinha. Na verdade, era dentro de cada velho município que se determinava a vida pública quase totalmente.

A interferência do poder real na administração municipal fazia-se em grau mínimo, e notemos que o termo administração abrangia dentro dos seus limites a maior parte do poder legislativo e executivo que a regia.

É claro que o municipalismo -- bela florescência das liberdades populares na Idade Média -- foi definitivamente ultrapassado; mas não morreu nem jamais morrerá o espírito que o inspirou. Creio que seríamos felizes se o país inteiro pudesse ser o conjunto dos seus municípios, tendo no Rei o defensor dos respectivos forais.

Imaginar as disposições foraleiras dos municípios portugueses vivendo à sombra protectora da instituição real, talvez fosse o meio mais seguro de traçar o esquema de uma Constituição que, para já, nos serviria de suma política.

Entretanto, passando do idealismo à prática, num esforço objectivo de concretização, procuremos distinguir o que, à face do tempo actual, se colocaria no âmbito do ministério-governo ou ficaria debaixo da alçada régia.

Na lógica do nosso pensamento, parece não oferecer quaisquer hesitações atribuir ao ministério-governo a gerência e responsabilidade dos seguintes departamentos: Finanças, Economia, Comércio, Indústria, Agricultura, Obras Públicas, Comunicações, Educação, Saúde e Assistência, Trabalho, Transportes, Previdência Social.

Com efeito, estes departamentos compreendem aquela matéria que hoje podemos classificar de administração, segundo o sentido do escritor José da Gama e Castro. Governar, para o autor de «O Novo Príncipe», como para os integralistas, não era concentrar numa só mão todos os poderes; não era gerir directamente nem administrar, mesmo de forma indirecta.

A descentralização foi, pelo contrário, um dos pontos principais de resistência doutrinária do Integralismo. Por governo real significava-se aqui, essencialmente, a fiscalização atenta da conduta da gerência ministerial e do parlamento e o zelo activo pelo equilíbrio harmónico dos poderes do Estado.

Nunca será demais repetir que o papel por excelência da Realeza, inigualável, e que a todos supera, é o de personificar a unidade da Pátria e que a sua principal função, tradicionalmente expressa e aceite, é a de «defensora dos descaminhos do reino». Decerto que o Rei, cujas atribuições não se confinam estritamente nos limites do Estado, mas que é também chefe de Estado, há-de deter em suas mãos, em potência, um poder supremo; também a Nação o possui e o pratica, quando deixa de haver Rei de facto ou de direito. Mas o poder real exerce-se principalmente ao vigiar e moderar o parlamento e o ministério-governo, órgãos normais de administração e legislação.

Do carácter nacional e apartidário do Rei deduz-se que lhe deverão competir aqueles sectores que por natureza são exclusivamente nacionais. Contam-se, neste caso, as Forças Armadas, a Diplomacia e o Poder Judicial.

Em primeiro lugar, as Forças Armadas. Constitui um dos absurdos das repúblicas de partidos submeter à autoridade e ao mando de um ministro político ou de um presidente eleito as forças militares da Nação, pelo risco fatal de serem transformadas em instrumento de partido. Claro que pode perguntar-se: -- Quem haveria então de as comandar, se nesses regimes, ordinariamente, o Presidente é ele mesmo um político do partido? -- Só o Rei -- respondemos.

Numa monarquia de amanhã, o Governo deveria dispor dos corpos policiais suficientes para a manutenção da ordem pública, mas a Marinha, a Força Aérea e o Exército deveriam conservar-se independentes dos governos e apenas subordinados às ordens do Rei. A sua eficácia de árbitro nacional redundaria assim evidentemente fortalecida.

Por outro lado, há que salvaguardar a independência dos Tribunais e da Magistratura e evitar que a condução da Diplomacia caia na mão de governos efémeros, o que a diminuiria e lhe tiraria prestígio. As relações externas, pela sua continuidade e permanência, têm de estar sob a alçada de um poder que não morra. Esse poder é o do Rei.

Defesa Nacional, Diplomacia, Poder Judicial, eis tarefas de carácter nacional e apartidário que só um magistrado supremo, independente, moderador e agregador poderá desempenhar a contento. Dentro desta orientação inovadora, caberia ao Rei designar pessoalmente os ministérios responsáveis por tais tutelas.

Esclareça-se que o que acabámos de escrever configura apenas uma tentativa de desbravar um caminho até à data muito pouco pisado. Media via entre o Liberalismo e o Absolutismo, síntese integradora de contrários, importa traçá-lo doravante em linhas mais direitas.

Mário Saraiva