por José Adelino Maltez
Os nossos restauradores da independência nunca precisaram de utilizar, nos respectivos textos de combate e de teorização, expressões como Estado e Soberania, ao contrário do que fizeram outros portugueses adeptos do filipismo como Salgado Araújo e Miguel de Vasconcelos.
A teoria básica dos nossos teóricos da Restauração, como Francisco Velasco Gouveia e João Pinto Ribeiro, permaneceu ancorada nas teses da escolástica peninsular que, a partir de Francisco de Vitória, Menchaca e Covarrubias, já tinham dado argumentos para as célebres Alegações de Direito, de 22 de Outubro de 1579, elaboradas pelos juristas Félix Teixeira, Afonso de Lucena, Luís Correia e António Vaz Cabaço, onde, sustentando-se os direitos de D. Catarina, se defendia o princípio de à república pertencer escolher o rei, trespassando nele o poder, já que a liberdade, por direito natural, pertencia à comunidade.
Estes fundamentais factores democráticos da formação de Portugal, avessos à teocracia, ao concentracionarismo e ao absolutismo, inseriam-se numa corrente europeia consensualista que, depois de ser magistralmente reinterpretada por autores como Bento Espinosa, Francisco Suárez e Johannes Althusius, vai servir de fundamento para uma precoce manifestação da soberania popular no nosso 1640, da mesma maneira como levou ao separatismo das Províncias Unidas, à partida da Mayflower e à constituição da Confederação Helvética.
Com efeito, o Primeiro de Dezembro, menos do que uma simples secessão face a Madrid, foi um grito de revolta contra as tentações absolutistas manifestadas por Olivares e uma última tentativa de restauração das teses consensualistas, tanto em Portugal como nos restantes reinos da Hispania.
1640 poderia ter sido o ponto de partida para uma "portugalização" de toda a Espanha, para utilizarmos uma imagem de Miguel de Unamuno, aplicada noutro contexto. E, a partir de então, as teses da soberania popular, poderiam ter transformado a Europa Católica na vanguarda da Revolução Atlântica, precedendo as Revoluções Inglesa e Americana e evitando a ruptura de 1789.
Infelizmente, vai acabar por triunfar a Razão de Estado à maneira de Richelieu que, entre nós, atinge o seu clímax com Sebastião José de Carvalho e Melo que logo tratou de taxar os juristas da Restauração como monarcómacos e republicanos, colocando-os no index do despotismo esclarecido, donde ainda não foram retirados.
Pode parecer paradoxal, mas os nossos teóricos da Restauração, entre o soberanismo e o federalismo, optaram pelo segundo, respeitando aquela profunda tradição democrática portuguesa, que levou à institucionalização da nossa polis, de baixo para cima.
Com efeito, Portugal começou por ser uma stateless society, isto é, entre nós, o Estado Comunidade, o Estado enquanto res publica, precedeu o Estado Aparelho de Poder, o principado.
Aliás, uma das primeiras teorizações do Estado em Portugal, com o Livro da Virtuosa Benfeitoria do Infante D.Pedro, pensou a República como uma espécie de concelho em ponto grande, uma aliança entre o Príncipe e a comunidade da sua terra. De qualquer maneira, é inequívoco que antes de se ter estruturado ou construído o Estado, já estavam enraizadas as comunidades concelhias e outros corpos intermediários.
Isto é, a comunidade política portuguesa, a comunidade dos portugueses, o nosso pacto de união, precedeu, em muitos séculos, o pacto de sujeição que tivemos de constituir face a um soberano absoluto.
Com efeito, antes de Maquiavel ter inventado o nome de Estado e de Bodin ter estruturado o conceito de soberania, Portugal, como organização política dos portugueses, já tinha mais de quatro séculos de existência e uma revolução clarificadora, como o foi a de 1383-1385.
Os que continuam complexados pela circunstância de sermos uma jovem democracia, não deviam desconhecer este nosso antiquíssimo enraizamento constitucional que constituiu o alento fundamental para as regenerações de 1383-1385, 1640, 1820, para não falarmos de outras que se lhe sucederam em esperanças e frustrações.
Sem comentários:
Enviar um comentário