A «PAIXÃO» E AS PAIXÕES
Por Teresa Maria Martins de Carvalho
Quando saltou para a imprensa a primeira notícia de que Mel Gibson tencionava realizar um filme sobre a “Paixão de Cristo” em que os actores falariam em aramaico e em latim, os risos soltaram-se como se fosse a coisa mais ridícula do século, um gesto desafiador e grotesco.
Qual era a ideia dele? E depois soube-se que, durante as filmagens haveria Missa diária, celebrada em latim... Levantou-se o clamor: “Mel Gibson é um fundamentalista, um Lefevriano, adepto de alguns aspectos mais reaccionários, mais “doloristas” da fé católica, é da Opus Dei, etc..
De facto, o realizador foi buscar a Roma um padre pertencente à Congregação dos Rominianos (Quem era Romini, o fundador? Um reaccionário qualquer? Deixem-me rir!) porque, com licença especial do Papa Paulo VI, celebrava a Missa de S. Pio V que considera uma “obra-prima absoluta” como nos confidencia em entrevista recente (Figaro magazine). Nessa entrevista este padre (irmão da escritora francesa Edmonde Charles-Roux) conta também como lhe era estranho dar a comunhão a um homem (o actor Cazeviel) maquilhado de Jesus Cristo... Cinema e Eucaristia, não pode dar...
Outra desconfiança surgiu, desta vez com mais força, com todo o lobby judeu a sustentá-la: “um filme anti-semita, pois nele se assinala que tinham sido os judeus que condenaram Cristo à morte na Cruz.” A obra ficou assim marcada com esse sinal repelente.
Finalmente a troça subiu, de novo, à tona, rodeada de evidente desprezo: “que ideia foi essa de filmar coisa tão obsoleta para este novo mundo, tão normal, tão laico?... Só um fanático o faria.” De facto, não houve nenhum produtor que arriscasse capital “em tão estúpida empresa, destinada a perder dinheiro, a ser um fracasso imenso.” Foi o próprio “fanático” Mel Gibson que pagou tudo com o seu dinheiro, tendo criado uma empresa especialmente para filmar o seu projecto. Quando o filme se estreou foi, imediatamente, um êxito de bilheteira (grande “melão” para as grandes produtoras...), muitas vozes lançaram o boato de que não haveria exibição em Portugal. “O filme é atroz, duma brutalidade enorme. Não terá público aqui”. A paixão de Cristo ainda está em cartaz e provocou a discussão que se sabe.
Várias deducções se podem retirar deste acontecimento e do pó que levantou.
· A ideia de pôr o pessoal a falar aramaico e latim foi uma ideia de génio. Quem aguentaria toda aquela gente a falar inglês?
· Se Mel Gibson queria fugir aos santinhos, “azul e cor de rosa”, e mergulhar no drama de modo realista e sério, a brutalidade da época surgiria, inevitavelmente. (Daquela época? E hoje? O Holocausto? As mãos cortadas aos ladrões e as mulheres apedrejadas até à morte, segundo a “sharia” nos países muçulmanos? Nem vale a pena insistir...)
· “Os judeus não tiveram culpa da morte de Cristo na Cruz. Foram os romanos e Judas”. Para elucidação deste ponto será aconselhável a leitura dos relatos evangélicos da Paixão. Naturalmente, não foram estes judeus de agora (Sharon e Cia) mas os daquela época, mais ferozes...
· “Os legionários não eram tão brutais, com certeza. Eram romanos e civilizados. Brutais são os soldados americanos que torturam prisioneiros iraquianos”. Em primeiro lugar, quanto à bondade dos antigos romanos, estamos conversados. Aliás, aqueles legionários já nem seriam romanos nem mesmo italianos, mas provavelmente sírios, ardácias, albanos... Eram recrutados nos confins do Império quando o serviço era nesses confins... Civilizados?
· “Aquela pancadaria era exagerada. Ninguém aguentava vivo”. É verdade, tanto que Jesus não aguentou levar a cruz (foi Simão de Cirene) e esteve pouco tempo crucificado. Os crucificados “normais” levavam mais tempo a morrer, às vezes dias... Quando José de Arimateia foi pedir o corpo de Jesus a Pilatos este ficou admirado de Jesus já ter morrido. Deu todo o seu sangue...
· "Assim, tirada do contexto evangélico, a Paixão não tem sentido” argumentam os bons católicos, entre os quais os bispos franceses. Ora o que Mel Gibson quis filmar foi exactamente a Paixão, aquela que contemplamos quando rezamos a “Via Sacra” com o Papa, em Sexta-Feira santa, no Coliseu de Roma. O realizador, aliás, faz os flash-backs necessários para lembrar os textos evangélicos a quem os conhece. Para quem os não conhece o filme não faz sentido nenhum, de facto.
· “Mel Gibson acrescentou coisas que não vêm nos Evangelhos”. É verdade, como o episódio da Verónica, por exemplo, que pertence à piedade popular e se repete, incessantemente, em todas as Procissões dos Passos, sem levantar clamor. A mulher adúltera, que estava para ser apedrejada e que Jesus salvou in extremis, não era Maria Madalena, como Mel Gibson quis fazer crer. O episódio é, no entanto, cinematograficamente, muito belo. Do mesmo modo a Pietá, com Nossa Senhora com o Filho morto no colo, também não pertence ao relato evangélico. Presentes à sepultura (que é pena não ter sido dada no filme...) estavam, ao longe, três mulheres que viram onde tinham sepultado Jesus e que vieram ao túmulo dois dias depois. Foram as primeiras testemunhas do túmulo vazio e da Ressurreição... Mas a Pietá (Nossa Senhora da Piedade, em português...) é uma presença muito forte na iconografia religiosa, que pertence também à devoção da Via Sacra. A presença de Satanás em todo o desenrolar da Paixão, realiza a ameaça da última tentação no deserto, em S. Lucas: “retirou-se de junto dele, até um certo tempo” (Lc 4, 13). O tempo da suprema tentação é na Paixão, não no início da vida pública de Jesus. “Satanás entrou em Judas”... conta-nos ainda S. Lucas (22, 2) e, no filme, ele está presente na Agonia no Horto onde a presença da serpente recorda-nos o pecado de Adão, no Génesis, ali, diante do “novo Adão” como lhe chama S. Paulo e que, com “a sua obediência até à morte e morte de cruz” (Fil 2, 8), vai gerar uma nova humanidade. Do mesmo modo, quando, no caminho para o Calvário, Jesus encontra sua Mãe (episódio não evangélico mas pertencente à Via Sacra, e lhe diz e promete como a querer explicar-lhe todo aquele sofrimento: “Eu vou fazer novas todas as coisas”, que é uma frase do livro do Apocalipse (Ap. 21, 5), livro que frisa a Redenção da humanidade realizada pelo Cordeiro imolado e que faz eco ao Cordeiro obediente, ao homem das dores, imagens que o profeta Isaías evoca, na sua descrição do martírio do Servo de Javeh, em que os cristãos vêm a figura profética de Jesus Cristo sacrificado (Is 53, 4).
· É brutalidade excessiva. Não era preciso mostrar tanta violência. Chega a ser pornográfico”... como decide um iluminado crítico de cinema do jornal Público. Para ele certamente o filme não fará sentido e ficou cego àquilo que perpassa por todo o drama, a permanência constante do perdão e ausência de qualquer ameaça de “vingança”, esse valor supremo da nossa sociedade actual. Os Bispos franceses lamentam de que assim não se pode mostrar a Paixão de Cristo às crianças. Pois não. É uma execução capital. A preocupação pastoral fica-lhes bem mas este filme não é uma lição de catecismo infantil. Para nós, adultos, bem precisávamos de um abanão destes e não de uma Paixão light.
O escritor francês Daniel Goldhagen, a propósito do filme, acha que “a Igreja deve fazer tudo para combater o anti-semitismo nos próprios católicos e em numerosas passagens da Bíblia cristã.” (entrevista na Revista Lire, Maio de 2004). Esta “revisão” dos Evangelhos para ficarem mais conformes com o “politicamente correcto” é uma boa ideia. Ninguém ainda tinha pensado nisso. Nem o Concílio Vaticano II... Francamente!
Da mesma opinião é um esclarecido leitor do Público que, numa carta (10 de Maio), se insurge contra o “dolorismo” de Mel Gibson e da Igreja, que repudia, por não ser evangélico. Esqueceu-se que o sofrimento humano vai buscar sentido à Paixão de Cristo, participando nela, como diz S. Paulo, valorizando-se e justificando-se na obra de Redenção, porque o Senhor, como diz Pascal, “está em agonia até ao fim do mundo.”
A este propósito, lembro o assombroso tríptico de Mathias Grünewald (séc XVI) em Ingelheim em que a figura do crucificado é mil vezes mais dolorosa do que a do filme “A Paixão de Cristo”. Essa imagem insuportável tem contraponto no mistério do Ecce homo da pintura portuguesa medieval (Museu Nacional de Arte Antiga). A “Paixão” mostra-nos, ao mesmo tempo, o imenso amor de Deus e a brutalidade dos homens.
No fim do filme, é projectada a longa lista dos colaboradores e nela se agradece aos jesuítas, pelos vistos conselheiros de Mel Gibson... Ninguém se lembrou de dizer mal dos jesuítas... que tão mal aconselharam o realizador. Ou não?
P.S. – Já está em exibição «Kill Bill 2» para grande felicidade dos críticos amachumados. Uma Thurman pode, por vingança, matar toda a gente. Foi alívio. Não haverá casos de consciência!
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