NO FUNDO DE NÓS
CARTA DO CANADÁ
por Fernanda Leitão
Não era só eu, naqueles anos de férrea disciplina das agências noticiosas da Europa, que tinha pavor de casamento de príncipes e morte de Papa. Porque éramos nós, os das agências noticiosas, quem traduzíamos, interpretávamos, redigíamos, compunhamos, até ao mais ínfimo pormenor, aquela macia e gostosa papa que os jornais se limitavam a maquetar e a servir ao grande público. Quando casavam príncipes ou morria um Papa, nós trabalhávamos como escravos durante longas horas.
Valia pena? Parece que sim, a avaliar pela publicação integral das nossas prosas, em páginas e páginas, que depois víamos as pessoas devorar, reler, comentar. Quando, recentemente, casou o príncipe Filipe de Espanha com a plebeia Letizia, o fenómeno repetiu-se, agora amplamente ajudado pela cobertura directa das televisões. As multidões de espectadores e leitores de Portugal embriagaram-se de sonho ao mesmo tempo que as multidões, felizes e comovidas, que cobriam as ruas de Madrid e um pouco por toda a Espanha. Alguns comentadores inquietaram-se e tomaram este interesse popular por uma perigosa colagem à Espanha. Eu permito-me discordar.
Já vivi o tempo suficiente para ver como o nosso povo acorreu ás ruas, se quedou de ouvido colado à telefonia ou de olhos pregados na TV, para viver apaixonadamente o funeral da Raínha Dona Amélia, o casamento da princesa Maria Pia de Saboia, no Estoril, a visita da Raínha Iabel II e da Princesa Margarida a Portugal, a visita do imperador Hailé Selassié, da Etiópia, a trasladação das ossadas da mulher e filhas do imperador Pedro I para o Brasil, o noivado e o casamento do príncipe Carlos com Diana, o casamento e o noivado do nosso príncipe Dom Duarte de Bragança com Dona Isabel Herédia, os nascimentos e baptizados dos infantes nascidos desse matrimónio. Com o andar dos tempos verifiquei que era a mesma paixão subterrânea, inexplicada e intensa, que leva várias famílias do País Real a guardarem no fundo das arcas fotografias, faianças, moedas e outras recordações dos últimos reis de Portugal. Uma memória teimosamente conservada, de pais para filhos, mesmo em lugares longínquos. Em Timor, por exemplo. Ou em Angola, onde Paiva Couceiro ainda hoje é o santo e a senha da história por escrever, do mesmo modo que o príncipe D. Luís Filipe ficou como um garante da honra portuguesa para o povo de Cabinda. Ou em Moçambique, onde Mouzinho de Albuquerque é muito mais do que um nome.
Porque será? Tenho para mim que, no fundo de nós, há uma magoada saudade da monarquia. Magoada, porque a República começou tristemente por um crime e um mar de sangue, abatendo pessoas que o povo amava. E porque, encarando de frente o exemplo que sempre tem de vir de cima, o nosso povo, hoje mais do que nunca, que a hora é de fim de vergonha e fim de regime, não pode deixar de olhar com respeito, admiração e confiança os príncipes da Casa de Bragança. Espoliados pela República, de modestos meios, órfãos de pai e mãe muito cedo, nunca envergonharam a Nação nem desonraram o povo a que pertencem. Impuseram-se ao respeito do povo por mérito próprio, permanecendo fiéis a princípios de Pátria, iguais a si mesmos contra ventos e marés, servindo a Portugal e a Deus, não se servindo.
Não, o nosso povo não ficou de cabeça virada com o casamento real de Espanha. Não há esse perigo, porque o nosso povo nunca traíu, as élites é que têm sempre traído, nem há o perigo de Espanha, a braços com problemas sérios de unidade nacional, se meter na aventura de pegar ao colo em mais 10 milhões de pessoas que iriam exigir tudo e não dar nada. O que se passa, e todos evitam ver, é que o povo tem saudades de si mesmo. Tem saudades de Portugal. Porque, como há dias disse na TV o fadista João Ferreira-Rosa, uma coisa é viver na República Portuguesa e outra bem diferente é viver em Portugal.
Talvez seja a Hora. Aquela de que falou Fernando Pessoa.
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