A CASTIGADA MINORIA
CARTA DO CANADÁ
por Fernanda Leitão
A partir de hoje o Canadá tem um governo federal minoritário do Partido Liberal (centro esquerda), liderado por Paul Martin – primeiro ministro em exercício depois da retirada, por limite de idade, de Jean Chrétien. Fica com 136 assentos no parlamento, enquanto os conservadores têm 94, os socialistas (New Democratic Party) 23 e os separatistas do Quebeque 55.
Não é possível uma aliança com os conservadores ou os separatistas, devido a diferendos ideológicos intransponíveis, pelo que se adivinham alianças pontuais com os socialistas, que estes logicamente aproveitarão para apoiarem as causas sociais que são um investimento no seu futuro político.
Todo este cenário era previsível. Paul Martin, o ministro das Finanças do governo Chrétien que acabou com o défice e passou a registar um superavit substancial por anos seguidos, fez a vida difícil a Chrétien por ambição de chegar a primeiro ministro, querendo seguir as pisadas do pai, que foi o ministro e autor da legislação do sistema de saúde, inteiramente estadual, que ainda perdura. Foi visivelmente pouco correcto com Chrétien, um homem de Trudeau com grandes serviços prestados ao país, alcandorou-se a presidente do Partido Liberal e deixou na opinião pública a imagem de uma encapotada traição. Acresce que, sendo o multimilionário dono de uma próspera empresa de transportes marítimos, se viu confrontado com relatos de imprensa que davam essa companhia como fugindo ao fisco por meio de negócios fixos em paraísos fiscais das Caraíbas. Jean Chrétien retirou-se, magoado mas digno, e Paul Martin seguiu-se-lhe no cargo interinamente por acordo da Governadora Geral, Adrienne Clarckson, que representa no terreno a chefe do estado, a Raínha Isabel II de Inglaterra. Um ano depois, a auditora geral do Canadá (que responde à Coroa e não aos governos ou partidos) descobriu, ao peritar as contas públicas, que o governo federal tinha propiciado uma hemorragia de quase 200 milhões de dólares em benefício de agências de publicidade do Quebeque, muitas delas conotadas com os separatistas. O país, pouco habituado a corrupções deste jaez, acordou estremunhado mas depressa recuperou o sangue frio para exigir o completo apuramento do que se passou. A investigação continua, a cargo de um juíz nomeado pela Coroa. Foi então que Paul Martin cometeu dois erros tão primários que só se podem atribuir ao seu intenso desejo de ser primeiro ministro e à sua já provecta idade: negou ter tido conhecimento do assunto, muito embora fosse o responsável pela pasta das Finanças, e não teve o aprumo de guardar o pedido de eleições gerais à Governadora apenas para depois de toda a investigação estar terminada.
Se tivesse procedido de forma mais correcta, talvez viesse a ser o chefe do governo daqui a um ano. Assim, o eleitorado penalizou-o com um governo minoritário que, visivelmente, não vai durar muito para além do termo da investigação criminal. E entretanto fica refém dos socialistas, sob marcação cerrada de um Partido Conservador seguidista da administração americana e dum partido separatista, dirigido e manipulado por um antigo militante comunista, que vive no sonho de fazer do Quebeque uma república à cubana.
A única novidade destas eleições é a vitória do primeiro português que vai sentar-se no parlamento federal, Mário Silva, um açoreano que há vários anos tem vindo a ser vereador da câmara de Toronto. Ganhou confortavelmente a dois candidatos também portugueses, no círculo torontino de Davenport: Rui Pires, socialista, e Teresa Rodrigues, conservadora. É uma estreia honrosa para a comunidade portuguesa, embora esta não espere muito dum político pouco experiente que cairá quando o governo minoritário caír.
Apesar deste contratempo e de o Canadá ser um país difícil de governar, pela sua extensão desmesurada, os seus invernos glaciais, os seus 33 milhões de habitantes oriundos de 160 países, o país não está em crise. Tem a sorte de contar com uma máquina administrativa montada peça a peça, desde a fundação, pelos ingleses – com tudo o que isto significa de rigor, frugalidade e simplicidade. Os políticos podem desatinar, mas a máquina fica firme, o país continua a ser um dos que tem melhor qualidade de vida, um dos mais prestáveis nas causas humanitárias de que o mundo sofre, um dos mais livres e respeitadores da pessoa humana, mas um dos menos obedientes ao credo da admnistração dos Estados Unidos da América. Quando Bush convocou o Canadá para a aventura do Iraque, com a mesma ligeireza e desplante com que acaba de proclamar que apoia a entrada da Turquia na União Europeia, o governo Chrétien deu-lhe um completo e redondo não, mostrou-lhe que os Estados Unidos não são donos do mundo. Blair, um político da Commonwealth, enguliu em seco.
Enfim, a vida continua. Os deputados sabem o que os eleitores querem. Porque escolheram a profissão de políticos têm de fazer o que os eleitores querem. E nós, os que votámos na segunda-feira, deixamos essas tarefas aos nossos delegados por termos outras coisas a fazer. Por cá não se come e bebe e respira política 365 dias no ano, 24 horas por dia. Trabalha-se. E por isso se pedem severas contas aos políticos que não trabalham ou que trabalham mal.
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