DEIXÁ-LOS POUSAR
Carta do Canadá
Por Fernanda Leitão
Semana de Portugal em Toronto. Sessão de abertura no consulado, onde o actual inquilino é um empertigado homem de tão vasta e comprida testa que nos obriga a pensar no conselheiro Pacheco, aquele de que falava o Eça. O presidente duma associação de clubes, conhecido pelo Petinga, faz juz ao nome saltitando, vivo e grosso, a falar um português que nem na estiva já se encontra, todo ele pesporrência de novo-rico que quer meter tudo e todos debaixo dos pés. Na assistência, um ror de bocas atafulhadas de pastéis de bacalhau e petiscadas que chamam ao tinto. Vindo de Portugal para o efeito, e acabadinho de chegar, um ministro pequenino, roliço, desenhadinho, como um porta-chaves, exibe um vozeirão ao discursar em honra de Camões: “eu dantes era alto e espadaúdo, mas a política encolheu-me”. Contente com o seu fino humor, olhou à volta, regalado com as risadas, bem longe de imaginar que aqueles ali são os do costume porque a comunidade não põe os pés nas festas do consulado e está-se borrifando para ministros importados, tenham eles encolhido ou sejam eles de encolher, muito beijoqueiros, muito mesureiros, o olho atento nas remessas de dinheiro para Portugal. Poucas horas depois, no termo de uma distribuição de prémios que deixou a comunidade toda a rir, porque era uma coisa ao jeito de condecorai-vos uns aos outros, o mini-ministro, de peito para fora e tronitruante, disse da sua paixão pelos emigrantes, a sua rendição a Toronto, bela cidade, a sua incondicional e afectuosa gratidão por todos aqueles senhores, fulano, beltrano, cicrano, por acaso todos do mesmo partido da governamental criatura, que em seu entender são inclítos varões, impolutos varões. Exactamente o contrário do que pensamos e dizemos nós que conhecemos os passarões há anos e lidamos aqui com eles. Mas os ministros, mesmo quando são mini, hão-de ter uma sopradela toda especial do Espírito Santo, a ciência vem-lhes de ouvido. Por isso é que são do governo. Palavras não eram ditas, numa limousine de fazer um mafioso rebentar de inveja, desaguou na festança o embaixador. Com o cachecol do Euro 2004. E todos por igual enrolaram o trapo ao pescoço, incluindo o pequenino, que ficou só com os óculos a despontar. E todos eles, governante, acompanhantes, diplomatas, figurões, falaram sempre de futebol, cantaram hossanas à bola e à baliza, juraram fidelidade eterna às pernas dos matulões da selecção nacional, ao mesmo tempo que iam largando uma ou outra alusão à diplomacia económica e ao pilim que se espera dela. Por fim, a parada a desfilar pela Dundas Street fora até ao Bellwoods Park. Ranchos, bandas, bandeiras, clubes, associações, em representação mais ou menos vistosa, mas de encher o olho, o que se chama de levantar a praça e fazer saír a música, era uma loira meio fuínha, em pé num carro descapotável, acenando à multidão, tendo pelas costas um cartaz que começava por anunciar À MULHERES.... A maralha a rir, porque a mulher foi conselheira escolar, a perguntar-lhe se tinha perdido o H pelo caminho ou não sabia da existência dele. Um pagode. Uma troça, a quem a merece pela ignorância atrevida e arrogante, que a cegou a ponto de se julgar preparada para ser deputada federal. O espanto que mostrou pela derrota eleitoral diz bem do estrago que faz a autoestima exacerbada neste establishment, apaparicado pelos partidos de Lisboa e exacrado pela maioria da comunidade. Numa comunidade em que os divertimentos e entertenimentos em português e para portugueses são escassos e sempre os mesmos, esta parada, que podia ser uma afirmação de cultura e elevação, já arrasta à rua não poucos portugueses que apenas ali vão gozar o pratinho e troçar. Houve mesmo quem pelo telefone, horas depois, dissesse no meio de gargalhadas que o melhor da parada tinha sido “a Carmen Miranda grávida”, numa alusão ao barrigudo que se andainou como a mais célebre filha do Marco de Canaveses (depois do Ferreira Torres, claro), desfilando num vistoso carro duma associação de gays e lésbicas de origem portuguesa. Entornada a parada no parque, nas funduras dum vale entre duas colinas, decorreu um arraial que, de ano para ano, vai sendo cada vez mais pimba.
Com esta elevação toda, com esta qualidade cultural toda, já se sabe que o Camões, pretexto da celebração, foi pelo cano.
Grande bruxo foi Mestre Almada-Negreiros quando escreveu um poema que, a certo passo, dizia: “A pátria onde Camões morreu de fome / e onde todos enchem a barriga de Camões”. E de facto. Ele é a Semana de Portugal cada vez mais pelintra, ele é o Instituto Camões a rimar com corrupções, ele é o ministério da Educação que não treina nem inspecciona os professores portugueses no estrangeiro, ele é o ministério dos Negócios Estrangeiros que deu em fabricar “cônsules” a martelo, como o whiskey de Sacavém, ele são governantes e diplomatas de meia tigela que vêm para as comunidades a exibirem-se mais pimbas do que os pimbas, ele é esta rapaziada toda a berrar que defende a língua portuguesa quando, ao fim e ao cabo, anda a esganá-la.
Visitantes partidários e visitados militantes, são como uma nuvem de melgas. Deixá-los pousar. Hão-de caír de gordos. Tudo isto tem uma leitura simples: de ano para ano os servidores do regime, que o mesmo é dizer os servidores dos partidos, têm vindo a descer de qualidade. Estamos em plena fancaria. É o fim.
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