segunda-feira, junho 14, 2004

PETIÇÃO PARA A FISCALIZAÇÃO DA CONSTITUCIONALIDADE DA ÚLTIMA REVISÃO CONSTITUCIONAL


1. É sabido que aquela que esteve para ser a mais minimalista e discreta revisão da nossa Constituição acabou por ser uma das mais significativas e, seguramente, a mais problemática de todas as que até agora se realizaram, quer no plano simbólico, quer no plano substancial.

Referimo-nos, obviamente, às novas disposições aprovadas que autorizam a subordinação política da nossa ordem constitucional ao quadro jurídico da União Europeia, ressalvados os princípios fundamentais do Estado de Direito democrático.

De forma simplificada mas efectiva, referimo-nos, pois, ao espantoso processo que veio permitir que, conquanto a União Europeia seja fiel aos princípios democráticos, as suas normas se imponham no nosso país apesar de, ou mesmo contra, a Constituição Portuguesa.

Entendem os signatários deste documento que tal revisão constitucional, a aguardar ainda promulgação por parte do Senhor Presidente da República, constitui um acto de desvitalização política e de esterilização constitucional, que é politicamente incompreensível e juridicamente inconstitucional.

2. É politicamente incompreensível por inúmeras razões.

Desde logo pela forma como decorreu todo o processo. Não se discute a competência da Assembleia da República para empreender a revisão constitucional, mesmo quando se trate de uma revisão que, no limite, seja amputadora da soberania como esta foi. Porém, a própria Assembleia da República está constitucionalmente sujeita a regras para poder rever a Constituição, sendo nosso entendimento que tais regras não foram respeitadas.

Também o facto de estar investida de poderes constitucionais não desobriga a Assembleia da necessidade de produzir um amplo debate político, sobretudo quando se trate, como é o caso, de matéria da maior relevância. Ora, é patente que esta revisão constitucional foi empreendida com cuidadoso silêncio e com preocupante ocultação de argumentos políticos, resultando num processo meio obscuro que consubstancia, apesar de tudo, um golpe violento na natureza do Estado.

Deste modo, o processo de revisão não foi apenas incompreensível, foi também criticável do ponto de vista da ética e da transparência políticas.

É também politicamente incompreensível porque se tratou de um acto totalmente imprudente. Ao admitir a secundarização do texto fundamental em face das normas comunitárias, o Estado português desarmou-se constitucionalmente perante o processo de integração europeia. Ora, até aqui, o processo de integração tem sido comumente entendido como de progressiva cooperação e, sobretudo mais recentemente, de gradual partilha de soberanias entre Estados, procurando obedecer a um princípio de equilíbrio e a um vector de intergovernamentalidade.

Naturalmente, tal processo não tem sido indiscutível nem isento de espinhos. Porém, qualquer que seja o posicionamento que se tenha nesta matéria da construção europeia, e qualquer que seja o grau de identificação com o processo em curso, facilmente se concordará em que apenas se negoceia a partilha de soberanias quando existe de facto alguma reserva de soberania. O que aconteceu, no entanto, foi que, com esta revisão, tal reserva de soberania constitucional foi sacudida e baldeada como estorvo e inconveniente.

O resultado, perverso, é que sem tal reserva de soberania não teremos, realmente, meio de prosseguir no processo de integração europeia com um mínimo de autonomia constitucional.

Por outro lado, abdicar de qualquer salvaguarda política e jurídica da soberania nacional em face do processo de construção europeia é imprudente e intolerável, mesmo para aqueles que sustentam o projecto pleno de uma Europa federal. É que até estes têm defendido que a susceptibilidade de recuo é a arma das "soberanias" federadas, pelo que também eles foram traídos com a revisão operada.

Vieram alguns explicar, a posteriori, querendo minimizar e desdramatizar o significado da revisão, que já hoje o acervo comunitário se impõe ao direito interno, pelo que as alterações constitucionais não trariam grande novidade. Mas, claro, a ser assim a revisão seria plenamente dispensável por inócua, o que não foi o caso. Além de que sempre sobra uma abissal diferença entre a supremacia do direito comunitário no domínio dos compromissos validamente assumidos no passado, à luz da Constituição Portuguesa, e a supremacia incondicionada do direito comunitário no domínio de todos os compromissos futuros - mesmo daqueles que Portugal não queira assumir.

No entanto, o argumento que mais se insinuou, também apenas a posteriori, foi o de que haveria necessidade de garantir antecipadamente a constitucionalidade de uma futura e eventual constituição europeia, sob pena de exclusão do nosso país desse passo importante que se estaria novamente a desenhar apesar das expectativas frustradas da Convenção europeia. Mas, a ser assim, apenas se percebe melhor que não é possível, nem teórica nem pragmaticamente, fazer coexistir dois legados constitucionais autênticos no mesmo espaço e no mesmo tempo.

Aqueles que cederam a tal preocupação foram vítimas de um excesso de zelo e mais não fizeram que inverter a hierarquia natural de prioridades, prometendo trocar, antecipada e voluntariamente, a actual Constituição Portuguesa por uma vaga promessa de constituição europeia.

Os signatários deste documento discordam abertamente desta perspectiva, alertando para que ela assinala um marco novo no caminho da construção europeia, consumado na perspectiva de admitir o princípio de que a União pode, se for caso disso, fazer-se não com mas contra os Estados europeus.

Reconhecendo, embora, como legítima a posição de todos quantos abertamente perfilham a ideia de criação de um tal Estado europeu, os signatários apresentam-se nos antípodas de tal posição política, não confundindo as patentes mudanças e transformações ao nível do paradigma dos Estados nação com a sua precipitada declaração de óbito, nem muito menos com uma qualquer declaração de guerra contra os actuais Estados.

3. Por outro lado, e independentemente da questão política de fundo, é nossa convicção que a revisão da Constituição foi também juridicamente inconstitucional.

A Constituição da República Portuguesa constitui a máxima expressão normativa da soberania do Estado Português. Isto significa que não existe nenhuma norma jurídica nacional ou internacional que seja superior aos seus princípios e regras fundamentais, já que, se tal viesse a suceder, a Constituição portuguesa deixaria de ser o título jurídico do poder político de um Estado independente, para passar a ser o estatuto de uma entidade meramente autónoma.

O artigo 288º da Constituição impõe que qualquer lei de revisão constitucional deva respeitar, sob pena de inconstitucionalidade material, um conjunto de princípios e regras fundamentais que integram a identidade constitucional.

E, à cabeça desses princípios intangíveis surgem, na alínea a) do referido artigo, os princípios da “independência nacional “ e da “unidade do Estado”, encontrando-se o primeiro consagrado explicitamente no artigo 1º da Constituição quando enuncia que “Portugal é uma República soberana (...)” e no nº 1 do artigo 3º , o qual reza que “A soberania, una e indivisível, reside no povo (...)”.

Deve ainda considerar-se:

Que a Lei que aprovou a sexta revisão constitucional introduziu um novo nº 4 no artigo 8º da Constituição, o qual passou a prever que os tratados que regem a União Europeia, bem como as normas comunitárias derivadas, se aplicam na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, devendo apenas respeitar os “princípios fundamentais do Estado de direito democrático”;

Que o referido nº 4 do artigo 8º permite a interpretação segundo a qual uma directiva ou um simples regulamento da União podem prevalecer sobre qualquer norma da Constituição Portuguesa, com excepção das que consagram os sobreditos “princípios fundamentais do Estado de direito democrático”;

Que a expressão “princípios fundamentais do Estado de direito democrático” não é textualmente equivalente à de “princípios básicos e estruturantes do Estado” que diversos Tribunais Constitucionais, como o alemão e o italiano, têm avançado como limites constitucionais soberanos, inderrogáveis pelo direito comunitário;

Que a noção de “princípios fundamentais do Estado de direito democrático” não abrange, necessariamente, o princípio da independência nacional na organização do poder político, dado que o seu objecto é composto pelos princípios do respeito pelos direitos liberdades e garantias dos cidadãos, sufrágio universal, separação e interdependência de poderes, independência dos tribunais e segurança jurídica, valores que nunca poderiam ser desrespeitados pelas normas da União Europeia;

Que a ser esse o significado dado à expressão “Estado de direito democrático”, semelhante limite aos tratados e às normas comunitárias constituiria uma fórmula inútil, senão redundante, permitindo que qualquer norma do direito comunitário se superiorizasse sobre as disposições da nossa Constituição que enunciam e protegem o núcleo da soberania interna e externa do Estado português;

Que o nº 6 do artigo 7º, introduzido pela mesma revisão, concede ao poder político português um “cheque em branco” para transferir para a União Europeia componentes fundamentais da unidade e indivisibilidade da soberania, que se encontram consagradas no nº 1 do artigo 3º da Constituição, permitindo que o núcleo dessa mesma soberania composta pela política externa, de segurança e de defesa, possa transitar, sem qualquer limite, para a União Europeia;

Que o nº 6 do artigo 7º e o nº 4 do artigo 8º, introduzidos na sexta revisão da Constituição, violam o limite material expresso na alínea a) do artigo 288º da Constituição, dado que permitem que o princípio da independência nacional ou da soberania do Estado venha a ser violado e esvaziado por normas não constitucionais, como as de direito comunitário, de forma a transformar uma República soberana num estado federado ou numa região autónoma;

Que os referidos preceitos são normas “constitucionais inconstitucionais”, porque violam a primeira disposição dos limites materiais à revisão constitucional expressos na alínea a) do artigo 288º - já que pressupõem que uma lei de revisão constitucional possa impor um “duplo processo de revisão”, alterando a identidade fundamental e soberana da Constituição, o que é proibido pela Lei Fundamental – e também porque instituem um processo ad libitum de revisão constitucional supranacional, sem intervenção da Assembleia da República, e em total desrespeito pelos limites temporais, de iniciativa, de aprovação e de promulgação estabelecidos no Título II da Parte IV da Constituição;

Que a Lei de revisão constitucional de 2004, procurando fragmentar e esvaziar o princípio da soberania da República Portuguesa no seu núcleo fundamental, através de normas não constitucionais, nem sequer procura previamente eliminar a alínea a) do artigo 288º da Constituição, podendo incorrer em “fraude à Constituição”, já que procura simuladamente, alterar a identidade da Lei Fundamental à margem dos limites que a mesma impõe;

Que a Lei que aprova a sexta revisão constitucional, na parte que se refere aos artigos 7º e 8º, não é uma genuína Lei de revisão, mas um expediente normativo criador de uma transição constitucional que, depreciando a identidade fundamental da Constituição de 1976, altera a natureza soberana do Estado português e abre caminho a que o mesmo perca os seus atributos mínimos de independência, sem que sequer o povo, titular da soberania, o autorize.

Por todo o exposto, vêm os signatários requerer que o Presidente da República, o Procurador Geral da República e o Provedor de Justiça suscitem respectivamente, ao abrigo das alíneas a), d) e e) do nº 2 do artigo 281º da Constituição, a fiscalização abstracta sucessiva do nº 6 do art.º 7º e do nº 4 do art.º 8º da Lei de Revisão Constitucional aprovada em 2004.


a)

PAULO TEIXEIRA PINTO
JOSÉ MANUEL A. QUINTAS


1ª edição em 7 de Junho de 2004

(Esta PETIÇÃO pode ser subscrita em http://usuarios.lycos.es/reverconstituicao )




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