terça-feira, junho 08, 2004

Arqueologia Marítima vs. Caçadores de Tesouros

Conde Nikolaus Sandizell

A História repete-se mais uma vez – a discussão da arqueologia marítima vs. “caçadores de tesouros” faz-nos lembrar a famosa história contada por Luís de Camões acerca do “Velho do Restelo”, quando um pequeno grupo de conservadores, sem qualquer tipo de visão e de conhecimentos, tentou levantar uma polémica no sentido de impedir a Coroa de enviar a sua frota na continuação da epopeia dos descobrimentos. Ignorando a polémica, Portugal tornou-se num dos maiores impérios na história da humanidade! Tão importante lição ... mais de uma vez esquecida – é a de que por vezes temos de assumir pequenos sacrifícios para pudermos atingir grandes objectivos. Ora para realizar um grande objectivo é importante mantermos o olhar na floresta apesar das árvores que nos toldam a vista.

Infelizmente o assunto da arqueologia vs. “caçadores de tesouros” não é tão a preto e branco como nos é feito crer ou como nos possa parecer à primeira vista. Para compreender tão complexa matéria , é necessário analizar:

1. Formas de protecção da herança maritíma;
2. Diferenças de objectivos dos grupos envolvidos;
3. Causas reais de preocupação.

1. Como proteger a herança marítima cultural

A capacidade de protecção da herança marítima nacional depende exclusivamente das capacidades da nação para controlar as suas águas territoriais. Infelizmente, países industrializados e do terceiro mundo são em termos económicos, ainda mundos à parte e, por vezes, substimamos os problemas que muitos dos países em desenvolvimento têm para assegurar, as necessidades básicas como alimentação, saúde e educação para a sua população. A protecção da herança cultural marítima destes países torna-se consequentemente uma segunda prioridade, somente uma de muitas áreas a necessitar de atenção. A maioria destes despreveligiados países, não se conseguem proteger como os “países industrializados” o fazem, os quais têm meios económicos para operar uma marinha, uma guarda costeira ou polícia marítima. A herança marítima cultural destas nações é por isso uma preza fácil para caçadores de tesouros, pescadores sem instrução, mergulhadores desportivos desonestos e sem educação e, ocasionalmente, burocratas corruptos que facilitam a venda ilegal de artefactos recuperados.

O conceito teórico da UNESCO, presente na sua recente “Convenção da Herança Cultural Subaquática” promovendo a protecção dos naufrágios “in situ” (registar a localização do naufrágio mas deixando o local intacto), poderia funcionar em tempo limitado, se medidas de segurança apropriadas, fossem tomadas. Contudo, mesmo nos países desenvolvidos, alguns deles não podem controlar e proteger as suas vastas costas e águas territoriais, a protecção dos seus naufrágios “in-situ” não passa de um “wishful thinking”, com muitos destes locais quer registados quer não registados, a ser destroçados e destruídos a uma velocidade alarmante. E que podem estes países fazer sem peritos arqueológicos, sem fundos apropriados, sem meios para proteger a sua herança marítima?

a. Fechar os olhos e perder a sua herança cultural marítima para “caçadores de tesouros”;

b. Ter esperança de que, talvez um dia, alguma instituição, ONG ou um patrocinador que apareçam e desenvolvam um programa arqueológico que permita o controle a longo termo pela nação ribeirinha;

c. Tomar uma atitude que lhes permita adiantarem-se a “caçadores de tesouros” e salvarem a sua herança marítima com a ajuda de grupos privados de arqueologia marítima, antes que os seus mais importantes naufrágios sejam pilhados, destruídos e perdidos para sempre. Apesar da alternativa b. ser a solução perfeita ela é infelizmente irrealista.

O tempo de execução de um projecto é da maior importância, pelo que concessões institucionais podem ajudar no desenvolvimento de um projecto específico, mas não suportarão ilimitadamente um projecto de larga escala, o qual é muito difícil de definição prévia e pode demorar décadas a ser correctamente executado. A opção c. é pois, a única solução viável. Um grupo auto sustentado e experiente de arqueólogos marítimos podem treinar especialistas locais, fornecer informações compiladas dos naufrágios, estabelecer prioridades nas decisões de intervenção, e gerar rendimento e, assim, como consequência, a herança marítima cultural da nação obterá a desejada protecção a longo termo.

2. A diferença de objectivos dos grupos envolvidos e a necessidade em definir o que é a arquelogia marítima versus “caçadores de tesouros”

O preto e branco da visão fundamentalista dos “Velhos do Restelo” vê somente dois grupos e define-os como “os bons” e os “maus”. Num mundo em que a política tradicional (esquerda e direita) deixou de ser suficiente tivemos de optar pelo meio termo, uma “terceira via”; o equilíbrio entre a consciência social e uma economia saudável.

Se este mesmo compromisso for utilizado na resolução do nosso problema torna-se necessário em primeiro lugar, analizar quem são as partes envolvidas:

- Grupo I – Arqueólogos pagos pelo estado ou patrocinados por instituições estatais (Ex. CNANS ou a Universidade do Texas)
- Grupo II – Arqueólogos não pagos e que trabalham com o único propósito da edição de uma publicação cientifíca (Ex. Margaret Rule ou Mensun Bound)
- Grupo III – Arqueólogos, pagos por uma fundação ou patrocinados de outra forma (Ex. Frank Goddiot)
- Grupo IV – Arqueólogos que trabalham para uma empresa privada, auto sustentada e, cientificamente organizada. (Ex. Arqueonautas S.A.)
- Grupo V – Caçadores de tesouros, portanto ilegais, que trabalham com fins comerciais sem qualquer interesse científico.


A existência destes diferentes grupos leva-nos a reflectir em dois pontos:

a. O financiamento necessário para a condução de um projecto marítimo arqueológico;

b. A capacidade científica para documentar a recuperação de um naufrágio, com a finalidade da sua publicação;

Se a utilização do dinheiro dos contribuintes ou de patrocínios de longo termo não forem uma opção, temos de procurar alternativas comerciais estando atentos à natureza repetitiva das cargas, sejam elas, moedas, porcelanas, armas, objectos comercializáveis ou qualquer outro artefacto. Não existe qualquer dúvida ou discussão de que só é aceitável trabalhar comercialmente com grupos de arqueologia marítima consolidados, e de que todos os achados únicos ou repetidos, classificados por peritos neutrais em arqueologia marítima, como herança cultural marítima permanecam no país para serem expostos em museus nacionais ou para integrarem exposições itinerantes. A venda de objectos repetidos, já representados na herança cultural marítima nacional permite, todavia, o financiamento consequente da protecção da herança marítima nacional – o segundo príncipio juntamente com a recomendação teórica “in-situ” embora contrário à convenção da UNESCO UCH.

Existem alguns conhecidos arqueólogos marítimos independentes com larga experiência, que estão interessados em suportar comercialmente grupos de arqueólogos marítimos, com a condição de que estes grupos:

a – Sejam contractualmente obrigados a que a parte da herança selecionada e a informação científica recolhida permaneça no país onde foi encontrada;

b – Que operem de acordo com uma metodologia arqueológica específica, permitindo a preparação da documentação relativa ao naufrágio em causa, sua localização e os artefactos recuperados.

Os grupos II e IV podem assim trabalhar em conjunto, com melhores resultados para todas as partes envolvidas:

- A nação em causa recuperará a sua herança perdida;
- O grupo privado terá o potencial para pagar aos seus investidores;
- O arqueólogo responsável poderá enriquecer a colecção das suas publicações científicas e aumentar o conhecimento e o lazer do público.


3. As causas reais de preocupação

Para o funcionário público de um país ocidental, empenhado na preservação da herança marítima cultural do seu país e que beneficia de um sistema o qual, através da marinha ou da guarda costeira, permite a protecção da sua herança marítima nacional, é fácil criticar os países mais pobres, os quais vivem uma realidade completamente diferente.

Algumas pessoas oriundas de países de antigos impérios coloniais e que exploraram países do terceiro mundo durante centenas de anos, ainda hoje se arrogam o direito de dizer a estes países como devem conduzir os seus interesses. Pior ainda, algumas destas pessoas estão a tentar com que a herança marítima cultural destes países, a qual pela lei marítima internacional é pertença das nações onde ocorreu o naufrágio, vá para os seus próprios países, reclamando que esses barcos eram barcos de guerra e, consequentemente, sob a soberania da sua bandeira.

Quando acusados muito justamente por estes países, pela sua postura neo-colonialista, reagem sem compreensão e tentam encontrar razões para acusar estes países de estarem errados e que eles “os únicos que são peritos por inteiro” estão certos. Que melhor forma que utilizar o nome da UNESCO e impor uma doutrina em que a única forma correcta é a de (a) a protecção de naufrágios “in-situ” e (b) a proibição da venda de quaisquer objectos recuperados num ambiente marítimo?

Quando da ractificação destas duas regras, essas pessoas estariam então em posição de reclamar a “sua” herança marítima, declarando a outra nação como incapaz na sua protecção – uma vez que estas não jogam de acordo com estas ractificações.

Quando o mundialmente famoso arqueólogo George Bass, em 1979, publicou “O homem que roubou as estrelas” (http://www.abc.se/~pa/publ/stolstar.htm), ao explicar a triste perda de alguns naufrágios para companhias de salvados, que não tinham qualquer noção acerca da importância histórica e cultural destes naufrágios, que vieram a ser completamente destruídos no processo de recuperação de bens valiosos – ele estava cheio de razão.

Hoje – cerca de um quarto de século mais tarde – uma terceira forma está ela própria a estabelecer-se, para o benefício da protecção da herança marítima cultural, em países em desenvolvimento. A vida não ficou mais fácil desde então, e por vezes temos de olhar para além do nosso pequeno mundo e tentar arranjar soluções pragmáticas – que tal lembrar “os Velhos do Restelo”!


Estoril, Junho 2004


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