por Rosalina Melro
Subo lentamente as Escadinhas das Figueiras onde deparo com ruínas e abandono.
Se Almeida Garrett, de quem os portugueses deveriam lembrar, já, no próximo dia 4 de Fevereiro, os 210 anos de nascimento, ai! se ele cá voltasse, repetiria, gritando: "Ai Santarém, Santarém, abandonaram-te, mataram-se e, agora, cospem-te no cadáver!". Penso isto ao ver o mau estado a que chegou a Casa da Felícia. Ali, era a hospedaria onde Alexandre Herculano muitas vezes pernoitou. Em "Apontamentos de Viagem", pode ler-se a primeira impressão que o escritor recolheu de Santarém, região que escolheria para se afastar das intrigas da Corte oitocentista. Há um trecho que acaba assim: " Era sol posto quando nos despedimos da Alcáçova,e voltámos a Casa da Tia Felícia." Durante a instalação na Quinta de Vale de Lobos e, nos últimos anos da sua vida, sempre que tinha de ficar em Santarém, por falta de transporte para Vale de Lobos, Herculano era naquela casa que dormia.
Mais tarde, será Camilo Castelo Branco que em Casa da Felicia faz decorrer algumas passagens de um novo estilo de romance, onde explora o prazer do humorismo. A obra, intitulada Coração, Cabeça e Estômago, é dada à estampa em 1862. Certamente, Herculano ainda a terá conhecido. Teria sido por sua informação que Camilo conheceu a Casa da Tia Felícia? Os nossos vindouros é que já não a conhecerão. Lamentos para nada servem, pois não é a primeira vez que publico lamentações, mas vozes fracas não chegam ao céu.
Olho as janelas meio arrancadas. Oiço o vento bravio e vejo o miserável lixo urbano a entrar pelos quartos. Mais uma casa que cai em ruínas. A quem importa? Será que já ninguém sente mágoa, porque Santarém esquece o respeito devido à Cultura e às Memórias? Ou ninguém se importa com escritores de outros tempos? Por isso, não se incomodam em conservar os lugares da cidade que os evocam. Herculano ali dormiu. Ali, Camilo imaginou novo estilo. Ora, que importam estes autores à actual Santarém? Quem pensa no valor cultural destas memórias? Muito triste é ver a Casa da Felícia a desaparecer, quando Santarém tem à frente do município um escritor.
Enfim, as Escadinhas das Figueiras têm, do outro lado, moradias ainda bem cuidadas. A casa decorada com uma coluna do Paço Real à qual Pedro se ampara, quando trinca o coração do Coelho, vingando, assim, a morte da amada Inês. Coluna oferecida ao Capitão Júlio Costa Pinto (1884-1969), homenageado durante a Comemoração dos 90 Anos da Revolta de Santarém, do Golpe de Monsanto e da Monarquia do Norte. As cerimónias organizadas pela Câmara Municipal de Santarém e pela Santa Casa da Misericórdia de Santarém: Exposições, Conferências, Eucaristia e Visita ao Túmulo, no Cemitério dos Capuchos, contaram com participação de D. Duarte de Bragança e outras personalidades civis e militares que visitaram os lugares onde foi prestada homenagem ao Homem de Causas que cultivou o lema Deus, Pátria e Rei. Um homem que amava a poesia e esta terra onde viveu e fez muitos amigos, e onde quis ficar na campa da família, como recordou seu afilhado, o Professor Doutor Joaquim Veríssimo Serrão que na juventude partilhara com outros jovens escalabitano o prazer de escutar a falar de poetas e histórias antigas, um homem que ensinava "Os velhos papéis quando se lêem … que coisas curiosas nos contam".
in O Ribatejo - Edição Impressa.
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