sábado, fevereiro 21, 2009

Faz de conta

CARTA DO CANADÁ

Fernanda Leitão

É Carnaval na minha terra e estou cansada de tanta coisa séria nos jornais e na TV. À falta de máscaras e de corso, apetece-me imaginar uma história picaresca.
Chama-se Lélé e desde que se conhece como gente, na ilha rodeada de mar bravo, quis ser diplomata. Não porque conhecesse algum diplomata ou algum houvesse na família, que era de lavradores e emigrantes, mas por ter lido um romance que lhe passou a ideia de a diplomacia ser coisa de palácios e vénias, cerimoniais e segredos de estado. Se bem o acreditou, melhor o concretizou, através de cunhas e mais cunhas, num rapapé perseverante.
Um dia, magricela sem graça e com poucas maneiras, viu-se cônsul num país importante. Ao ver como se vergavam diante dela os emigrantes do seu país, atavicamente temerosos de tudo quanto cheire a serviços do governo, sentiu-se, como dizem os brasileiros, a Raínha da Cocada Preta. Enfunou que nem uma vela ao vento. Passou a tratar à patada todo e qualquer tuga que lhe passasse por perto, fosse ele residente no local onde reinava, fosse funcionário enviado pelo governo de Lisboa. Mas, manhosamente, fazia-se mansa como um cordeirinho diante do embaixador, não fosse ele reportar sobre ela. Ora, como os tugas são, historicamente, de comer e calar, a Lélé reinava na maior impunidade. Fazia o que muito bem queria, e aliava-se ao lado mais corrupto da administração, como ficou demonstrado pela sua íntima amizade com uma governante divertida que misturava o conhaque com o trabalho.
O tempo encarregou-se de lhe toldar o entendimento, de modo que passou a julgar seus súbditos os cidadãos do país de acolhimento. Quando, por dever de cargo, foi visitar um tuga na prisão, entrou por ali dentro, sem autorização, na postura de um tanque de guerra. A autoridade prisional cortou-lhe o passo e intimou-a a saír. A Lélé perdeu a paciência e a cabeça, berrou que era diplomata, que ninguém a podia proibir de coisa nenhuma. Os apelos ao bom senso só aumentaram o tom da peixeirada. O director da prisão, secamente, expulsou-a e garantiu-lhe que, se não saísse imediatamente, a prenderia. Comunicado o incidente aos serviços competentes pelo director da prisão, a Lélé foi considerada persona non grata. Dali a pouco tempo percebeu não ter sido convidada para uma cerimónia na embaixada, e foi aos ares, refilou. Mas caíu das nuvens quando a informaram de que não podia estar presente por terem sido convidadas individualidades do governo do país onde exercia as suas funções. Só então percebeu que o seu superior hierárquico já sabia da cena na prisão. E ficou varada de medo. Mas, determinada, imediatamente pôs a funcionar as suas cunhas.
Não lhe aconteceu nada. Terminou o mandato em paz e foi colocada num país ainda melhor. Porque, sendo ela uma personagem faz de conta, só este epílogo caberia num estado faz de conta. Um estado carnavalesco e de mascarada, de fórró e deixa andar.
E é isso que me deixa tão aliviada neste Domingo Gordo.

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