quinta-feira, julho 08, 2004

AO CUIDADO DO DR. JORGE SAMPAIO...

por João Titta Maurício*


Exmo. Senhor Dr. Jorge Sampaio,

Nestes tempos de transição entre Governos (e que alguns querem apelidar de “crise”), muitas serão as solicitações e preocupações que, pelo cargo que ocupa, lhe são exigidas. Por isso, hesitei antes de atrever-me chamar-lhe à atenção para um conjunto de considerações e de ousar pedir-lhe que, rapidamente, obvie à propagação de “soluções” que, acredito, V. Exa. (como eu e muitos) considera erradas.

O nosso modelo governativo-constitucional é semi-presidencialista. Que se distingue dos sistemas parlamentares (onde a legitimidade do Governo decorre exclusivamente da vontade política do Parlamento, e ao Chefe de Estado não são cometidas competências que lhe permitam obstaculizar a escolha), e do sistema presidencial (onde há uma confusão entre a chefia do Estado e o exercício do poder Executivo, cabendo o poder Legislativo ao Parlamento, o qual não pode por aquele ser dissolvido).

Como saberá V. Exa., ambas as opções possuem virtudes e defeitos.

A opção parlamentar exclui o Chefe de Estado do processo de selecção do Governo, reservando-lhe meras tarefas protocolares de sancionar a decisão. Porém, porque o Chefe de Estado não pode, por motu proprio, dissolver o Parlamento, se neste não se encontrar uma solução governativa maioritária, estável e coerente, só o bom-senso do líder do partido mais votado poderá resolver esse “não regular funcionamento das instituições”!

Desse mal não sofre o sistema presidencial, pois a coincidência na mesma pessoa da chefia do Estado e do Governo impossibilita-o! Porém, como as competências típicas do poder legislativo por decreto são muito diminutas e limitadas, o sistema só funciona se houver compatibilidade e coerência entre a Presidência e a maioria parlamentar! Em caso de conflito, há impasse: nem o Presidente pode dissolver o Parlamento, nem este pode demitir o órgão que exerce o poder executivo... porque é o Presidente.

O sistema semi-presidencialista português procurou, racionalizando, obviar a estes problemas.

Faz o Governo depender de uma dupla legitimidade política: perante o PR e perante a AR. No primeiro, limitou o poder fiscalizador formal do PR à verificação da existência do «necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas». Perante a AR apenas se exige que esta não rejeite o programa do Governo ou não aprove uma moção de censura. Parece-nos que V. Exa. concordará – e, se sim, para evitar os males pretendidos pelo extremismo populista da esquerda, deve disso dar rápido conhecimento ao País –, que o sistema constitucional português opta claramente pela estabilidade. Que elege como decisiva a protecção à possibilidade de o país ter uma estável solução de Governo.

Mais: para obviar aos impasses típicos do sistema parlamentar com multipartidarismo, a CRP dotou o órgão PR do poder excepcional de dissolução da AR. Excepcional, porque o seu uso não pode ser banalizado pela frequência. Excepcional, porque sujeito à verificação de condições de circunstância, pois, salvo melhor opinião, se a demissão do Governo (órgão que não possui legitimação popular directa) está condicionada à verificação do «necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas», como compreender que fosse irrestrito o exercício do poder de dissolução da AR (órgão dotado de uma legitimidade que advém directamente do Povo)?

Por isso, manifesto a V. Exa. as minhas mais profundas dúvidas sobre a opinião daqueles que afirmam que, na presente situação política e de acordo com o actual sistema político, nomear um novo Governo ou dissolver a AR são opções que, nos pratos da balança, se encontram em equilíbrio de legitimidade jurídico-constitucional.

Aliás, a dissolução da AR sempre seria entendida como a “presidencialização” do regime e a comprovação da teoria de que a presidência seria um instrumento de tutela política ilegítima que a esquerda usaria para impedir o centro-direita e a direita de governarem segundo o apoio eleitoral que obtêm nas urnas!

E se o fundamento invocado (nem que ao de leve) fosse que em eleições legislativas se escolhem Primeiros-Ministros e não deputados, entrar-se-ia então no reino da “fulanização política” e a vitória da demagogia seria total! Seria a derrota da Democracia representativa (onde as decisões do Povo são tomadas a um tempo e o governo da “coisa pública” é por todos consentido e respeitado durante o período do mandato legítimo)! Seria retirar à AR o poder de co-participar na escolha e legitimação do Governo. Seria esvaziar as competências dos Deputados (os representantes do Povo). Seria subverter todo o nosso sistema constitucional. E seria a vitória da demagogia patrocinada pela extrema-esquerda e acolhida como boa por uma anacrónica esquerda soixante-huitard, que (juntos) procuram que as mais fundamentais decisões do país passem a ser encontradas com recurso à mais recente (e conveniente) medição em sondagens ou décibeis!

Senhor Dr. Jorge Sampaio, julgo que partilhará comigo a convicção de que os poderes presidenciais de excepção (como o é a dissolução da AR) são para serem usados... excepcionalmente! E não acredito que ache justificação de excepcionalidade bastante o haver uma maioria governativa, estável e coerente.

Uma maioria legítima, estável e coerente e que só compriu metade do tempo do mandato que o Povo lhe conferiu. Até porque julgo saber, que V. Exa. sabe, que todos os portugueses sabem... que, devido à situação de pântano que herdou, a actual maioria só pode cumprir a primeira parte das responsabilidades que assumiu ao não recusar, como outros, o governo de Portugal. E tenho a certeza que V. Exa., um conhecido adepto do nosso Sporting, não gostaria de ser recordado como o árbitro que decidiu em benefício do infractor...

Sinceramente, não creio que dê crédito à leviandade política de alguns que sugerem que V. Exa. , por razões pessoais e sem se verificar uma situação de excepcionalidade extrema, pode recusar um nome indicado pelo partido mais votado e pela maioria parlamentar que se propõe apoiar o elenco e o programa que por este fôr presente! Àqueles acredito que V. Exa. já terá esclarecido que o PR não tem um programa político alternativo à maioria parlamentar. E que tal transformaria o sistema num “quase modelo de chanceler” (onde a legitimidade do PM decorre apenas da confiança política do Chefe de Estado).

Também lhes deverá chamar à atenção que, se o Chefe de Estado recusasse a indigitação do nome indicado pela maioria, seria a ele que seria imputada a responsabilidade pela crise política decorrente. E que, se a maioria fosse mantida ou ampliasse o seu score eleitoral, não era às “pitonisas” mas ao PR himself, a quem a maioria sempre deveria pedir que analisasse e concluísse o que o Povo havia dito, e agisse em conformidade com o comportamento de humildade democrática que para tais ocasiões é exigido!

* titamau@netcabo.pt
Prof. Universitário

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