A teoria que mais tem sido difundida diz que a crise financeira foi provocada pela crise do subprime, em resultado da ganância de banqueiros sem escrúpulos. A teoria ajustava-se bem aos ouvidos da turba de votantes e, como era necessário fazer eleger Obama, servia às mil maravilhas na cruzada contra Bush. Não foi difícil arranjar uns quantos banqueiros como bodes expiatórios.
O que na altura não se explicava, e ainda não tem sido suficientemente explicado, é que o subprime tinha revelado a crise, mas não era a sua causa. Por detrás do subprime estava um longo período de baixas taxas de juro combinado com um enorme afluxo de capitais resultantes dos lucros obtidos na China, Singapura e nos petroestados do Golfo Pérsico. O mecanismo do subprime levou à explosão, foi o seu detonador, mas não foi a matéria explosiva. À superfície havia banqueiros em busca de lucros, mas no fundo havia investidores em busca de altas rentabilidades.
Em resultado da crise financeira dos últimos meses, os pessimistas dão como certo um cenário de generalizada “stag-deflation”, i. e., uma situação em que surgirão combinadas a estagnação/recessão e a deflação (queda de preços). Para estes, a dúvida parece centrar-se hoje em saber qual a forma do gráfico depressivo: será um gráfico em “U” ou será um gráfico em “L”? Um gráfico em “U” quer dizer que, quando se atingir o fundo, haverá uma assinalável recuperação; um gráfico em “L” quer dizer que, ao atingir-se o fundo, seguir-se-á um longo período de estagnação. Os mais pessimistas não descartam a hipótese de um “L” bem alongado: “L__”.
Todos os mercados globais – mercados de acções, mercados financeiros, de matérias-primas, de bens de consumo, e de trabalho – estão na verdade a apresentar sinais negativos: há um excesso de oferta (queda na procura) em todas as frentes (com a excepção do emprego, obviamente), e o cenário mais plausível começa a ser o da “stag-deflation”.
Durante muito tempo, a preocupação principal na zona euro foi com a inflação. A avaliar pelas palavras de Trichet, essa é ainda a sua preocupação, quando diz que estamos ainda, e apenas, em “desinflação”. Apesar dos sinais de deflação, parece haver a expectativa de que, mais adiante, a inflação acabará por ressurgir, ajudando a reduzir as dívidas dos particulares e dos Estados. Os governos têm estado a injectar quantidades enormes de dinheiro no sistema financeiro e isso pode vir a converter-se em inflação. É um cenário ainda possível, se as rotativas – a impressão de dinheiro em notas de banco – forem aceleradas.
Há economias que estão a sofrer fortes pressões financeiras, como a Rússia e a Ucrânia, mas há ainda, além dos países do Báltico, outras economias muito vulneráveis na Europa, como a Hungria, a Roménia, a Bulgária, a Grécia, a Espanha (a economia portuguesa pertence-lhe, e o Estado português está a caminho da falência), e a Irlanda; na América, a Argentina, Venezuela, Equador e México; e na Ásia, o Paquistão, a Indonésia e a Coreia do Sul.
Mas, sem acelerar as rotativas, os EUA, não têm outra saída que não seja o de pagar as dívidas com mais dívidas. Ali não se podem dar ao luxo de alimentar expectativas de inflação, pois seriam forçados logo adiante a adoptar uma severa política de restrição monetária. Seria o fim do EUA, quando têm vários Estados já à beira da falência. Não têm pois outro caminho que não seja o de baixar os impostos e lançar grandes obras públicas. O que aponta para uma nova e fulgurante subida dos enormes deficits dos EUA.
Nos anos 80, o Japão e a Alemanha eram os grandes financiadores da dívida pública dos EUA, hoje a China já está à frente do Japão, numa dívida de mais de 5.500 biliões de dólares nas mãos de outros investidores estrangeiros, com a Rússia e os países exportadores de petróleo do Golfo em lugar de destaque.
Em 2005, a China abandonou a taxa de câmbio fixa em relação ao dólar, e a sua moeda apreciou-se em cerca de 20%. Em Novembro de 2008, a China deixou-a deslizar um pouco e, depois disso, tem estado a seguir uma evolução estável em torno de uma taxa de câmbio quase fixa em relação ao dólar.
Os optimistas dizem que não se põe a hipótese de um sério conflito entre os EUA e a China, porque esse conflito levaria a uma nova MAD (destruição mútua assegurada), não já apenas numa guerra nuclear, mas também numa guerra económica. Em linguagem positiva, diz-se que a China e os EUA atingiram o patamar da completa interdependência. Não estou tão certo disso, por três razões principais: 1º - A China e os EUA têm estruturas do PNB completamente diferentes, podendo levar os EUA a pensar que podem vencer a China atacando as suas exportações e reduzindo drasticamente o investimento; 2º - Sob o ataque dos EUA, a China pode ser forçada a fechar a torneira (deixar de financiar o défice dos EUA) para acorrer ao seu próprio deficit; 3º - A duração de um conflito financeiro entre os EUA e a China pode ser um factor determinante: se os chineses forem pacientes, e costumam sê-lo, podem conseguir despromover drasticamente a economia dos EUA, bem antes da sua economia entrar em depressão; o seu mercado interno tem muito mais espaço para crescer do que o dos EUA e, por isso, uma maior capacidade para absorver o impacto da queda das suas exportações.
Antes da crise, o mercado em Wall Street era o maior e mais globalizado do mundo. Continua a ser, mas esta crise já veio demonstrar que os EUA não fogem à lógica de todos os Estados capitalistas. Em última instância, quem manda em Wall Street é Washington, tal como se vai ver que, com a crise na China, quem manda em Xangai é Pequim, tal como quem manda em Mumbai é Nova Deli, e quem manda no Dubai é Abu Dabi. Os mercados e as moedas não têm fronteiras mas, em situação de crise, quem manda são os Estados. Na União Europeia, tem mandado Londres, Paris e Berlim, e na UEM, cada vez mais, e apenas, Berlim. Esta é uma lógica mortal para a UEM.
A retórica saída da última reunião do G20 dizia que todos iriam para casa preparar pacotes de salvação a aplicar de forma coordenada. Não é o que está a acontecer, nem é provável que venha a acontecer. Cada um dos Estados irá actuar de acordo com as suas próprias necessidades e, se possível, explorando as fragilidades dos mais directos competidores.
E o que é que os EUA querem?
Manter a sua moeda como a referência, fortalecer-se através do fortalecimento do FMI, rever o “Basil II”, decretar a morte do G8, e instituir o G20. Recusam a possibilidade de um novo Bretton Woods, i. e., regulação internacional e taxas de câmbio fixas, em relação a um padrão que não seja a moeda americana. Querem, evidentemente, continuar a ser o centro do mundo e a parasitar as periferias.
Esta é uma situação que pode vir a ser alterada em resultado da actual crise: a dívida dos EUA está hoje nas mãos dos Chineses, dos Russos, e dos instáveis países produtores do petróleo. O único Estado que os EUA quase conseguiram criar para servir o seu projecto de governo mundial foi a “União Europeia”. E, esse, corre hoje já um sério risco de vida.
E o que é que querem os outros Estados (os que ainda não deixaram de contar, por mérito e vontade própria)?
O que é que quer a França? - Um novo Bretton Woods, e a União do Mediterrâneo.
E o Reino Unido? - Um novo Bretton Woods (ainda que diferente do que é proposto pelo francês Sarkozy), e manter a Comunidade Britânica.
E a Rússia? – Um novo Bretton Woods, no qual não acreditam. O seu plano parece ser mais o de atrair a União Europeia para um projecto Euroasiático. Alguns russos julgam ser possível realizar com a União Europeia o que os EUA não têm conseguido – encontrar ali um único interlocutor. Com a União Europeia a pender mais para o lado da desagregação do que para o lado da União, com ou sem União Europeia, os Russos contam atrair parte do Leste. A Rússia continua destinada a ter uma palavra decisiva, se não mesmo a última palavra, no futuro da Eurásia.
O que é que a China quer? - Um novo Bretton Woods, e arredondar o seu território (manter o Tibete, e recuperar Taiwan). E não lhe peçam para adoptar o sistema político ocidental, que para ela representaria a fragmentação interna. Tal como está, o futuro pertence-lhe. E foi por isso que os EUA já lançaram para dentro da China a “Carta 08”.
Os restantes países do mundo, alguns dos quais se sentem hoje muito importantes por pertencer ao G20, ainda estão longe de contar de forma decisiva para a equação geopolítica global.
Resumindo: todos os grandes, com a excepção dos EUA, querem um novo Bretton Woods. Os EUA querem manter o que está, e continuar o seu projecto de “governo mundial”.
- Até quando vai ser mantido este impasse? Era a pergunta que me tinha colocado ao começar a escrever estas linhas. Hoje, ao abrir o jornal, encontrei o que parece ser a resposta americana para a depressão - acusam a China de estar a manipular o valor da sua moeda. Se for essa a resposta, o impasse terminou. Vem aí o admirável mundo novo da administração Obama. Se a mão de Timothy Geithner não for corrigida, se for essa a política da administração Obama, não haverá meio-termo: os EUA estão dispostos a perder tudo, ou a ganhar tudo. Nesse caso, seria o caos.
Sobre as palavras de Geithner, ver artigo em WSJ:
http://online.wsj.com/article/SB123275567586511815.html
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