sábado, novembro 08, 2008

Dois registos de uma eleição

CARTA DO CANADÁ

por Fernanda Leitão

Digo já que me refiro às eleições presidenciais norte-americanas, para que o meu generoso leitor não perca demasiado tempo. E aqui vão os dois registos principais que elas me sugeriram.
Primeiro registo - a questão racial. Tenho de relatar um episódio vivido na infância para que melhor se entenda o que senti na noite de 4 de Novembro. Eu tinha oito anos, ou pouco mais, e vivia em Luanda, cidade então de uma pacatez provinciana, onde se jantava muito cedo e, por não haver televisão, as pessoas se deitavam com as galinhas. Num começo de noite, um dos criados da casa pediu a minha mãe licença para ir ver um primo à Cadeia da Reclusão, onde estava a caminho de São Tomé para cumprir o “contrato”. Minha mãe autorizou e, de imediato, deu ao rapaz um cobertor, alguma roupa, sal, café e fósforos. Eu pedi para ir com o criado e, estranhamente, tive licença para o fazer. Só muitos anos depois percebi porquê e soube o que era isso do contrato para São Tomé que levava os negros de Angola à cadeia. Chegados à prisão, fomos encaminhados para as traseiras, já na areia da praia, e ali encontrámos um rapaz sentado no chão, com dois cipaios armados ao lado. As suas costas estavam cortadas a cavalo-marinho e sangravam. Os dois rapazes falaram em quimbundo e quando regressámos a casa, o meu criado chorava sem constrangimento. Estas imagens ficaram para sempre coladas à minha memória e com tal intensidade que, confesso, determinaram muito da minha maneira de estar na vida. Quando, muitos anos depois, eu soube que os negros a trabalhar por conta de outrém tinham de pagar “imposto de cabeça”, isto é, o direito de existirem, e que isso era averbado numa caderneta, assinada pela entidade patronal, à falta de cujo pagamento seriam presos e deportados para São Tomé, onde chegavam a ficar muitos anos, e até a morrer por lá, na maior miséria, nas roças do café, quando soube isso, senti vergonha, essa que, no dizer de Franz Fanon, “é já em si um sentimento revolucionário”. O meu desamor pelos totalitarismos, de direita ou de esquerda, estava de pedra e cal dentro de mim, porque, sendo cegos e maus, tanto podem escravizar negros, como calcar a pés a liberdade de povos inteiros ou, como aconteceu há dois mil anos, crucificar o Filho de Deus por se julgarem senhores da verdade.
Quando, em 1958, minha mãe me pediu para eu passar à máquina uns “papéis”, que mais não eram do que panfletos contra a ditadura, por ocasião da candidatura do general Humberto Delgado à presidência da República, compreendi, finalmente, porque me tinha ela autorizado, tão prontamente, a ir ver o que vi à Cadeia da Relação de Luanda.
Posto isto, não surpreenderei ninguém dizendo que, na noite das últimas eleições americanas, me comovi profundamente com aquelas multidões de negros chorando, cantando, dançando. Tinham sido precisos 150 anos de chicote, de maus tratos, de exploração, de desprezo, de segregação, que ainda durava há 50 anos, para que pudessem apoiar sem medo um homem da sua raça. Lembrei-ne naquela hora da cena relatada acima e também das lágrimas abundantes que, adolescente, chorei a ler A CABANA DOPAI TOMÁS. Nada do que se passa com os mal amados africanos e seus descendentes, me é indiferente. Ali, naquela hora, cumpriu-se o destino. Todos os impérios acabam.
Segundo registo – campanha milionária. Tal como disse o Prof. José Adelino Maltez lá de Timor, onde agora vive, também eu achei que “a festa foi bonita, pá!”. Bem apessoado, bem falante, desembaraçado, com aquele toque de arrogância que os americanos adoram, inteligente e com boa preparação académica, Barak Hussein Obama é um formidável comunicador. E teve ao seu serviço uma campanha desenhada ao pormenor, para a qual angariou 600 milhões de dólares. Quando alguns, entre eles John McCain, fizeram públicos reparos a essa soma afrontosa em tempos de tão grande crise que o povo americano vive, Obama explicou vagamente que a comunidade negra, toda ela, tinha dado 15 ou 20 dólares por cabeça. Nisto eu acredito, mas temos de reconhecer que não era assim que se chegava aos 600 milhões de dólares. Sabe-se que grandes empresas e empresários lhe deram muito dinheiro. E, o que é interessante, Wall Street entrou com 22 milhões de dólares, depois de ter recusado financiar Hillary Clinton. Ora, como todos temos lido e visto, os dedos acusadores da América e do Mundo têm apontado Wall Street como o alçapão onde se engendrou a crise financeira americana que se espalhou pelo mundo com crashes de bolsa, falências de bancos e indústrias, o que está originar uma taxa de desemprego nunca vista e um sofrimento inenarrável à humanidade.
Obama prometeu muito aos americanos, criou uma expectativa exagerada a seu respeito. E tem pela frente tarefas de meter medo, dentro e fora do território americano. Não duvido que tenha inteligência e vontade para resolver esses problemas, mas duvido que o possa fazer. Ao aceitar milhões para a sua campanha milionária, e arrasante, ficou nas mãos de quem pagou.
Se não cumprir o que eles querem, fica metido num grande sarilho. Mas se fizer a vontade aos pagantes e seus lobbies, tem de enfrentar multidões de pessoas decepcionadas e, o que é pior, de cabeça perdida.
Não sou eu apenas que penso assim. No país em que vivo, muitos o têm dito nas televisões e jornais. Tenho pena que seja assim, mas não estou surpreendida. Este é o jogo republicano, este é o drama das eleições presidenciais republicanas. Não unem, dividem.

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