segunda-feira, dezembro 01, 2003

PRIMEIRO DE DEZEMBRO

Por Teresa Maria Martins de Carvalho

Já não se usa. A “pátria” já não enche os corações. Na organização das nações como nações, o factor económico predomina. Nações viáveis são aquelas cujas estruturas terão capacidade para aguentar-se em pé, contra si próprias e as forças de destruição, que às vezes sobem à tona, e também contra aquilo ou aqueles que de fora se servem do país como caixote de lixo.

Não se insistiu muito no caso de as autoridades francesas e espanholas terem combinado entre si enxotar o Prestige, a escorrer nafta, para as costas portuguesas. O alerta “nacional” foi rápido e evitou o pior para Portugal.

Somos Europa, etc. e tal. Só às vezes... A mesma moeda nas vénias aos grandes que violam pactos cujas leis deveriam ser iguais para todos. Só quem recebeu a Europa Unida, de braços abertos como quem recebe a paz universal, lisa e limpa, se surpreenderá com estas infidelidades nacionais, ou melhor, a arrogância dos grandes, neste caso a França e a Alemanha... Sem elas não haveria Europa? Então aguentem para nós nos aguentarmos. O peso da economia dos dois países é determinante para a saúde económica da União Europeia. É “economicamente” conveniente. Quem faz as contas é que sabe.

Esta retoma útil da bandeira nacional tanto ajuda nas dificuldades dos grandes como na escapatória dos pequenos. Aquilo a que se chama pátria, volta a ter valor, não só para vitórias futebolísticas mas para exorcizar ameaças ou então para servir de encosto a uma posição difícil dos grandes, com piscar de olhos conivente.

Com o grande Mestre que foi Henrique Ruas, há largos anos aprendi, à mesa do PPM, uma frase de Santo Agostinho que me tem acompanhado desde então, como alicerce inabalável em que assentar o meu discurso político.

Populus est coetus multitudinis rationales, rerum quas diligit concordi communione sociatus (De Civit. Dei, XIX, 24)

(Povo é a porção da multidão racional associada pela comunhão concorde nas coisas que ama)

A pátria, o povo que nela encarnou, seria assim da ordo amoris, afirmação que irá concerteza incomodar os racionalistas de serviço. Até porque a data, exaltante e comovente, do 1º de Dezembro, que gera gritos incómodos, um pouco démodés, não se coaduna com a visão económica do novo viver europeu. Até os estudiosos reclamam que, no século XVII, só quando o governo espanhol apertou a bolsa aos contribuintes portugueses, estes se lembraram de que não eram espanhóis e que bem podiam ter outro rei... A Guerra da Independência esgotou depois o país mas o povo reconheceu que aquilo de que gostava (e nisso incluía o lugar real para o Duque de Bragança) não eram só “valores espanhóis”.

As forças do lugar, como diria o meu amigo Álvaro Dentinho, são muito mais determinantes para a identidade do povo, que o habita, do que se pode imaginar. Com litoral e oeste, somos filhos do poente, fácil cais de embarque para a saída, estamos não estamos, até inventámos a saudade para podermos sair sem remorso.

Dizem as más línguas que se Filipe II tivesse feito de Lisboa a capital das Espanhas, nunca teria havido restauração de Portugal, porque a força dos lugares, assim estimados, teria dado a Espanha essa humidade da costa portuguesa que, como disse o pintor Dali, se sente na pintura de Velásquez, cuja mãe como se sabe era do Porto. Pois. A Espanha (Castela, s. f. f.) tem uma enorme força centrípeta e que, até agora, com a ajuda da Monarquia, tem mantido unidas as autonomias, mas que colide sempre com a força centrífuga, não menos importante, que é Portugal. Assim estaremos equilibrados.

Não faz sentido festejar o 1º de Dezembro? Outra invasão, insidiosa, talvez mais potente do que o exército do Duque de Alba, vem acontecendo, com o aval de todos, agora quando nem sequer já há pesetas...

Comprar produtos espanhóis, descontar em bancos espanhóis, ir ao médico ou ao dentista espanhóis... Se forem bons, tanto melhor. Ser espanhol não é por si uma ameaça apesar de andarmos com a Espanha às costas... Estamos habituados às misturas que aprendemos em África, na Ásia e no Brasil. Se, na maré enchente da União Europeia, houver sobrevivência de Portugal, suficiente para se reconhecer a si próprio, será sempre indicando essas lonjuras, pátria de pátrias...

É o poder económico que vai "comprando", no verdadeiro sentido da palavra, o solo português, como fizeram os judeus na Palestina. Os espanhóis compram terrenos no Alentejo, fábricas, lojas, bancos, consultórios. Já nem é preciso gritar para recuperar Olivença. Ela virá ter connosco através desta ocupação do território... Há portugueses, sobretudo na raia, que não se importavam de ser espanhóis. Ganhavam mais. Viviam melhor. É sempre o factor económico.

Festejar o 1º de Dezembro? Quem não se lembra do seu passado não pode viver convictamente o presente. Comer bolachas espanholas não baralha necessariamente o ser e o estar, essa distinção da língua que nos guarda de confusões, patrióticas ou outras.



terça-feira, novembro 25, 2003

CONFISSÕES DE UM TRADICIONALISTA LIBERAL

Por José Adelino Maltez

Porque Portugal também é pátria, a terra dos egrégios avós, sagrada pelo suor e pelo sangue das sucessivas gerações que a desbravaram, defenderam, regaram e semearam, temos de reconhecer que, neste chão moral da história construímos a nossa casa, a nossa eira, o muro do nosso quintal. Que, casa a casa, fizemos a aldeia e, caminho a caminho, nos fomos unindo em freguesia, a tal comuna sem carta, a partir da qual o conventus publicus vicinorum nos deu município, como associação de homens livres, de homens bons.

Foi a partir destas fundações que, concelho a concelho, nos construímos politicamente, como povo de cortes gerais. Essa antiga aliança entre um rei natural e a comunidade da sua terra, desse povo comum que se autodeterminou e quis ser independente, ao instituir a governança da comunidade, a república, originariamente entendida como um concelho em ponto grande, conforme a teorização do nosso Infante D. Pedro (1392-1449) no Livro da Virtuosa Benfeitoria, de 1418.

Por fim, através da união de muitos povos e da federação de muitas pequenas pátrias, elevámo-nos à condição de pátria maior, através de uma comunhão em torno das coisas que se amam, assumindo a dimensão cultural e afectiva de mátria, de maternal nação, assente na nossa terra, na terra da nossa natureza, a tal que veneramos, mesmo quando dela nos distanciamos, pelo exílio, pela emigração, pela expansão.

E, do sentimento pátrio, fizemos saudade, porque em todo o mundo passou a poder haver terra portuguesa, quando, conservando-a na lembrança, tratámos de procurar o sonho do paraíso e a ideia criadora de saudade. Somos, assim, saudosistas, não com o sentido passadista, mas com pessoanas saudades de futuro.

Aliás, tanto o patriotismo como o mais elevado nacionalismo, quando fazemos da nação a escola da super-nação futura, o caminho para uma mais mobilizadora república universal, constituem o preciso espaço que nos permite resistir ao uniformismo, em nome do direito à diferença.

Porque ser patriota não exclui as outras pertenças políticas supranacionais e infra-estatais, muito menos a pertença à cidadania do género humano. Aliás, só podemos ser universais, através de uma diferença enraizada na história vivida, pelo que a nação, para quem a pode ter, constitui uma das poucas vias que resta para a construção de novas repúblicas maiores, supra-nacionais e supra-estatais.

Por exemplo, nenhum apátrida consegue ser europeu, enquanto a Europa puder continuar a ser uma democracia de muitas democracias, tendo em vista e emergência de uma nação de nações. Do mesmo modo, nenhum desnacionalizado, ou destribalizado, pode assumir, orgulhosamente, o projecto de construção de uma cosmopolis. A universalidade apenas se consegue pela individualidade, pela identidade, pela autonomia, pela diferença.

Sou assim tradicionalista. Porque ser pela tradição é saber recuar, em pensamento e em entusiasmo, para, aprofundando o presente, dar raízes ao futuro e assim melhor poder avançar, negando a falsa dialéctica do antigo contra o moderno. Porque só é novo aquilo que se esqueceu, negando a visão tacanha do progressismo. Porque só é moda aquilo que passa de moda, repudiando a ditadura do efémero. Porque o moderno já foi antigo de que o antigo há-de ser moderno, segundo as palavras do Padre António Vieira. Porque só é novo aquilo que vem de trás, reelaborado para um novo fim. Só há o verdadeiro fora do tempo que nos prende, mas desde que se tenha tempo e lugar, os olhos nas estrelas do transcendente e os pés, no chão pisado do dia a dia.

Quase todos esqueceram que a autêntica tradição sempre admitiu o verdadeiro progresso, porque este nunca pode ser visto decepadamente, como um mito desprendido das origens, para utilizarmos uma análise tão cara ao magistério de Henrique Barrilaro Ruas. Porque, de outro modo, a tradição pode transformar-se num sucedâneo do mito pagão do eterno retorno, entendido como um simples círculo fechado, totalmente contrário ao conceito de tempo linear, assumido pelo libertacionismo judaico-cristão. Porque, contra os sucessivos milenarismos do fim da história, há que proclamar, como Santo Agostinho, que não é o mundo que acaba, é um novo mundo que começa. Não pode haver tradição sem inovação, sem aquele movimento que passa por uma realidade viva, bem concreta, e não por um simples espaço vazio.

Assumir a tradição não tem que ser o deus, pátria, família de quem apenas sabia conjugar o verbo salazar. Os tradicionalistas que a democracia gerou depois de 1974 fizeram-se contra o militarismo revolucionário, contra o intervencionismo estatal das nacionalizações, contra a intolerância racista da lei da nacionalidade, contra o desprezo otelista dos direitos do homem. Fizeram-se da liberdade, para a liberdade e pela liberdade, em nome da democracia pluralista, contra as conquistas da unicidade vanguardista dos que instrumentalizaram a ideia de revolução. Há assim uma genealogia liberdadeira do pós-abrilismo, aquela que serviu sem procurar servir-se, ao contrário dos arrivismos fidalgueiros de alguns neo-direitistas das adjûncias mercenárias das alcatifas ministeriais e dos muitos corredores e passos perdidos, onde vão acotovelando-se os interesseiros e pressionantes lobbies do spoil system.

Há um tradicionalismo que readquiriu o sentido clássico do diálogo, onde, etimologicamente, há uma conversa, com alternância no discurso dos interlocutores, passando-se a um tema comum que se percorre, pelo que só pode haver diálogo, quando entre os dialogantes se reconhecem lugares comuns, pontos de passagem que permitem a torça de ideias e de experiências de vida.

A tradição consensualista nunca foi uma tese, contra a qual se assumiu a antítese liberalista, para, depois, desaguarmos na oceânica maravilha da síntese pseudo-futurista, com muita palha de modernidade, pós-modernidade ou vanguarda, mesmo daqueles que, muito exogenamente se dizem conservadores, ou dos que continuam a traduzir nacionalismos em calão de État-Nation ou de national interest.

O tempo pós-revolucionário que vamos vivendo continua a ser de complexidade crescente, onde a convergência do antigo continua em dialéctica com a divergência do actual. As raízes do passado sustentam tanto o tempo presente como as saudades de futuro. Os divergentes continuam em diálogo com os convergentes, a liberdade, com a ordem e a justiça, com a segurança. É essa a inevitável emergência da liberdade vivida, onde não há reaccionários fins da história nem repristinações revolucionárias. É esse o eterno regresso da história, com o consequente relembrar da política, onde é o homem que faz a história, mesmo sem saber que história vai fazendo.

Assumindo, muito provocatoriamente, a memória azul e branca, não me digo, contudo, um mero eclético, doutrinariamente idéologue: isto é, conservador do que está, mesmo a nível dos valores; verbosamente reformista, quanto aos processos; e utopicamente revolucionário, no tocante aos objectivos. Porque não sou dos que, tendo sido da extrema-esquerda aos dezoito anos, se ficam a partir da idade adulta com os nomes da moderação conveniente, para melhor poderem navegar ao sabor do vento, nas águas pantanosas dos tempos que passam, dizendo, nomeadamente, na primeira curva do caminho, que, são de meia esquerda, para, na encruzilhada seguinte, se declararem de meia direita.

Esses, que se ficam por uma espécie de esquerda menos ou de uma direita envergonhada, costumam dizer que não são conservadores, mas reformistas, esquecendo que tudo depende dos ingredientes de conteúdo com que vão enchendo os chouriços daquelas cláusulas gerais que dão parecença ao hábito do respectivo continente, mas que nem por isso faz o monge. Tudo depende da matéria com que se fecunda a forma, bem como da luz simbólica que dá sentido ao corpo político.

Por exemplo, quem assumir as doutrinas sociais do conservadoríssimo João Paulo II está bastante mais à esquerda do que os sociais-democratas herdeiros do Bloco Central. Tal como o modelo anti-plutocrático de Oliveira Salazar (1889-1970) está imensamente mais à esquerda do que a prática assumida pelos governos socialistas dos finais do século XX, nas relações com os grandes grupos económicos. O sentido popular do guerrilheiro miguelista Padre Casimiro José Vieira também não está à direita da versão pós-revolucionária do progressismo cristão institucionalizado pela Conferência Episcopal. O nobre povo dos heróis do mar e da nação imortal é que precisa de voltar a ter a plenitude dos activos direitos políticos!

Em vez da revolução perdida, a que vai de 1820 a 1974, traduzindo em calão outras matrizes, situadas entre 1789 e 1917, prefiro o mito da restauração consensualista, à maneira de 1640 ou de 1808, ou das revoluções evitadas, como o foram a Glorious Revolution dos ingleses, desencadeada em 1688, ou a independência da república norte-americana, de 1787. Modelos que, ao propagarem-se, a partir da era pós-napoleónica, permitiram o actual pluralismo da democracia representativa, assente no sufrágio universal. Até não vale a pena reduzir a Revolução francesa a Robespierre e ao cesarismo e chauvinismo napoleónicos, porque, a partir de 1814, a democracia francesa, com o cartismo moderado restaurou, não apenas a monarquia, mas também o regime misto tentado nos primeiros dias de 1789, com a convocação dos estados gerais, sucessivamente interrompido pelos absolutismos democráticos, de esquerda e de direita.

Quando me qualifico como tradicionalista, quero acentuar que não ouso seguir os tais contra-revolucionários que querem uma revolução ao contrário, porque, mais do que o contrário de uma revolução, prefiro que se avance para uma revolução evitada, a fim de nos livrarmos das pós-revoluções castradoras que sempre nos fazem regredir.

Foi girondino Condorcet (1743-1794) que definiu a contra-revolução como une révolution au contraire, ao que Joseph de Maistre (1753-1821) respondeu, proclamando: nous ne voulons pas la contre-révolution, mais le contraire de la révolution. Assim se sintetizava o pensamento reaccionário puro que não hesitava em utilizar a violência para promover o regresso à anterior ordem absoluta, do trono e do altar, isto é, da monarquia de direito divino, acompanhada pela restauração do próprio poder do papa, segundo as perspectivas do ultramontanismo.

Por seu lado, John Adams (1735-1826), o segundo presidente da república americana, reconheceu que a revolução norte-americana não foi um levantamento inovador, mas a restauração das antigas liberdades e prerrogativas coloniais dos Tudor, criticando o abuso de conceitos apriorísticos que seria praticado por Thomas Jefferson (1743-1826) e James Madison (1751-1836). Neste sentido, subscreveu a tese de Edmund Burke (1729-1797), para quem a mesma foi uma revolução evitada, não realizada.

Quando me proclamo liberal, e até velho liberal, apenas quero dizer que não me seduz certo neoliberalismo importado, difundido pelas potências que beneficiam com as actuais regras do jogo das trocas mundiais de ideias, bens e serviços, porque, face ao pensamento único desse totalitarismo doce, que dissolve as identidades e as autonomias dos povos, das nações e das civilizações, importa assumir o libertacionismo, para se resistir em liberdadeirismo.

segunda-feira, novembro 24, 2003

O MAPA DA EUROPA

Por Manuel Alves

A maré do referendo acerca do projecto de Constituição europeia continua a subir ameaçando oxigenar as águas turvas do ripanço europeu.

Por ocasião da ratificação do tratado de Maastricht a maré tocou a França e a Dinamarca, e, por ocasião do tratado de Nice, a Irlanda. Desta vez, em princípio, haverá consultas populares na Dinamarca, Países Baixos, Irlanda, Luxemburgo, Espanha, e talvez outras mais. Não é de admirar por isso que a subida da maré do referendo, a que se assiste por essa Europa fora, esteja a fazer surgir bastos sinais de preocupação e de incerteza entre os partidários da Constituição europeia.

Alguns comportam-se como se a União tivesse já colapsado, escavando-lhe as ruínas e desenhando-lhe novos projectos. Na França em declínio, por exemplo, aventa-se uma vez mais a possibilidade de se formalizar “uma Europa a duas velocidades”. Edouard Balladur, naturalmente, aproveitou para se congratular (“Une ou deux Europe”, Le Figaro, 29 de Outubro de 2003), enquanto o mais afoito «Director da Fundação para a pesquisa estratégica», François Heisbourg, sugeriu que de um lado podia ficar a “União constitucional” e, do outro, a “Europa do tratado de Nice” (“Le référendum et l’Europe-puissance”, Le Monde, 10 de Novembro de 2003)... O primeiro-ministro francês, Jean-Pierre Raffarin, já expôs o seu ponto fraco: "Se a Europa dos 25 fracassar, que hipótese sobra à França? A iniciativa de aproximação franco-alemã" (Daniel do Rosário, "A ofensiva do eixo", Expresso, 22 de Novembro de 2003).

Até ao fim da Conferência Intergovernamental e à realização dos referendos, é pois de prever uma multiplicação de chantagens e de ameaças.

Os partidários da Constituição gostariam que nos concentrássemos na actual querela entre "pequenos" e "grandes" Estados europeus. Essa querela deve merecer-nos atenção - sem dúvida - mas será muito mais útil que comecemos por recordar quando e porque é que a dimensão populacional dos Estados passou a ter importância na construção da “unidade europeia”.

Não se diga que a querela entre "pequenos" e "grandes" foi provocada pelo alargamento, porque esse problema não surgiu quando o “grande” Reino Unido se juntou à comunidade europeia, a par das “pequenas” Dinamarca e Irlanda. Por essa altura, os estadistas do «Velho Continente» ainda afirmavam querer juntar os povos e as nações europeias através dos respectivos Estados; a comunidade ainda se construía na base da igual importância e dignidade dos Estados; e ainda se reconhecia inteira legitimidade aos Chefes de Estado ou de Governo para representar as respectivas democracias nacionais.

O problema da dimensão populacional dos Estados só surgiu quando se instituiu o Parlamento europeu. Ao aceitarem a instituição de um órgão que agregava a representação dos cidadãos por cima dos seus Estados, os Chefes de Estado e de Governo acolheram o princípio da desigualdade dos Estados e diminuíram o princípio de legitimidade das democracias nacionais que representavam.

Foi por intermédio da criação do Parlamento europeu que se lançou uma contradição entre duas legitimidades que, não obstante derivarem da mesma fonte – o voto dos cidadãos -, cedo ou tarde, terá de ser superada: a contradição entre uma União Europeia baseada nas democracias nacionais e uma União Europeia baseada numa unidade supranacional onde o peso dos “grandes” esmagará tudo à sua passagem.

Essa contradição eclodiu de forma dramática em Nice, onde foi possível assistir ao agonizante protesto dos representantes dos “pequenos” Estados em busca de “minorias de bloqueio” nos órgãos colegiais da União. Então, os “grandes” limitaram-se a sorrir perante os “pequenos” diminuídos face à “grandeza europeia”.

Do sorriso, passou-se entretanto à ameaça.

Na «Declaração de Roma», em 18 de Julho de 2003, Valéry Giscard d’Estaing já não teve pejo em afirmar que pôr em causa o seu projecto de Constituição, "ainda que só parcialmente, conduzi-lo-ia ao fracasso". Mas, porque é que manter intacto o projecto de Constituição dos convencionais é assim tão importante?

Porque nele se resolve a enunciada contradição, como os próprios convencionais deixaram tombar ao afirmar que não podiam aceitar uma Europa onde “o dogma da igualdade entre os Estados” levaria a uma situação de "desigualdade entre os cidadãos" - "il ne serait pas acceptable d'imaginer une Europe où le dogme de l'égalité entre les Etats aboutirait à une situation d'inégalité entre les citoyens." (Giuliano Amato, Jean-Luc Dehaene e Valéry Giscard d’Estaing, “L'Europe demain : la fausse querelle des «petits» et des «grands»”, Le Monde, 13 de Novembro de 2003). Esta linguagem algo cifrada dos convencionais quer simplesmente dizer que, no seu projecto, a agregação dos cidadãos nas democracias nacionais fica subalternizada à agregação dos cidadãos ao nível europeu, ou seja, os Estados-membros ficam remetidos para a condição de instâncias inferiores e secundárias de um Estado unitário europeu em construção.

E a referida contradição está na verdade praticamente superada no projecto de Constituição, quando se atribui explicitamente à União Europeia a personalidade jurídica de um Estado cuja soberania constituinte se sobrepõe à dos Estados-membros (Jorge Miranda, “«Constituição» Europeia e Revisão Constitucional”, Público, 1 de Outubro de 2003), mas também quando surgem nele tão largamente reforçados de competências os órgãos supranacionais existentes: o Parlamento europeu e a Comissão.

A questão essencial em qualquer Constituição é sempre a de saber quem é que faz e aprova as leis. Ora segundo a Constituição dos convencionais, a função legislativa será exercida pelo Conselho de Ministros (órgão das “soberanias nacionais”, deliberando por maioria qualificada, sem veto), pelo Parlamento (órgão da “soberania europeia”, deliberando por maioria simples) e pela Comissão (Executivo “europeu”, deliberando por maioria simples com uma legitimidade conferida pelo Parlamento). Porque é ao Conselho de Ministros e ao Parlamento que compete aceitarem, ou não, as iniciativas legislativas da Comissão, se fosse ratificada a Constituição dos convencionais, às democracias nacionais pouco mais restaria que uma representação num Conselho de Ministros onde as mais importantes decisões seriam tomadas por maioria qualificada, sem veto.

Acresce que a Constituição prevê também a anulação das soberanias nacionais em matéria tão decisiva como a política externa e de defesa, instituindo um Ministro europeu dos Negócios Estrangeiros – Vice-presidente da Comissão - que agiria, falaria, e poderia assinar Tratados internacionais em nome dos Estados-membros.

Pela disposição dos órgãos e das competências, é certo que muito dificilmente se poderiam evitar no futuro os conflitos entre um Conselho de Ministros, que formalmente ainda “representa os Estados-membros”, e uma Comissão que se diz “representar o interesse geral” da União. Mas, sempre que estalassem conflitos de competências entre os vários órgãos legislativos, para qual deles seria pedido reforço de competências? Seria de esperar a atribuição futura de mais poderes ao Conselho de Ministros, órgão das residuais “soberanias nacionais”? Cedo ou tarde, os reforços de competências seriam naturalmente pedidos e atribuídos pelos “grandes” aos órgãos supranacionais, ou seja, à Comissão e ao Parlamento. Foi à Comissão e ao Parlamento que os convencionais atribuíram a missão de acabar de vez com o poder dos “pequenos”.

E tanto assim é que na Comissão, Michel Barnier e António Vitorino pedem já um “programa interinstitucional”, tendo por centro uma agenda proposta pela Comissão, e um Ministro da política económica europeia, sob a coordenação do seu presidente. E a procissão ainda vai no adro. Para 2005 está prometido um debate acerca da afectação directa de receitas fiscais para o Estado europeu. Seguir-se-ia, naturalmente, a pretexto da gestão dos programas e da aplicação da legislação europeia, a criação de uma Administração europeia a instalar e a intervir directamente sobre as administrações dos Estados-membros, convertidas em administrações subordinadas ao Estado europeu. E seguir-se-ia também a definição das fronteiras do Estado europeu, da sua capital, e das línguas oficiais (num máximo de três, por óbvias razões “técnicas”...). Não, não se pense que tudo isto são devaneios de alguns eurocratas; são propostas concretas dos partidários do Estado Europeu (como exemplo, ver Alain Lamassoure, “Après la Convention: vers la Constitution Européenne”, Commentaire, Outono de 2003).

Quanto ao Parlamento, é certo que ainda ali estão alguns deputados como Georges Berthu e José Ribeiro e Castro com coragem suficiente para lavrar o seu protesto face ao Estado unitário proposto pelos convencionais... Cedo ou tarde, porém, passariam a existir apenas deputados submetidos às lógicas e às disciplinas partidárias das «esquerdas» e das «direitas» europeias, anulando qualquer vestígio de representação dos interesses das Nações por que foram eleitos.

Depois de Nice, na perspectiva da construção de um Estado europeu, a alternativa que se desenhava no horizonte era entre presidencialismo e parlamentarismo. A solução presidencialista era precocemente “perigosa”. Bastou, por isso, impedir-se a instituição de uma segunda Câmara das Nações, para que ficasse escancarada a porta ao que por aí se designa por “democracia supranacional”, que o mesmo é dizer ao estabelecimento de um Estado europeu unitário assente na atribuição do monopólio do poder aos directórios partidários, que, no Parlamento europeu, se designam por Partido Popular Europeu (PPE) e Partido Socialista Europeu (PSE). Os "grandes" da Constituição dos convencionais, afinal, não são propriamente os Estados...

Pelo paralelismo com algumas democracias nacionais, percebe-se bem o alcance da démarche dos convencionais. Porque é que em certas nações - como em Portugal - para alguns é tão importante que exista uma e apenas uma Assembleia legislativa? Não embaraça a resposta: porque em tais nações, é por intermédio da unidade da representação, personificada na unidade de uma Assembleia, que se pode dispor de um poder imediato, presente, instantâneo, que subindo do legislativo ao executivo fica sempre guardado nas mãos de uns poucos - os directórios partidários. Aí está a opção de fundo tomada pelos convencionais ao estabelecerem o actual projecto de Estado europeu.

Contra a lição actualíssima da História, quando ainda está bem viva na memória de todos a irremissível liquidação do colossal projecto de fusão de Nações, levantado pelas oligarquias comunistas do Leste, eis que as oligarquias democratistas do Ocidente copiam a seu modo o empreendimento falhado. Esquecem, lamentavelmente, – como advertiu um dia Mário Saraiva - que as Nações com uma alma, uma língua, uma independência de vida e fazedoras de História, nunca são impunemente suprimidas do mapa dos continentes.

sexta-feira, outubro 24, 2003

REFERENDOS

Por Teresa Martins de Carvalho

Quando se pretende saber a resposta a determinada pergunta, resposta que seja mesmo a valer, comprometedora e não uma brincadeira, a primeira condição é, evidentemente, que a pergunta seja clara, entendível, sem segundos sentidos. Figura introduzida recentemente no direito político português, o referendo tem conseguido, nas vezes que foi aplicado, uma importante percentagem de n/s, n/r (não sabe, não responde) “resposta” que conhecemos das simples sondagens a amostras de gente.

Este alto índice de abstenção, ou seja de recusa a responder, (que é isso que quer o dizer o n/s, n/r) é que decide do valor indicativo e depois aplicável a lei ou autorizando tomadas de posição. Se a abstenção for alta, o referendo perde o seu valor de referendo... É o que nos dizem. Uma maioria forte é a verdade, a maioria simples é mentira.

Daqui a necessidade de uma pergunta ou perguntas acessíveis e interessantes de modo a provocarem tomadas de posição reais em quantidade bastante para legitimarem o referendo. Se a pergunta for capciosa, percentagem ou não percentagem suficiente, é tudo mentira.

Estas coisas já as sabemos e é um risco para a governança lançar referendos a desagradados cidadãos que, não percebendo o que se quer deles, negam tudo. Porque é disso que se trata. Sacar as respostas que se pretendem para satisfazer ideologias impraticáveis, refrescar posições do poder ou assegurar caminhos já tomados. No fundo, quem se interessa pelos resultados dos referendos é um executivo que necessita de aprovação geral afim de legitimar acções que arrastam consigo responsabilidades enormes que ninguém gosta de tomar sozinho e ser julgado depois, à luz da História. É mais fácil descarregar no referente. Foram vocês que quiseram...Ou não quiseram.

Manejável, o referendo? Muito. Uma conhecida figura socialista em funções políticas teme o referendo sobre a Constituição europeia porque pode dar origem a negações estrondosas que, provavelmente, irão fazer perder subsídios europeus ao menino Portugal, bem comportado e pobre, fazendo também nascer resquícios de um nacionalismo muito pouco europeu, reaccionário e inútil. E o que o padres irão dizer nas igrejas?

Este senhor não quer o referendo, é óbvio. Acha-o perigoso de mais.

O resultado do referendo sobre o aborto de há poucos anos, não satisfez a esquerda parlamentar que vai lançar outro referendo, e lançará mais outro e outro... até dar a resposta que quer... É uma táctica diferente.

Caso curioso é o do referendo sobre a regionalização. Esta foi recusada porque as regiões não querem ser confundidas. Têm as suas culturas próprias e rejeitam serem definidas e misturadas à vontade de ministros ditos tecnológicos, recortando o país no recato dos gabinetes, à moda de Mousinho da Silveira... Não espreita já a Maria da Fonte mas foi isto que talvez tenha acontecido e não a defesa intransigente de um qualquer centralismo salvador que não deixasse cortar o país aos bocados e guardasse a união nacional. Deixar a iniciativa aos municípios para se unirem quando têm interesses comuns? É isso que está acontecendo, sem referendos e mandatos de cima.

O que é a Europa? Se o país é pequeno e a sua língua é pouco falada na União (embora seja das mais faladas no mundo), de nada vale. Outros países com mais peso linguístico, por virtude de maior população, determinarão quais serão as línguas consentidas nos encontros dos 25. O português é pouco falado logo não é europeu que se veja.

Mas os portugueses só serão europeus se forem portugueses, falantes e tudo. Se alguém julga que pode pôr de lado uma língua sem grande expressão na Europa só para facilitar os encontros europeus, está a ferir a Europa, a magoá-la, a desfigurá-la porque lhe pertence toda a História passada, com cristianismo, sim senhor, e o seu papel fundamental na construção da civilização ocidental.

A Europa é a morada de muitos povos e línguas, “globalizá-la” é faltar à História para poupar aos presentes as escravidões da memória. Não é só um mercado, mas variedade.

Sem memória não há gente consciente, com vontade própria. Manejada pelas economias e sujeita à “força militar única”, com destino imperial, só para enfraquecer os Estados Unidos...

No fim e ao cabo, o referendo que os governantes vão “conceder” aos portugueses a propósito da Constituição europeia, está, à partida, submergido na formidável complexidade da questão. Se é para os portugueses nela intervirem na escolha (qual escolha?) de uma Constituição para a Europa não são eles assim tão parvos. A única qualidade que tem o referendo – e afinal a sua única força – é podermos dizer não... No gesto de quem o promove vem sempre o sim implícito, esperando a ronha sabida do governante que o povo caia na tentação do facilitismo. Não vamos nisso.

segunda-feira, outubro 20, 2003

JOÃO PAULO II

Por Teresa Martins de Carvalho

É já considerado o Papa mais importante do século XX, não só por causa da extensão do seu pontificado mas sobretudo pelo vigor de muitos dos seus gestos e ditos, clamorosos, inéditos ou que vieram completar, estrondosamente, os gestos, proféticos, iniciados por João XXIII e Paulo VI, seus antecessores.

A insistência no perdão, na paz, na união, no derrubar de muros, na reparação de rompimentos e de ódios, na salvaguarda da família e da vida, cria-lhe temas extremos que terá de desenvolver segundo a fé e que explicam a velocidade de um pontificado que também se pode exprimir em números: tantas viagens, tantas canonizações, tantas beatificações, tantos discursos, tantas encíclicas, tantas intervenções...

Um Papa polaco? Quando o soube, Brejnev, o ditador de serviço na União Soviética, exclamou: - Agora há-de querer ir à Polónia... Vai tudo acabar, então...

A queda do muro de Berlim e a reunificação da Europa começa aí, com um Papa polaco. E não sabia da missa a metade... A compleição de um atleta, a força física patente de quem pratica desporto ao ar livre, a sensibilidade do artista, a ternura de quem foi privado da família desde cedo, o gosto pela festa, o bom humor, são qualidades que outras pessoas porventura compartilharão com ele. Parece-nos que aquilo que faz a força do Santo Padre se considera melhor noutra dimensão: a coerência. Coerência firme, resoluta, corajosa, entre aquilo em que acredita, a sua fé e o que pensa, diz, faz... É raríssimo encontrar um espécimen humano com tal grau de unidade da mente, coração, inteligência, vontade. Essa força espiritual transforma-se nele em poder quase mágico, contagiante, o do orante contemplativo que recorda a fascinação que exerce nos crentes o staretz russo, o santo eremita, característica única da intensa espiritualidade eslava. Este carisma excepcional que atrai multidões, conquista os jovens, ele, o papa “sempre juvenil” mesmo agora, já velho e tão doente, arrastando-se numa Via Sacra interminável, imagem do seu modelo Jesus Cristo, dando-se até à Cruz.

Num mundo onde os corpos jovens dominam a sociedade, sociedade em que os velhos são “descartáveis”, esta visão do Papa moribundo incomoda. Ela anuncia quem está saudável mentalmente, mesmo sem quase poder mexer-se nem por isso deverá desligar-se da sua vocação, religiosa ou humana. Persistência e coragem mais uma vez por mostrar-se assim diminuído, aos olhos de todos, ele, o antigo atleta. «É quando sou fraco que sou forte» diz-nos S. Paulo (2 Cor 12, 10). Belo exemplo para todos os fracos, os velhos e os doentes que sofrem a tentação de desistir de viver, de cumprir até ao fim a sua chamada a este mundo.

São inumeráveis os pontos em que assentou a sua força e a sua verdade mas talvez o que mais marcará a sua passagem na Cadeira de Pedro é o abrir os braços aos outros cristãos separados, na busca da unidade, aos crentes de outras religiões, começando pelos judeus, “nossos irmãos mais velhos”, o chamado espirito de Assis, onde por duas vezes, na terra de S. Francisco, foi o anfitrião humilde dos crentes de todos os quadrantes, na oração comum pela paz.

Este Papa universal que transita de século e de milénio, como quem abre portas, é uma figura luminosa, ponto de referência e de acolhimento.

«Vós sois o sal da terra e a luz do mundo» disse o Senhor aos seus seguidores (Mt 5, 13-16). Na sociedade ocidental em perda de valores, que já não é cristã, nem sequer de inspiração cristã, sociedade do simulacro, da vitória da aparência sobre o ser, percebe-se que tal homem, como João Paulo II, marque o seu tempo como figura insigne, perpassada de mistério e de intensa humanidade.

A beatificação de Madre Teresa de Calcutá, que tão ardentemente ansiava realizar, obtendo que o processo galgasse trâmites e tempo, ver-se-á sempre como o encontro desejado e culminante entre duas figuras maiores do século XX, ambos transportando consigo, nas suas vidas, o radicalismo evangélico. O Papa tão criticado por ser político, a religiosa tão criticada por não ter sido política.

Dons de Deus à humanidade.

quinta-feira, outubro 16, 2003

«TU ÉS PEDRO»

“Chegando Jesus ao território de Cesaréia de Filipe, perguntou aos discípulos: «Quem dizem os homens ser o Filho do Homem?» Disseram: «Uns afirmam que é João Baptista, outros que é Elias, outros, ainda, que é Jeremias ou um dos profetas. Então lhes perguntou: «E vós, quem dizeis que eu sou?» Simão Pedro, respondendo, disse: «Tu és o Cristo, o filho do Deus vivo». Jesus respondeu-lhe: «Bem-aventurado és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi carne ou sangue que te revelaram isso, e sim o meu Pai que está nos céus. Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei minha Igreja, e as portas do Inferno nunca prevalecerão contra ela”

(Mt 16, 13-18)


quarta-feira, setembro 17, 2003

O perfil da Europa (II)

Por Manuel Alves

No princípio, as leis da Cidade Antiga não tinham preâmbulos. Era Platão quem dizia que obedecer às leis era obedecer aos deuses; o rei era um pontífice, o magistrado um sacerdote, a lei uma fórmula sagrada.

A cidade antiga não se formava lentamente por agregação de famílias ou de indivíduos. Estabelecia-se num só dia e por confederação de grupos. Na base, estava a família e a religião do lar, com o seu chefe, o seu deus e o seu altar. Acima da família estava a fratria, com um deus guardando as várias famílias. A seguir estava a tribo, e o deus da tribo. Por fim, quando as tribos resolviam fundar uma cidade concebia-se um deus cuja providência a todas abrangesse.

A cidade antiga não se formava sem o sopro de uma ideia religiosa. Antes de ser uma comunidade política, a cidade era uma comunidade religiosa. Eram os deuses domésticos e as divindades políadas que geravam o direito a que o cidadão submetia a sua alma, o seu corpo e o seu património.

Foi a aristocracia quem começou por retirar a autoridade política aos reis. Depois, libertados os clientes, criou-se a plebe que vai participar no governo da cidade. O sistema de governo na cidade antiga passou então a poder tomar vários nomes: monarquia, aristocracia e democracia. No Ocidente, esses nomes já pouco nos podem dizer: a monarquia não é mais o governo de um só; é interdito impedir o acesso ao poder dos medíocres; em nenhuma parte o poder é exercido pela maioria dos cidadãos. E, no entanto, há uma receita que continua a ter seguidores: “Se se quiser fundar a democracia – escreveu Aristóteles na Política (VI, 2, II) – far-se-á o que Clístenes praticou entre os atenienses: estabelecer-se-ão novas tribos e novas fratrias; os sacrifícios hereditários das famílias, substituí-los-emos por sacrifícios aos quais todos os homens serão admitidos; confundam-se, tanto quanto possível, as relações dos homens entre si, tendo o cuidado de destruir todas as associações anteriores”.

Estabelecida a democracia antiga, confundidas as relações dos homens entre si, destruídas todas as associações anteriores, estava aberto o caminho para o governo daqueles que se contentavam com o epíteto de tiranos. Enquanto os reis haviam retirado a sua autoridade do culto do lar; os tiranos eram apenas chefes políticos, com uma autoridade assente na força ou na eleição.

A democracia antiga acrescentou direitos políticos aos cidadãos, como poder votar-se na nomeação de alguns magistrados, mas nem um só direito individual conquistou o poder de resistir ao Estado. O Estado continuava a ser omnipotente na vida privada, na educação, na religião. Sócrates foi condenado à morte porque cometeu a grande impiedade de duvidar da Atena Políada. Anaxágoras teve o mesmo fim, depois de tornar pública a sua concepção do Deus-Inteligência.

Face à omnipotência de um tal Estado, percebe-se bem a importância, para cada homem, de possuir direitos políticos: só possuindo alguma parte da soberania podia o homem ser alguma coisa. Os cidadãos não estavam interessados na liberdade, queriam possuir algo que os outros homens pudessem ter em consideração. A segurança e a dignidade do homem consistia em ser membro de uma soberania.

A democracia de Atenas, exemplar a muitos títulos, não o era menos pelo apreciável número de magistrados: o arconte, que velava pelos cultos domésticos; o rei, que realizava os sacrifícios; o polemarca, que chefiava o exército e julgava os estrangeiros; os tesmótetas, que presidiam aos julgamentos; os adivinhos que consultavam os oráculos; os que acompanhavam o arconte e o rei nas cerimónias; os atlótetas, que preparavam as festas quadrianuais de Atenas; os prítanes que vigiavam pela manutenção do fogo público e sagrado; os estrategos, que cuidavam dos negócios da guerra e da política; os astínomos, que cuidavam da polícia; os agoránomos, que vigiavam os mercados da urbe e do Pireu; os metrónomos, que verificavam pesos e medidas; os guardas do tesouro; os recebedores de impostos; os encarregados da execução das sentenças...

Os membros do Senado – o mais importante dos órgãos políticos da cidade - eram sorteados, bem como a maioria dos magistrados. Os atenienses queriam o seu quinhão de soberania, mas desconfiavam muito dos caprichos do sufrágio universal. Só os magistrados que não exerciam funções de ordem pública eram eleitos, e só entravam na eleição aqueles que se submetiam à observação e ao interrogatório do Senado e do Areópago. Com a excepção dos atlótetas, as restantes magistraturas eram normalmente anuais, responsáveis e revogáveis a qualquer momento. Porque a maior parte destas magistraturas se repetia em cada uma das tribos e dos demos, era praticamente impossível dar um passo na cidade ou no campo, sem logo se topar com algum magistrado.

Apesar de tão grande número de magistrados, e da igualdade no acesso, nem por isso as guerras civis deixaram de avassalar a Grécia. Obtida a igualdade política da democracia, ficou sublinhada a desigualdade das riquezas, passando os homens a guerrear-se por interesses. Segundo os testemunhos de Aristóteles (Política, V, 7, 19) e de Plutarco (Lisandro, 19), os ricos nunca perderam o hábito de pronunciar entre si o seguinte juramento: «Juro ser sempre inimigo do povo, e fazer-lhe todo o mal que puder». E, em todas as guerras civis, diz Políbio (XV, 21, 3; VII, 10), tratava-se de deslocar as fortunas. Desde a guerra do Peloponeso até à conquista da Grécia pelos romanos, as inúmeras guerras civis oscilaram sempre entre as que espoliavam os ricos e as que os reintegravam na posse dos bens. Todo o demagogo fazia como esse Molpágoras de Cios que entregava à multidão os que possuíam dinheiro, massacrava uns, exilava outros, e distribuía os seus bens pelos pobres.

Tucídides, apesar de não morrer de amores pela democracia, considerava que “o regime democrático era necessário para que os pobres tivessem um amparo e os ricos um freio”. Preocupava-se com os meios capazes de assegurar a paz civil; o amparo dos pobres, num sociedade em que o trabalho era uma indignidade, era o seu direito de viver do sufrágio, fazendo-se pagar para assistir à assembleia, para votar, para testemunhar, ou para julgar nos tribunais (Aristóteles, Política, II, 9, 3; Aristófanes, Cavaleiros, 51, 255; Vespas, 682).

Quando os ricos estavam no poder, a democracia era uma oligarquia. A democracia dos pobres, essa, era invariavelmente uma tirania. O tirano começava sempre por ser um demagogo saído do partido popular. O meio de obter o poder estava em ganhar-se a confiança da multidão, e ganhava-se essa confiança declarando-se inimigo dos ricos. Assim o fizeram Pisístrato em Atenas, Teágenes em Mégara e Dionísio em Siracusa (Política, V, 8, 2-3; V, 4, 5).

Mas, e apesar da frequência das conspirações e das guerras civis, não esteve apenas na cupidez dos pobres e no medo dos ricos a causa da ruína da democracia grega e, por fim, da própria Grécia Antiga.

Quando os convencionais da União Europeia nos recordam a oração fúnebre de Péricles, na boca de Tucídides (II, 37) - «A nossa Constituição ... chama-se "democracia" porque o poder está nas mãos, não de uma minoria, mas do maior número de cidadãos» – não desconhecem decerto as profundas diferenças políticas e sociais que nos separam do mundo antigo, mas recordam-nos, talvez sem o desejar, que Péricles defendeu ali a Constituição de Atenas enunciando um novo tipo de "patriotismo" ao serviço de um projecto imperial.

Na oração fúnebre, as palavras de Péricles dirigem-se tanto a nativos como a estrangeiros, apresentando a democracia de Atenas como «um padrão de referência», como um modelo a imitar por todas as cidades gregas: porque «há igualdade perante a lei»; porque «dá aos homens a liberdade e a todos abre caminho das honras»; porque «mantém a ordem pública, assegura aos magistrados a autoridade, protege os fracos, e dá a todos espectáculos e festas que são educação da alma»; e, ao concluir, «Eis aqui porque os nossos guerreiros preferiam morrer heroicamente a deixar que lhes tirassem esta pátria; eis ainda porque quantos sobrevivem estão sempre prontos a sofrer por Atenas e a consagrarem-se-lhe.»

Para Péricles, a pátria deixara de merecer ser amada por nela estar o lar de seus pais, pela sua religião e pelos seus deuses. A pátria merecia ser amada pelas suas leis, pelas suas instituições e pelos seus direitos. O cidadão ainda tinha deveres e ainda se podia sacrificar pela sua cidade, mas porque nela usufruía de instituições que lhe davam vantagens.

O patriotismo mudara de natureza. No lugar do patriotismo da piedade e da fé dos primórdios da cidade, surgia o patriotismo das leis, das instituições, dos direitos e da segurança. O patriotismo tornava-se um sentimento variável, dependendo das circunstâncias e das incertezas das leis e do governo. Só se amava a pátria pelo seu regime político, e, se as leis eram más, o cidadão já nada mais encontrava a liga-lo à pátria.

No tempo de Péricles, havia na verdade um novo tipo de “patriotismo” dando os primeiros passos no palco da História – o patriotismo das ideologias. A Ideia de cada um tornava-se mais importante e mais sagrada do que o bem da sua própria pátria; o triunfo da sua ideologia, do seu partido, da sua facção, tornava-se-lhe mais querida do que o bem da sua cidade. Doravante, a cidade natal podia ser preterida por outra na qual se encontrassem as instituições de que se gostava. O exílio deixava de ser temido, podendo ser mesmo motivo de orgulho e de jactância. E daqui a armarem-se contra a própria pátria, não foi grande distância; muitos se passaram a aliar à cidade inimiga para, na sua cidade, fazer triunfar o seu partido. Esparta tinha partidários em todas as cidades jónicas. Atenas tinha partidários em todas as cidades do Peloponeso. Para terem a constituição que queriam, muitos gregos sacrificaram a independência da cidade a que pertenciam.

Moribundo o culto dos antepassados que fundara a cidade, enfraquecido o espírito municipal, por toda a parte os gregos passaram a lutar pelo estabelecimento de uma constituição do seu agrado, por uma constituição que consagrasse a hegemonia da cidade que tomavam como modelo. Não foi outro o teor do “patriotismo” de que Tucídides (III, 69-72, 82; IV, 46-48) nos deu demoradamente conta para mostrar como essa nova tendência dos espíritos contribuiu de forma decisiva para gerar e fazer durar a guerra do Peloponeso.

A mentira procura sempre imitar a verdade, mas não poucas vezes a verdade lhe responde com zombaria: no patriotismo das leis de Péricles está já bem presente a tendência do espírito, o «élan», que fez a fortuna dos conquistadores romanos.

segunda-feira, julho 28, 2003

PERDOAR

Por Teresa Maria Martins de Carvalho

Uma destacada figura do nosso palco político, para justificar as suas posições mais extremas, começou por anunciar “não sou cristão, não esqueço, nem perdoo”. Perguntamo-nos, com espanto, o que fará então? Exigirá justiça? Ou vingança?

Sem o saber (ou talvez não...) indicou (por bravata?) uma das características fundamentais do cristão: perdoar, perdoar sempre, não só sete vezes mas setenta vezes sete, nas palavras de Jesus.

Quem não perdoar está paredes meias com a violência e com a vingança. Substituir o perdão pela justiça, isto é pelo “justo” castigo, é caminho apertado, encostado perigosamente à violência. Não será a prisão uma violência? Violência legal... A pena de morte, essa, então...

O direito é uma das invenções mais extraordinárias do espírito romano, esses tão mal tratados romanos, no que diz respeito às outras suas invenções, aventuras, feitos e descobertas. Imaginar o direito ao direito, na organização e apaziguamento da sociedade dos homens, sempre dispostos a arreganhar os dentes, a concretizar a sua fúria, a matar, até, é um dos feitos históricos mais marcantes da civilização.

Para acompanhar o pensamento lúcido do antropólogo francês René Girard em relação à violência, sempre presente e sempre prestes a eclodir na comunidade humana, teremos de decidir se a violência não estará também presente na justiça? A canalização da violência sobre o bode expiatório, presente nos processos sumários de linchamento, na justiça “por nossas próprias mãos”, tem sido veementemente apelidada de criminosa e automaticamente banida do viver social. Mas está presente, afinal, como diria Girard, com todo o seu poder contagiante, contido pela estrutura frágil das leis.

Ao chamado Estado de direito pede-se-lhe tudo. E até, às vezes, perdoar, como acontece nas diminuições de pessoas, nas amnistias concedidas em comemorações importantes e até na prescrição de longos litígios nos tribunais.

Diante deste aparelho judicial intimidante, parece, de facto, não existir lugar para o perdão cristão. Não é preciso. Tudo se resolve a contento de todos. Já não são necessárias “moralidades”, tão votadas ao desprezo pelos ditadores racionalistas. Será assim?

Aquilo que se passa actualmente em Portugal, com juízes e advogados em plano maior, sujeitos a julgamentos populares, por causa da sua administração da justiça, que aparece ora litigante ora confiante, em maquinações de poder, seja ele político, social ou mesmo o próprio poder judicial, tem gerado um desconforto profundo que faria empalidecer Montesquieu que tão sabiamente preconizou a separação dos poderes para se alcançar paz social....

Será a sociedade racional, à maneira da Luzes, a sociedade última e perfeita? Apesar dos embaraços no caminho, as luzes iluminam o futuro, um futuro laico que ignora a sua herança cristã, como hoje faz a Convenção europeia, ditando uma Constituição muito racionalmente construída, acima das emoções e das recordações das gentes. A filiação cristã, reconhecida e ouvida, daria outra consistência ao planeado, fazendo aparecer, em transparência, o antigo perdão do Evangelho com o seu esquecimento adstrito. Mas não é tida em consideração.

Tanto se fala na “perda de valores” mas ninguém os quantifica e descrimina, com receio de cair no “moralismo” evangélico, fora de moda. Pois lá estão, o perdão e o esquecimento.

Os antigos, com o estabelecimento da lei de Talião, “olho por olho, dente por dente”, tentaram um abrandamento da violência social. A garantia de uma vingança ou de um castigo “justos”, isto é, que não ultrapassassem o peso da ofensa que é justo vingar, foi um grande avanço no regulamento da vivência dos homens uns com os outros. O prazer maléfico que existe em toda a vingança que for pior do que crime, cria uma espiral de violência, sucedendo-se a si própria, sem fim. Esta espiral, encontramo-la nos “acertos de contas” das famílias, mafiosas ou não.

Mas na aplicação das leis, multas ou penas de prisão, não existirá violência? O que é estar preso? Aqui se evoca, de novo, o perdão e o esquecimento recusados a priori pelo nosso exigente político.

Perdoar é também esquecer, como ele reconheceu. Quem esquece? O preso libertado que já pagou “a sua dívida à sociedade” como dizem os bons espíritos, tem dificuldades em nela se reintegrar, o antigo Pide não recebeu a condecoração pelas suas actuais e muito virtuosas acções, o antigo nazi não pode ser presidente da Áustria, Mitterand afinal estava presente em Vichy e logo acabou o mito do tonton Mitterand. Não há esquecimento porque não houve perdão. O ódio, o ressentimento, a desconfiança, a má vontade, o cheiro pegajoso da vingança não desapareceu mesmo com justiça feita. Não há paz.

Um lavrador alentejano, familiar muito próximo, ao receber de volta, pelas mãos dos trabalhadores, a herdade que eles tinham ocupado durante cinco anos, a favor da Reforma Agrária socialista, ao perceber que teria de ouvir confidências maldosas, sobre o que este fez e o que aquele disse, convocou o pessoal e, apesar dos maus tratos que a terra tinha levado, advertiu-o de que, dali em diante não ouviria nada de ninguém, mesmo havendo razões concretas para denúncias. Era preciso recomeçar como se nada tivesse acontecido. E houve paz.

Quando consideramos essa Terra a que chamamos Santa e assistimos à disputa de direitos, entre os dois ofendidos, Sharon e Arafat, cada povo com as suas razões, as suas queixas, a sua ferocidade, as suas naturais vinganças, sentimos que só o perdão e o esquecimento fariam a paz.

Assim, sem esquecer nada, os dois povos, o judeu e o palestino, continuarão a agredir-se mutuamente, carregados de ódio, de frustração, de ressentimento que são como cordas que os amarram e impedem de avançar com as mãos abertas e o espírito lavado.

O perdão cristão e o esquecimento que lhe está associado não são um “truque bonzinho”, feito de moleza e cobardia, mas são urgente e corajosa chamada a uma ultrapassagem espiritual, com efeitos benéficos na sociedade humana, no encontro do homem com o homem, de cara a cara, quando se descobrem e mutuamente se aceitam, em aprendizagem e acolhimento. Como diria Levinas, o indivíduo tem a responsabilidade do seu perseguidor. Por isso, no Evangelho, se pede a seguir ao perdão “amai os vossos inimigos”.

Perdoar é ser livre.


segunda-feira, julho 21, 2003

HENRIQUE RUAS
-IN MEMORIAM –

Por Teresa Maria Martins de Cavalho

O primeiro sentimento que nos apanhou de chofre ao saber da morte de Henrique Ruas foi o de terrível orfandade, dor oca da falta sem remédio, de tal modo ele era para nós a referência do pensamento político, o ponto fixo da tradição e da inteligência, o eixo movente da história com os seus acontecimentos, a meditar, a colaborar, a contradizer.

Irmanava-se com todos nós, seus companheiros, participantes do seu amor a Portugal e às coisas portuguesas e do seu pasmo ante o mistério do homem, e à sua atenção à chamada permanente para descobrir, pensando, direcções de acção, à beira da verdade.

Exemplo raro de alguém, trabalhado pela vida, com épocas difíceis, duras até, que foi sempre animado pela Fé, confortado pela cultura e pela roda dos amigos e admiradores.

Ciente do próprio valor, era generoso na dádiva do seu saber e do seu tempo, em gesto incrível de humildade na admiração pelos outros e no optimismo cristão de que estamos neste mundo com as mãos prontas para tarefas e projectos que nos pedem, nos envolvem, nos entusiasmam, enquanto houver forças, até ao fim...

Como disse o Bispo D. Manuel Clemente na Missa de Corpo Presente, devemos dar graças a Deus por Henrique Ruas ter existido, tal a sua qualidade em tantos aspectos. E, acrescentamos nós, por o termos conhecido, este português cristão, por termos apreciado e sentido a força do seu espírito e o calor humano do seu coração, termos ganho a sua bondosa amizade e a riqueza da sua convivência.

“Felizes os que desde agora morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, que descansem dos seus trabalhos porque as suas obras os seguem” (Ap. 14, 13). Esta sentença que se foi buscar ao Livro do Apocalipse, Livro com tão má fama de exóticas catástrofes mas que é, afinal, o livro da esperança. A esperança. É esse o sinal indelével que ele nos deixou, depois do susto e das lágrimas.

“Há pessoas que não deviam morrer”, dizia alguém, acusando essa orfandade tão ressentida que a morte de Henrique Ruas nos causou. Esta pequena homenagem que aqui gravamos em sua memória é assim esperança para continuarmos nos caminhos em que nos acompanhou, caminhos por ele desbravados, continuar porque a sua memória tão forte ser-nos há presença. Pequena homenagem esta, muito pequena. Sempre connosco.

segunda-feira, julho 07, 2003

POR UMA IDENTIDADE NACIONAL ABERTA

Por José Adelino Maltez

Ser Portugal não é apenas conservar Portugal; não é apenas cultivarmos os nossos jardins à beira mar plantados, com as sementes e as ferramentas que os outros nos emprestarem. Isso é aposentar Portugal.

Continuar Portugal terá de ser, forçosamente, reinventar Portugal. Sem as euforias adolescentes do tudo, nem os pessimismos gerontocráticos do nada.

Parafraseando Almada Negreiros, poderemos dizer que, apesar de já estarem escritas todas as frases que hão-se salvar Portugal, continua a faltar uma coisa: salvar mesmo Portugal.

E salvar Portugal será salvá-lo, em primeiro lugar, da própria utopia da salvação, revistam os salvadores a forma de pessoas - por mais carismáticas que seja, - ou apareçam disfarçadas em doutrinas e ideologias - por mais científicas ou revolucionárias que possam parecer.

Uma comunidade política de corpo inteiro, esse algo que vai além do Estado e que procura assumir-se afectiva e culturalmente como uma pátria, um povo ou uma nação, é, sobretudo, uma comunidade de pessoas que partilham significações comuns. Tenta ser mais do que uma simples soma de “eus”, dado procurar atingir a dimensão do “nós”, quando cada um dos membros dessa comunidade consegue identificar-se com o todo, ao comungar símbolos mobilizadores.

Aplicando o princípio enunciado, podemos dizer que, há pouco mais de vinte e cinco anos, os portugueses eram portugueses porque, por exemplo, sentiam de forma idêntica Amália Rodrigues e Eusébio da Silva Ferreira, duas das significações partilhadas geradas pelo ambiente do “Portugal do Minho a Timor” que, mal ou bem, formatou a maioria dos portugueses de hoje. Esse imaginário assentava no tímido esboço de um lusotropicalismo multicultural sonhado por uma minoria de visionários, mas que não conseguiu driblar os ventos da história da guerra colonial e da posterior descolonização pretensamente exemplar.

Outro foi o discurso justificador da pós-revolução, quando, correndo para a integração europeia, nos orgulhámos da “Europa connosco” e de uma unidade nacional assente em bases de homogeneidade etno-histórica, sem os problemas das minorias que afectavam os outros europeus. Até se disse que os portugueses padeciam de uma espécie de “hiper-identidade”, muito especialmente quando nos comparávamos ao Estado Espanhol.

É natural que continuemos a padecer de uma chamada crise de identidade. Porque temos cerca de oito séculos de autonomia temos uma inevitável complexidade quanto aos mecanismos de identidade, dado que esta última sempre foi sendo reinventada ao longo da nossa história.

Talvez seja urgente recordar que, na Idade Média, cerca de um quinto dos portugueses reais seriam mouros e judeus. Saltando alguns séculos, podemos também lembrar que, na região da Grande Lisboa, ainda no século XVIII, existiriam cerca de dez por cento de negros.

Por outras palavras, o mais permanecente dos Estados europeus e a nação mais antiga deste Continente, partiram, afinal, de uma base multicultural e apenas se identificaram unitariamente por terem praticado inquisitorialmente uma espécie de genocídio doce. Mesmo nestes últimos dois séculos, já sem judeus nem mouros, continuámos na mesma senda de construtivismo nacional centralista, quando programámos e aplicámos um modelo de assimilacionismo exacerbado tanto na metrópole como no espaço imperial.

Aliás, importa também assinalar que muito do nacionalismo português do século XX, esse que se baseia no neogarrettismo e no saudosismo, permitindo o patriotismo da I República e do Estado Novo, constitui mera reinvenção de marca estrangeirada, influenciada pelo nacionalismo místico da III República Francesa, onde até nos inspirámos para o neo-imperialismo colonialista.

Feliz ou infelizmente, depois de 1974, não podendo nacionalizar tendências importadas, até porque a nossa descolonização foi atípica e não acompanhou o ritmo europeu, tanto o do modelo francês, entre o socialismo de Mendes-France e o patriotismo gaullismo, como o do modelo britânico, marcado pelo cepticismo conservador da cedência aos winds of change, eis que nos sentimos náufragos no tocante à habitual inspiração estrangeirada.

Feliz ou infelizmente, tivemos que viajar dentro de nós e, sem grandes teorizações e as consequentes vulgatas ideológicas, experimentando o nosso modo de estar no mundo, antes de o julgarmos e reconstruindo uma nova comunidade nacional sem obediência a prévios programas vanguardistas.

Feliz ou infelizmente, o Portugal a que chegámos acabou por ser escrito por aquela mão invisível, segundo a qual o mundo é mais produto da acção dos homens do que resultado das boas ou más intenções de alguns deles.

Tenho, pois, de concluir que os portugueses de hoje, se quiserem continuar portugueses, têm que ter a coragem de reinventar Portugal. Têm que reorganizar a nova comunidade de significações partilhadas que, conservando o essencial da tradição universalista dos nossos oito séculos de história, seja capaz de a enriquecer-se, de alargar-se em novos círculos concêntricos de uma mais complexa identidade. Por isso, tanto rejeito a ilusão assimilacionista dos que querem conservar o que já não há, como me revolto contra o paternalismo de certos pretensos reconstrutores que esquecem as nossas raízes e não conseguem compreender a base do nosso universalismo.

De uma forma radicalmente liberal, direi que não é a história que faz o homem, mas sim o homem que faz a história, mas sem saber que efectiva história vai fazendo. Com efeito, há sempre uma chamada mão invisível que nos condiciona. Porque a polis, a respublica, o regnum ou o Estado, resultam sempre de uma tensão entre os modelos da racionalidade técnica e da racionalidade ética, entre a racionalidade dos fins (a Zweckrationalitat de Weber) e a racionalidade dos valores (a Wertrationalitat).

Tal como o homem não é apenas inteligência e vontade, mas também imaginação e emoção, também as comunidades políticas precisam de conjugar a ética da responsabilidade com a ética da convicção, a frieza da razão do Estado com a emoção da Nação libertadora, a consciência com a memória e a autonomia com a identidade.

Para que Portugal continue a querer viver como pensa, para que os portugueses continuem a querer a independência, importa que, no espaço da memória, essa inteligência que visa a autonomia possa ser compensada por uma reinvenção da identidade que, longe de conservar o que já não há, assuma a criatividade das saudades do futuro, através uma identidade nacional aberta às novas circunstâncias.

segunda-feira, junho 30, 2003

A CASA LUSITANA

Por Teresa Martins de Carvalho

«Todas as nações são mistérios» - Fernando Pessoa


Para nós, portugueses, o ano de 1999 foi inesquecível.

Verão fora, percorreu o país uma vaga imparável de excitação, de apreensão, de alegria incontida, de raiva impotente, uma paixão avassaladora que remexeu toda a gente, dando-lhe uma só voz a gritar por Timor, pela vitória, pela tragédia, pela esperança. Há muitos anos que tal não acontecia, os portugueses todos unidos por uma causa. Nem no 25 de Abril, tenham paciência... Talvez estremeção semelhante se tenha dado com a viagem de Gago Coutinho e Sacadura Cabral ou, mais atrás, em 1890, quando do ultimato. Há mais de cem anos...

Mesmo já sem Império (ou quase, faltava Macau) ainda lutávamos pelo Império. E não me venham cá com histórias de solidariedade na luta pela democracia ou revoada de ajuda humanitária, coisas dessas. Portugal estremeceu até ao fundo do seu ser. Num assomo de responsabilidade? Sim, profunda, bem sentida. Profundo afecto, profunda saudade. Como se, de repente, se tivesse reencontrado consigo próprio, renascido da «vil tristeza», da chateza dos dias, das abstenções eleitorais, de governos cinzentos, de horizontes limitados pelo futebol e por Bruxelas.

Segundo o mais conceituado intelectual da nossa praça, Portugal criou-se como destino, desenhando para si desígnios de grandeza excessiva, de expansão no mundo desmesurado e esgotante, um Quinto Império feito de ilusão. Caídos agora na realidade, teríamos de olhar a nação, órfã do Império, de modo mais lúcido e humilde. Seremos o Senhor Oliveira da Figueira, esse português que aparece nas aventuras do Tim Tim, comerciante obsequioso que vende tudo pelas sete partidas do mundo, conta histórias tristes, chora e serve vinho da terra? Felizmente para o orgulho nacional, está sempre do lado dos bons...

Não estou de acordo com Eduardo Lourenço na sua desmistificação do sonho português e da cura que lhe propõe. Quem aceita ser português e ser lúcido? «Pelo sonho é que vamos» nos dizia Sebastião da Gama. «Cada vez que um homem sonha/ o mundo pula e avança» como cantava António Gedeão. O novo horizonte é sempre o sonho, ilhéus apertados entre o mar e as Espanhas. Neste imenso cais de despedida que é Portugal, os emigrantes pobres saem para a Europa, os mais inteligentes vão estudar para a América e por lá ficam.

Em 1961, quando começou a guerra colonial, dizia-me uma camponesa alentejana, analfabeta, bem estabelecida na sua charneca: «E agora se nos tiram Angola para onde é que nós vamos?»

Com o arriar da bandeira portuguesa em Macau, perdemos o resto do Oriente, esse Oriente onde a língua portuguesa chegou a ser língua franca. Perdemos o Oriente... Nas genealogias das famílias portuguesas do século XVI lá se menciona, insistentemente, «falecido no Oriente...», «Desaparecido no Oriente...». Não há mais Oriente para ir morrer.

O que nos resta? Redescobrir de novo a hispanidade dentro da Europa para equilíbrio das nações concordes num futuro comum? Apostar forte na lusofonia, na missão de cooperação e missão evangelizadora? Aprofundar a ligação ibero-americana numa «globalização» que iniciamos há séculos?
Nunca houve em Portugal tantos e tão bons poetas como no século que acabou, como se esta florescência final de um destino de devoradores de sonhos nos agarrasse a esta nesga de terra, irmã da saudosa Galiza que é guardiã de Compostela, o rumo espiritual dos europeus durante séculos. Finis terra. Um destino espiritual comum, Compostela-Fátima, numa Europa que perde a sua alma...

Como diz o Poeta:

«Cumpriu-se o mar.
O Império se desfez.
Senhor! Falta cumprir-se Portugal

segunda-feira, junho 23, 2003

DA DIGNIDADE DA POLÍTICA

Por Henrique Barrilaro Ruas

A crise da Política vem de Maquiavel: não apenas distinta, mas separada da Religião, deixou de ser «arte régia» para se reduzir a mera técnica. A partir daí, todas as desgraças lhe podiam acontecer – desde a insuportável arrogância, até à definitiva humilhação.

Quando Pascal, aceitando o golpe cartesiano e apoiando-se em terminologia matemática, estabelece a teoria das «ordens», faz da helénica «arte régia», já abençoada pelo Espírito de Cristo, nada mais que um «reino da concupiscência». Falsa imagem, ou caricatura, do «Reino da Caridade», a que só Deus preside, a Política não vai além de um pobre sistema de relações entre o Príncipe, que é dono dos bens desejados pelos súbditos, e os pobres súbditos, cuja condição se define pelo desejo desses bens.

O Iluminismo, que transforma as mentalidades, preparando a era das ideologias, confunde as realidades e os problemas, diviniza o humano, humaniza o divino, e destrói a ordem das faculdades humanas.

Quando o imenso progresso das ciências físicas torna mais necessário um sistema de valores, é que o antropocentrismo de raiz renascentista rejeita a tradição teocêntrica. Então, o homem individual deixa de ser olhado como pessoa, sede e fonte de valores espirituais, imagem e semelhança do Criador, para surgir, ou como sol absoluto, ou como simples átomo da natureza.

A política perdeu, assim, a sua dignidade. O individualismo filosófico vai conduzir, quer ao liberalismo inquieto, quer ao totalitarismo massificante.

A humanidade de hoje tem necessidade de tomar consciência dos valores políticos, integrados num autêntico humanismo. Como ensinou S. Tomás de Aquino, a Política deve – e pode – preparar as comunidades para a salvação. Não tem poder salvífico; mas é propedêutica da salvação.

segunda-feira, junho 16, 2003

O PERFIL DA EUROPA



Por Manuel Alves


1º PROJECTO DE TEXTO DE PREÂMBULO (28 de Maio de 2003)

A nossa Constituição chama-se "democracia" porque o poder está nas mãos, não de uma minoria, mas de todo o povo. Tucídides II, 37.

Conscientes de que a Europa é um continente portador de civilização; de que os seus habitantes, vindos em vagas sucessivas desde os primórdios da humanidade, aqui desenvolveram progressivamente os valores em que se funda o humanismo: igualdade dos seres, liberdade, respeito pela razão,
Inspirando-se nas heranças culturais, religiosas e humanistas da Europa, que, alimentadas primeiro pelas civilizações helénica e romana, marcadas pelo elã espiritual que a percorreu e que continua a estar presente no seu património, e depois pelas correntes filosóficas do Século das Luzes, enraizaram na vida da sociedade a sua percepção do papel central da pessoa humana e dos seus direitos invioláveis e inalienáveis, bem como do respeito pelo direito,
Convencidos de que a Europa doravante reunida tenciona prosseguir esta trajectória de civilização, de progresso e de prosperidade a bem de todos os seus habitantes, incluindo os mais frágeis e os mais desprotegidos, quer continuar a ser um continente aberto à cultura, ao saber e ao progresso social, e deseja aprofundar o carácter democrático e transparente da sua vida pública e actuar em prol da paz, da justiça e da solidariedade no mundo,
Persuadidos de que os povos da Europa, continuando embora orgulhosos da sua identidade e da sua história nacional, estão decididos a ultrapassar as antigas discórdias e unidos por laços cada vez mais estreitos, a forjar o seu destino comum,
Certos de que, "Unida na diversidade", a Europa lhes oferece as melhores possibilidades de, respeitando os direitos de cada um e estando cientes das suas responsabilidades para com as gerações futuras e para com a Terra, prosseguir a grande aventura que faz dela um espaço privilegiado de esperança humana,
Gratos aos membros da Convenção Europeia por terem elaborado a presente Constituição em nome dos cidadãos e dos Estados da Europa,



2º PROJECTO DE TEXTO DE PREÂMBULO (12 de Junho de 2003)

A nossa Constituição chama-se "democracia" porque o poder está nas mãos, não de uma minoria, mas do maior número de cidadãos. Tucídides II, 37

Conscientes ... (idem)
Inspirando-se nas heranças culturais, religiosas e humanistas da Europa, que, ainda e sempre presentes no seu património, enraizaram na vida da sociedade a sua percepção do papel central da pessoa humana e dos seus direitos invioláveis e inalienáveis, bem como do respeito pelo direito,
Convencidos ... (idem)
Persuadidos ... (idem)
Certos de que ... (idem)
Gratos ... (idem)

[Os quais, depois de terem trocado os seus plenos poderes reconhecidos em boa e devida forma, acordaram nas disposições seguintes:]

(Traduções apresentadas pela Convenção Europeia)

***


NO PASSADO DIA 28 DE MAIO, o Praesidium da Convenção Europeia apresentou aos seus membros o 1º projecto de texto de Preâmbulo do Tratado que instituirá a Constituição da União Europeia.

Os preâmbulos das leis são sempre importantes porque proporcionam um rigoroso sentido a todo o articulado jurídico, reduzindo as dúvidas e servindo de guia aos interpretes. Os preâmbulos das Constituições são ainda mais importantes; tratando-se de articulados de normas jurídico-políticas, obrigam os interpretes a utilizar critérios fieis à vontade do constituinte.

O conteúdo da 1ª proposta de Preâmbulo era tudo menos ambí­guo, revelando-nos que os convencionais estavam bem conscientes e certos do que queriam. O teor da 2ª proposta, apresentada em 12 de Junho, reforça-nos essa ideia.

No início, lia-se na epí­grafe inspiradora: «A nossa Constituição chama-se "democracia" porque o poder está nas mãos, não de uma minoria, mas de todo o povo.»

Tratando-se de uma definição de «democracia», expressa por intermédio de uma oposição de relativos (Aristóteles, Organon, I, 10 ) - "o poder está nas mãos, não de uma minoria, mas de todo o povo" -, é o próprio paralogismo dessa primeira versão a revelar-nos, sem sofisma, a intenção presidentista dos convencionais.

Sendo certo que o "povo" para Tucí­dides não incluía a maioria dos habitantes da Cidade - excluíndo os metecos, os escravos e as mulheres - ao substituir-se "todo o povo" por "um maior número de cidadãos" ficam a História e a Lógica respeitadas, e nos leitores a impressão de que os convencionais evitaram a tempo a mofa do público: o contrário ou oposto de uma minoria, tanto na Grécia antiga como na actual, nunca podia ser uma totalidade. Nada indica, no entanto, que os presidentistas venham a abandonar a defesa da ideia segundo a qual o "presidente da Europa será o presidente de todos os europeus".

Desde Maastricht, a descristianização da Europa e a destruição das Pátrias têm sido dois pontos essenciais do programa "civilizacional" da União Europeia. Todavia, entre a 1ª e a 2ª versão do Preâmbulo, dir-se-ia que os convencionais abandonaram o "elã espiritual" que vem das civilizações helénica e romana, e que foi continuado "depois pelas correntes filosóficas do Século das Luzes". Quando ainda ecoavam na imprensa as incisivas e duras palavras de Monsenhor Josef Homeyer - "Ricordare la responsabilitá davanti a Dio, l'umanitá e la creazione, significherebbe mostrare in maniera inequivocabile che il potere pubblico non é assoluto." (L'Osservatore Romano, 7 Giugno 2003) - que outra opção lhes restava, a não ser apagar, esconder, insular um tal "elã espiritual"?

Não, não creio que riscar um tal "elã" signifique fraqueza ou desejo de compromisso. Olhando ao conteúdo do vastíssimo articulado jurídico-polí­tico proposto, ter-se-á tratado antes de uma retirada para as sombras, na senda exemplar de Jean Monnet: "Não tenho nenhum gosto pela sombra, mas se fôr pagando o preço da obscuridade que se pode fazer melhor as coisas, então escolho as sombras".

O que singulariza o conceito de Europa do Praesidium da Convenção, ficou bem afirmado na 1ª proposta e não foi desmentido na 2ª. A ausência de uma referência ao período medieval - ao período da res publica christiana - é por demais evidente e esclarecedora.

Existiu um Iluminismo alemão, italiano, espanhol, mesmo português, mas todos tardios e subsidiários do francês e da sua vocação redentora: retirar os povos das trevas religiosas e políticas medievais, levando-as para a terra prometida da razão e da filantropia. Os governantes, é claro, tinham por missão levar a felicidade aos povos libertos da ascética cristã, que inculcava a austeridade de costumes e a submissão aos valores somáticos e espirituais.

No centro do Iluminismo sempre esteve uma intenção polémica contra o cristianismo. As luzes da razão vinham substituir a fé. Doravante, a sociedade, o Estado, a arte, a moral, a própria religião, deviam ser racionais e não mais que racionais. Tudo se podia compreender e houve iluministas, e seus descendentes, que acreditaram tudo poder compreender, como Hegel no seu idealismo absoluto, Marx no seu materialismo dialectico, Lenine na sua teoria da revolução, Mussolini na sua doutrina do Estado.

Quero crer que os convencionais não se revêm em alguma descendência do Iluminismo. Mas talvez, por hipótese, se revejam naqueles que hoje atribuem à Europa um perfil cultural que terá sido desenhado desde Cí­cero a Erasmo, de Lutero a Winckelman e a Göethe, de Hölderlin a Nietzsche e a Heidegger. Nessa visão da cultura europeia, o Cristianismo que se expressou em autores como S. Agostinho (354- 430), S. Isidoro de Sevilha (?560-636), S. Anselmo (1033-1109), S. Boaventura (1221-1274), S. Tomás de Aquino (1225/27-1274), Francisco Suárez (1548-1617) , é no fundo entendido como uma violência contra as consciências porque, em nome de uma revelação, se arrogaria o privilégio e o direito de dizer o verdadeiro e o universal.

Qualquer que seja o galho da árvore frondosa do Iluminismo a partir do qual olhem para a Europa, para a maioria dos convencionais Deus continua a ser a palavra interdita.

A herança europeia inclui, para além da filosofia grega, do direito romano e do próprio Iluminismo, as estruturas sociais e as tradições germânicas, a revelação cristã e a sua doutrina humanista. Incluir no preâmbulo da Constituição europeia uma referência ao humanismo cristão e à responsabilidade do homem perante Deus, seria aceitar o que há de infindável e de incomensurável na alma dos povos e nações desta península do continente asiático a que chamamos Europa; seria admitir que o humanismo cristão é parte essencial da herança e actualidade da Europa; seria reconhecer, afinal, que existe uma personalidade europeia e ocidental aspirando à unidade na diversidade. Ora é isso que os convencionais não admitem. Os convencionais não querem admitir que a Constituição da União Europeia possa visar a concretização de uma Europa das Pátrias ao serviço de um projecto de paz e de universalidade.

Os convencionais, filhos do Iluminismo, nominalistas em filosofia, não podem naturalmente reconhecer nem entender o que seja uma tradição nacional, viva e complexa. Para eles nada há de essencial nas sociedades, como nada há de essencial nos homens. Se ainda admitem as nações, admitem-nas apenas como peças de museu, rejeitando que na Europa do futuro possa haver europeus que queiram continuar a colocar a sua terra antes da sua proví­ncia, a sua proví­ncia antes da sua pátria, a sua pátria antes da Europa, e, acima de todas as pátrias terrenas, a Cidade de Deus.

Segundo o Praesidium da Convenção Europeia, as Nações da Europa nada mais são do que Estados, e os Estados nada mais são do que colégios de cidadãos eleitores agregados ou a agregar. No Direito Europeu que querem definir, só a lei positiva terá lugar. Cegos para o que de substancial existe nos homens e nos povos, a sua vontade é inequívoca: pretendem criar na Europa um poder público absoluto; um poder público absolutamente alicerçado no produto do acordo momentâneo de vontades individuais.

terça-feira, junho 10, 2003

QUANDO FLORESCEM OS JACARANDÁS

Por Fernando Quintais

Teve o Centro Nacional de Cultura a excelente ideia de lançar agora uma campanha tendo como tema Os Jacarandás de Lisboa. Isso me trouxe à lembrança um texto que escrevi, faz agora anos:

Faz agora anos. Na Avenida Dom Carlos floresciam os jacarandás. Tal como hoje, também naquele ano estava quente o mês de Maio em Lisboa, e apesar da crise económica que se instalara, ia uma invulgar azáfama na cidade.

É que, Sábado, dia 13 - 78º aniversário das maravilhosas aparições de Fátima - ia casar o Senhor Dom Duarte, Príncipe da Beira, com Dona Isabel de Herédia.

O anúncio do auspicioso casamento alegrou o coração de todos os portugueses que, vivendo em república, entendem que a Dinastia é indispensável ao seu equilíbrio espiritual. Sabem que Dom Duarte é a reserva moral deste Povo, e em horas de dúvida é nele que se revêem para aferir os seus próprios padrões.

Como português não pude deixar de me alegrar com o anúncio das bodas. Ia ser um acontecimento memorável que permaneceria na recordação de todos nós, quer para os que iam ter a felicidade de estar presentes na cerimónia, quer para todos aqueles que em todo o mundo, graças à Televisão Internacional, iam acompanhá-lo em tempo real, pois seria especialmente transmitido para toda a diáspora.

Para além do quanto seria precioso para o nosso Príncipe e sua Noiva, o casamento iria dar motivo de renovada esperança a tantos milhões de portugueses, dos quais alguns menos pacientes já desesperavam de assistir às Núpcias Reais anunciadoras do acontecimento mais desejado nestes últimos anos: a existência de um sucessor, legítimo herdeiro do trono de Portugal.

A imprensa, a rádio e a televisão - os "media" como hoje comunmente se diz, deram uma cobertura completa ao anúncio do noivado, e nunca se viram nas bancas das revistas e jornais, tão maciçamente repetidas, fotografias oficiais de personalidades ou factos, como aconteceu naqueles dias com o Duque de Bragança e sua linda noiva, D. Isabel de Herédia.

Houve quem pretendesse oferecer avultadas quantias pelo privilégio de um convite para a cerimónia religiosa no Mosteiro dos Jerónimos, e até apareceram convites falsificados, tendo-se, todavia, agido benevolamente sobre os portadores destes.

Fenómeno de espanto nesta república, os portugueses disputavam o direito de presença na cerimónia, ainda que soubessem que para a maioria deles essa “presença” seria apenas simbólica.

O comércio aproveitou bem a altura para fazer o seu negócio, especialmente as casas de modas e joalheiros.

Uma antiga fábrica de porcelanas apresentou um belo serviço de jantar para 48 pessoas, que esteve aberto à subscrição pública para presente de casamento dos Reais Noivos, e que foi rapidamente subscrito. Foi esta uma interessante iniciativa que permitiu a muitos simpatizantes anónimos contribuir com a oferta de uma peça, que iria integrar uma baixela de fina porcelana onde foi dado realce às armas reais de Portugal.

Além de se tratar da notícia de um acontecimento social e nacional de enorme impacto, também na Europa os media lhe deram grande cobertura.

Haja em vista a capa e as oito páginas de fotografias e texto publicados logo em 23 de Maio pela revista belga Point de Vue, de grande circulação nos meios monárquicos europeus.

A toda a largura das duas primeiras páginas daquela revista, foi publicada uma bela fotografia dos noivos com a legenda ao fundo:

Dom Duarte et Dona Isabel

MARIAGE ROYAL AU PORTUGAL


No canto superior esquerdo as armas dos noivos e por baixo o comentário:

"Deux mois après l´Espagne, le Portugal s´est offert son "mariage du siècle". Ce 13 mai, Dom Duarte a uni son destin à Dona Isabel de Herédia. Un événement royal qui a ravis les monarchistes du pays et le gotha européen."

E no canto superior direito o apontamento:

"Il avais promis d´être marié pour ses cinquante ans. Deux jours avant la date fatidique, le duc de Bragance, chef de la maison royale de Portugal a épousé Isabel de Herédia, vingt-huit ans."

Seguem-se seis páginas de magníficas fotografias, em que se destaca a presença do Presidente da República e de sua mulher, o momento em que Dom Duarte beija o anel do Patriarca D. António Ribeiro, uma bela imagem dos convidados, entre eles o Príncipe Pedro d´Orleans-Bragança, a Condessa de Paris, a Princesa Thérése d´Orleans_Bragança, as rainhas Giovanna e Margarita da Bulgária, o Arquiduque Otão, da Austria, o Grão-duque herdeiro do Luxemburgo, o Príncipe Philippe da Bélgica, a Infanta Margarida de Espanha com seu marido, o Dr. Carlos Zurita.

A página seguinte é totalmente ocupada por uma bela fotografia do interior dos Jerónimos, vendo-se os noivos de joelhos em frente do altar e do celebrante, o Cardeal D. António, e do lado de trás do altar os representantes da Igreja, entre eles o Núncio Apostólico, o Arcebispo de Braga, os bispos do Porto e Bragança, o Revº Cónego Marques da Silva, da Sé Patriarcal, Padre Mário Cunha, da paróquia do Santo Condestável, Frei Elias de Gusmão, da Fundação de S. Martinho do Lima e o Pe. João Seabra, Capelão da Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa.

Esta página contém ainda uma legenda atribuída à noiva:

«É um amigo da minha família desde sempre. Já nem me recordo da primeira vez que vi Duarte. Fui seduzida pela sua bondade, a sua tolerância e o seu sentido de humor».

Outra página espectacular é a seguinte, que apresenta os noivos a cortar o bolo, uma peça excelente de doçaria regional do Algarve, com cerca de 100 quilos, oferecido pela Real Associação do Algarve.

As três páginas seguintes são dedicadas ao texto, e a mais fotografias, sendo a última a dos noivos recebendo a homenagem de um grupo de danças de Timor, aquela pequena ilha do oceano Índico tão cara ao coração de D. Duarte.

Ao longo da última quinzena de Maio multiplicaram-se as edições de livros e revistas, com documentos biográficos e reportagens do casamento.

Pela sua qualidade merecem destaque seis daquelas publicações: o número comemorativo de aniversário da revista Eles e Elas, dirigida por Maria da Luz de Bragança, com uma ampla reportagem fotográfica de cerca de 200 clichés; o magnífico livro Diálogos com o Duque de Bragança, da autoria de Clara Picão Fernandes e as não menos notáveis edições das biografias do Senhor Dom Duarte, da autoria, uma delas, do jornalista Jorge de Morais e outra, DUARTE E ISABEL - DUQUES DE BRAGANÇA, Biografia Autorizada, da autoria de Nuno Canas Mendes.

Ainda em Maio, publicou a Textual uma excelente colectânea de entrevistas efectuadas ao Senhor Dom Duarte, pela jornalista Manuela Gonzaga: O PASSADO DE PORTUGAL NO SEU FUTURO, através da qual se pode apreciar quão claro e transparente é o pensamento do Rei sobre o futuro de Portugal.

Finalmente, em princípio de Setembro, o Professor Dr. Henrique Barrilaro Ruas, coordena e dá à estampa um magnífico álbum com o título UM CASAMENTO NA HISTÓRIA DE PORTUGAL.

Nesta magnífica obra de fino gosto e grande rigor histórico, realça-se a escolha das genealogias mais representativas já definitivamente estabelecidas, tanto dos reis de Portugal como do Duque de Bragança.

Apresenta um belo desenho em desdobrável de uma árvore genealógica crescendo pelo duplo critério biológico e sucessório, da raiz dos condes D. Henrique e D. Tereza até ao Senhor Dom Duarte, no topo da geração.

Entre as mulheres, na genealogia varonil de D. Duarte, pela linha mais longa, destaco D. Joana de Castro (Portugal) casada em 1429 com D. Fernando de Bragança, o segundo no nome.

A parte final do álbum é enriquecida com as mais belas fotografias da reportagem que Homem Cardoso fez deste acontecimento.

* * *

Alguns anos passaram. Deu-nos Deus, através da descendência de S.A.R os Duques de Bragança, a legítima esperança de que o Reino de Portugal se prolongará através da sua geração: Dom Afonso de Santa Maria, D. Maria Francisca e D. Diniz.

No princípio do Terceiro Milénio esperam os Portugueses poder ver no trono o legítimo Herdeiro dos Reis de Portugal.

E de uma família que deu Reis a Portugal durante 600 anos não será demais esperar que assim continue, pelo menos, por outros mil.

Que o Anjo de Portugal favoreça os esposos, e com eles todos os portugueses, nas suas legítimas esperanças de que este casamento seja o alvorecer de uma nova era de redenção para Portugal.