segunda-feira, julho 28, 2003

PERDOAR

Por Teresa Maria Martins de Carvalho

Uma destacada figura do nosso palco político, para justificar as suas posições mais extremas, começou por anunciar “não sou cristão, não esqueço, nem perdoo”. Perguntamo-nos, com espanto, o que fará então? Exigirá justiça? Ou vingança?

Sem o saber (ou talvez não...) indicou (por bravata?) uma das características fundamentais do cristão: perdoar, perdoar sempre, não só sete vezes mas setenta vezes sete, nas palavras de Jesus.

Quem não perdoar está paredes meias com a violência e com a vingança. Substituir o perdão pela justiça, isto é pelo “justo” castigo, é caminho apertado, encostado perigosamente à violência. Não será a prisão uma violência? Violência legal... A pena de morte, essa, então...

O direito é uma das invenções mais extraordinárias do espírito romano, esses tão mal tratados romanos, no que diz respeito às outras suas invenções, aventuras, feitos e descobertas. Imaginar o direito ao direito, na organização e apaziguamento da sociedade dos homens, sempre dispostos a arreganhar os dentes, a concretizar a sua fúria, a matar, até, é um dos feitos históricos mais marcantes da civilização.

Para acompanhar o pensamento lúcido do antropólogo francês René Girard em relação à violência, sempre presente e sempre prestes a eclodir na comunidade humana, teremos de decidir se a violência não estará também presente na justiça? A canalização da violência sobre o bode expiatório, presente nos processos sumários de linchamento, na justiça “por nossas próprias mãos”, tem sido veementemente apelidada de criminosa e automaticamente banida do viver social. Mas está presente, afinal, como diria Girard, com todo o seu poder contagiante, contido pela estrutura frágil das leis.

Ao chamado Estado de direito pede-se-lhe tudo. E até, às vezes, perdoar, como acontece nas diminuições de pessoas, nas amnistias concedidas em comemorações importantes e até na prescrição de longos litígios nos tribunais.

Diante deste aparelho judicial intimidante, parece, de facto, não existir lugar para o perdão cristão. Não é preciso. Tudo se resolve a contento de todos. Já não são necessárias “moralidades”, tão votadas ao desprezo pelos ditadores racionalistas. Será assim?

Aquilo que se passa actualmente em Portugal, com juízes e advogados em plano maior, sujeitos a julgamentos populares, por causa da sua administração da justiça, que aparece ora litigante ora confiante, em maquinações de poder, seja ele político, social ou mesmo o próprio poder judicial, tem gerado um desconforto profundo que faria empalidecer Montesquieu que tão sabiamente preconizou a separação dos poderes para se alcançar paz social....

Será a sociedade racional, à maneira da Luzes, a sociedade última e perfeita? Apesar dos embaraços no caminho, as luzes iluminam o futuro, um futuro laico que ignora a sua herança cristã, como hoje faz a Convenção europeia, ditando uma Constituição muito racionalmente construída, acima das emoções e das recordações das gentes. A filiação cristã, reconhecida e ouvida, daria outra consistência ao planeado, fazendo aparecer, em transparência, o antigo perdão do Evangelho com o seu esquecimento adstrito. Mas não é tida em consideração.

Tanto se fala na “perda de valores” mas ninguém os quantifica e descrimina, com receio de cair no “moralismo” evangélico, fora de moda. Pois lá estão, o perdão e o esquecimento.

Os antigos, com o estabelecimento da lei de Talião, “olho por olho, dente por dente”, tentaram um abrandamento da violência social. A garantia de uma vingança ou de um castigo “justos”, isto é, que não ultrapassassem o peso da ofensa que é justo vingar, foi um grande avanço no regulamento da vivência dos homens uns com os outros. O prazer maléfico que existe em toda a vingança que for pior do que crime, cria uma espiral de violência, sucedendo-se a si própria, sem fim. Esta espiral, encontramo-la nos “acertos de contas” das famílias, mafiosas ou não.

Mas na aplicação das leis, multas ou penas de prisão, não existirá violência? O que é estar preso? Aqui se evoca, de novo, o perdão e o esquecimento recusados a priori pelo nosso exigente político.

Perdoar é também esquecer, como ele reconheceu. Quem esquece? O preso libertado que já pagou “a sua dívida à sociedade” como dizem os bons espíritos, tem dificuldades em nela se reintegrar, o antigo Pide não recebeu a condecoração pelas suas actuais e muito virtuosas acções, o antigo nazi não pode ser presidente da Áustria, Mitterand afinal estava presente em Vichy e logo acabou o mito do tonton Mitterand. Não há esquecimento porque não houve perdão. O ódio, o ressentimento, a desconfiança, a má vontade, o cheiro pegajoso da vingança não desapareceu mesmo com justiça feita. Não há paz.

Um lavrador alentejano, familiar muito próximo, ao receber de volta, pelas mãos dos trabalhadores, a herdade que eles tinham ocupado durante cinco anos, a favor da Reforma Agrária socialista, ao perceber que teria de ouvir confidências maldosas, sobre o que este fez e o que aquele disse, convocou o pessoal e, apesar dos maus tratos que a terra tinha levado, advertiu-o de que, dali em diante não ouviria nada de ninguém, mesmo havendo razões concretas para denúncias. Era preciso recomeçar como se nada tivesse acontecido. E houve paz.

Quando consideramos essa Terra a que chamamos Santa e assistimos à disputa de direitos, entre os dois ofendidos, Sharon e Arafat, cada povo com as suas razões, as suas queixas, a sua ferocidade, as suas naturais vinganças, sentimos que só o perdão e o esquecimento fariam a paz.

Assim, sem esquecer nada, os dois povos, o judeu e o palestino, continuarão a agredir-se mutuamente, carregados de ódio, de frustração, de ressentimento que são como cordas que os amarram e impedem de avançar com as mãos abertas e o espírito lavado.

O perdão cristão e o esquecimento que lhe está associado não são um “truque bonzinho”, feito de moleza e cobardia, mas são urgente e corajosa chamada a uma ultrapassagem espiritual, com efeitos benéficos na sociedade humana, no encontro do homem com o homem, de cara a cara, quando se descobrem e mutuamente se aceitam, em aprendizagem e acolhimento. Como diria Levinas, o indivíduo tem a responsabilidade do seu perseguidor. Por isso, no Evangelho, se pede a seguir ao perdão “amai os vossos inimigos”.

Perdoar é ser livre.


Sem comentários: