POR UMA IDENTIDADE NACIONAL ABERTA
Por José Adelino Maltez
Ser Portugal não é apenas conservar Portugal; não é apenas cultivarmos os nossos jardins à beira mar plantados, com as sementes e as ferramentas que os outros nos emprestarem. Isso é aposentar Portugal.
Continuar Portugal terá de ser, forçosamente, reinventar Portugal. Sem as euforias adolescentes do tudo, nem os pessimismos gerontocráticos do nada.
Parafraseando Almada Negreiros, poderemos dizer que, apesar de já estarem escritas todas as frases que hão-se salvar Portugal, continua a faltar uma coisa: salvar mesmo Portugal.
E salvar Portugal será salvá-lo, em primeiro lugar, da própria utopia da salvação, revistam os salvadores a forma de pessoas - por mais carismáticas que seja, - ou apareçam disfarçadas em doutrinas e ideologias - por mais científicas ou revolucionárias que possam parecer.
Uma comunidade política de corpo inteiro, esse algo que vai além do Estado e que procura assumir-se afectiva e culturalmente como uma pátria, um povo ou uma nação, é, sobretudo, uma comunidade de pessoas que partilham significações comuns. Tenta ser mais do que uma simples soma de “eus”, dado procurar atingir a dimensão do “nós”, quando cada um dos membros dessa comunidade consegue identificar-se com o todo, ao comungar símbolos mobilizadores.
Aplicando o princípio enunciado, podemos dizer que, há pouco mais de vinte e cinco anos, os portugueses eram portugueses porque, por exemplo, sentiam de forma idêntica Amália Rodrigues e Eusébio da Silva Ferreira, duas das significações partilhadas geradas pelo ambiente do “Portugal do Minho a Timor” que, mal ou bem, formatou a maioria dos portugueses de hoje. Esse imaginário assentava no tímido esboço de um lusotropicalismo multicultural sonhado por uma minoria de visionários, mas que não conseguiu driblar os ventos da história da guerra colonial e da posterior descolonização pretensamente exemplar.
Outro foi o discurso justificador da pós-revolução, quando, correndo para a integração europeia, nos orgulhámos da “Europa connosco” e de uma unidade nacional assente em bases de homogeneidade etno-histórica, sem os problemas das minorias que afectavam os outros europeus. Até se disse que os portugueses padeciam de uma espécie de “hiper-identidade”, muito especialmente quando nos comparávamos ao Estado Espanhol.
É natural que continuemos a padecer de uma chamada crise de identidade. Porque temos cerca de oito séculos de autonomia temos uma inevitável complexidade quanto aos mecanismos de identidade, dado que esta última sempre foi sendo reinventada ao longo da nossa história.
Talvez seja urgente recordar que, na Idade Média, cerca de um quinto dos portugueses reais seriam mouros e judeus. Saltando alguns séculos, podemos também lembrar que, na região da Grande Lisboa, ainda no século XVIII, existiriam cerca de dez por cento de negros.
Por outras palavras, o mais permanecente dos Estados europeus e a nação mais antiga deste Continente, partiram, afinal, de uma base multicultural e apenas se identificaram unitariamente por terem praticado inquisitorialmente uma espécie de genocídio doce. Mesmo nestes últimos dois séculos, já sem judeus nem mouros, continuámos na mesma senda de construtivismo nacional centralista, quando programámos e aplicámos um modelo de assimilacionismo exacerbado tanto na metrópole como no espaço imperial.
Aliás, importa também assinalar que muito do nacionalismo português do século XX, esse que se baseia no neogarrettismo e no saudosismo, permitindo o patriotismo da I República e do Estado Novo, constitui mera reinvenção de marca estrangeirada, influenciada pelo nacionalismo místico da III República Francesa, onde até nos inspirámos para o neo-imperialismo colonialista.
Feliz ou infelizmente, depois de 1974, não podendo nacionalizar tendências importadas, até porque a nossa descolonização foi atípica e não acompanhou o ritmo europeu, tanto o do modelo francês, entre o socialismo de Mendes-France e o patriotismo gaullismo, como o do modelo britânico, marcado pelo cepticismo conservador da cedência aos winds of change, eis que nos sentimos náufragos no tocante à habitual inspiração estrangeirada.
Feliz ou infelizmente, tivemos que viajar dentro de nós e, sem grandes teorizações e as consequentes vulgatas ideológicas, experimentando o nosso modo de estar no mundo, antes de o julgarmos e reconstruindo uma nova comunidade nacional sem obediência a prévios programas vanguardistas.
Feliz ou infelizmente, o Portugal a que chegámos acabou por ser escrito por aquela mão invisível, segundo a qual o mundo é mais produto da acção dos homens do que resultado das boas ou más intenções de alguns deles.
Tenho, pois, de concluir que os portugueses de hoje, se quiserem continuar portugueses, têm que ter a coragem de reinventar Portugal. Têm que reorganizar a nova comunidade de significações partilhadas que, conservando o essencial da tradição universalista dos nossos oito séculos de história, seja capaz de a enriquecer-se, de alargar-se em novos círculos concêntricos de uma mais complexa identidade. Por isso, tanto rejeito a ilusão assimilacionista dos que querem conservar o que já não há, como me revolto contra o paternalismo de certos pretensos reconstrutores que esquecem as nossas raízes e não conseguem compreender a base do nosso universalismo.
De uma forma radicalmente liberal, direi que não é a história que faz o homem, mas sim o homem que faz a história, mas sem saber que efectiva história vai fazendo. Com efeito, há sempre uma chamada mão invisível que nos condiciona. Porque a polis, a respublica, o regnum ou o Estado, resultam sempre de uma tensão entre os modelos da racionalidade técnica e da racionalidade ética, entre a racionalidade dos fins (a Zweckrationalitat de Weber) e a racionalidade dos valores (a Wertrationalitat).
Tal como o homem não é apenas inteligência e vontade, mas também imaginação e emoção, também as comunidades políticas precisam de conjugar a ética da responsabilidade com a ética da convicção, a frieza da razão do Estado com a emoção da Nação libertadora, a consciência com a memória e a autonomia com a identidade.
Para que Portugal continue a querer viver como pensa, para que os portugueses continuem a querer a independência, importa que, no espaço da memória, essa inteligência que visa a autonomia possa ser compensada por uma reinvenção da identidade que, longe de conservar o que já não há, assuma a criatividade das saudades do futuro, através uma identidade nacional aberta às novas circunstâncias.
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