segunda-feira, outubro 20, 2003

JOÃO PAULO II

Por Teresa Martins de Carvalho

É já considerado o Papa mais importante do século XX, não só por causa da extensão do seu pontificado mas sobretudo pelo vigor de muitos dos seus gestos e ditos, clamorosos, inéditos ou que vieram completar, estrondosamente, os gestos, proféticos, iniciados por João XXIII e Paulo VI, seus antecessores.

A insistência no perdão, na paz, na união, no derrubar de muros, na reparação de rompimentos e de ódios, na salvaguarda da família e da vida, cria-lhe temas extremos que terá de desenvolver segundo a fé e que explicam a velocidade de um pontificado que também se pode exprimir em números: tantas viagens, tantas canonizações, tantas beatificações, tantos discursos, tantas encíclicas, tantas intervenções...

Um Papa polaco? Quando o soube, Brejnev, o ditador de serviço na União Soviética, exclamou: - Agora há-de querer ir à Polónia... Vai tudo acabar, então...

A queda do muro de Berlim e a reunificação da Europa começa aí, com um Papa polaco. E não sabia da missa a metade... A compleição de um atleta, a força física patente de quem pratica desporto ao ar livre, a sensibilidade do artista, a ternura de quem foi privado da família desde cedo, o gosto pela festa, o bom humor, são qualidades que outras pessoas porventura compartilharão com ele. Parece-nos que aquilo que faz a força do Santo Padre se considera melhor noutra dimensão: a coerência. Coerência firme, resoluta, corajosa, entre aquilo em que acredita, a sua fé e o que pensa, diz, faz... É raríssimo encontrar um espécimen humano com tal grau de unidade da mente, coração, inteligência, vontade. Essa força espiritual transforma-se nele em poder quase mágico, contagiante, o do orante contemplativo que recorda a fascinação que exerce nos crentes o staretz russo, o santo eremita, característica única da intensa espiritualidade eslava. Este carisma excepcional que atrai multidões, conquista os jovens, ele, o papa “sempre juvenil” mesmo agora, já velho e tão doente, arrastando-se numa Via Sacra interminável, imagem do seu modelo Jesus Cristo, dando-se até à Cruz.

Num mundo onde os corpos jovens dominam a sociedade, sociedade em que os velhos são “descartáveis”, esta visão do Papa moribundo incomoda. Ela anuncia quem está saudável mentalmente, mesmo sem quase poder mexer-se nem por isso deverá desligar-se da sua vocação, religiosa ou humana. Persistência e coragem mais uma vez por mostrar-se assim diminuído, aos olhos de todos, ele, o antigo atleta. «É quando sou fraco que sou forte» diz-nos S. Paulo (2 Cor 12, 10). Belo exemplo para todos os fracos, os velhos e os doentes que sofrem a tentação de desistir de viver, de cumprir até ao fim a sua chamada a este mundo.

São inumeráveis os pontos em que assentou a sua força e a sua verdade mas talvez o que mais marcará a sua passagem na Cadeira de Pedro é o abrir os braços aos outros cristãos separados, na busca da unidade, aos crentes de outras religiões, começando pelos judeus, “nossos irmãos mais velhos”, o chamado espirito de Assis, onde por duas vezes, na terra de S. Francisco, foi o anfitrião humilde dos crentes de todos os quadrantes, na oração comum pela paz.

Este Papa universal que transita de século e de milénio, como quem abre portas, é uma figura luminosa, ponto de referência e de acolhimento.

«Vós sois o sal da terra e a luz do mundo» disse o Senhor aos seus seguidores (Mt 5, 13-16). Na sociedade ocidental em perda de valores, que já não é cristã, nem sequer de inspiração cristã, sociedade do simulacro, da vitória da aparência sobre o ser, percebe-se que tal homem, como João Paulo II, marque o seu tempo como figura insigne, perpassada de mistério e de intensa humanidade.

A beatificação de Madre Teresa de Calcutá, que tão ardentemente ansiava realizar, obtendo que o processo galgasse trâmites e tempo, ver-se-á sempre como o encontro desejado e culminante entre duas figuras maiores do século XX, ambos transportando consigo, nas suas vidas, o radicalismo evangélico. O Papa tão criticado por ser político, a religiosa tão criticada por não ter sido política.

Dons de Deus à humanidade.

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