CONFISSÕES DE UM TRADICIONALISTA LIBERAL
Por José Adelino Maltez
Porque Portugal também é pátria, a terra dos egrégios avós, sagrada pelo suor e pelo sangue das sucessivas gerações que a desbravaram, defenderam, regaram e semearam, temos de reconhecer que, neste chão moral da história construímos a nossa casa, a nossa eira, o muro do nosso quintal. Que, casa a casa, fizemos a aldeia e, caminho a caminho, nos fomos unindo em freguesia, a tal comuna sem carta, a partir da qual o conventus publicus vicinorum nos deu município, como associação de homens livres, de homens bons.
Foi a partir destas fundações que, concelho a concelho, nos construímos politicamente, como povo de cortes gerais. Essa antiga aliança entre um rei natural e a comunidade da sua terra, desse povo comum que se autodeterminou e quis ser independente, ao instituir a governança da comunidade, a república, originariamente entendida como um concelho em ponto grande, conforme a teorização do nosso Infante D. Pedro (1392-1449) no Livro da Virtuosa Benfeitoria, de 1418.
Por fim, através da união de muitos povos e da federação de muitas pequenas pátrias, elevámo-nos à condição de pátria maior, através de uma comunhão em torno das coisas que se amam, assumindo a dimensão cultural e afectiva de mátria, de maternal nação, assente na nossa terra, na terra da nossa natureza, a tal que veneramos, mesmo quando dela nos distanciamos, pelo exílio, pela emigração, pela expansão.
E, do sentimento pátrio, fizemos saudade, porque em todo o mundo passou a poder haver terra portuguesa, quando, conservando-a na lembrança, tratámos de procurar o sonho do paraíso e a ideia criadora de saudade. Somos, assim, saudosistas, não com o sentido passadista, mas com pessoanas saudades de futuro.
Aliás, tanto o patriotismo como o mais elevado nacionalismo, quando fazemos da nação a escola da super-nação futura, o caminho para uma mais mobilizadora república universal, constituem o preciso espaço que nos permite resistir ao uniformismo, em nome do direito à diferença.
Porque ser patriota não exclui as outras pertenças políticas supranacionais e infra-estatais, muito menos a pertença à cidadania do género humano. Aliás, só podemos ser universais, através de uma diferença enraizada na história vivida, pelo que a nação, para quem a pode ter, constitui uma das poucas vias que resta para a construção de novas repúblicas maiores, supra-nacionais e supra-estatais.
Por exemplo, nenhum apátrida consegue ser europeu, enquanto a Europa puder continuar a ser uma democracia de muitas democracias, tendo em vista e emergência de uma nação de nações. Do mesmo modo, nenhum desnacionalizado, ou destribalizado, pode assumir, orgulhosamente, o projecto de construção de uma cosmopolis. A universalidade apenas se consegue pela individualidade, pela identidade, pela autonomia, pela diferença.
Sou assim tradicionalista. Porque ser pela tradição é saber recuar, em pensamento e em entusiasmo, para, aprofundando o presente, dar raízes ao futuro e assim melhor poder avançar, negando a falsa dialéctica do antigo contra o moderno. Porque só é novo aquilo que se esqueceu, negando a visão tacanha do progressismo. Porque só é moda aquilo que passa de moda, repudiando a ditadura do efémero. Porque o moderno já foi antigo de que o antigo há-de ser moderno, segundo as palavras do Padre António Vieira. Porque só é novo aquilo que vem de trás, reelaborado para um novo fim. Só há o verdadeiro fora do tempo que nos prende, mas desde que se tenha tempo e lugar, os olhos nas estrelas do transcendente e os pés, no chão pisado do dia a dia.
Quase todos esqueceram que a autêntica tradição sempre admitiu o verdadeiro progresso, porque este nunca pode ser visto decepadamente, como um mito desprendido das origens, para utilizarmos uma análise tão cara ao magistério de Henrique Barrilaro Ruas. Porque, de outro modo, a tradição pode transformar-se num sucedâneo do mito pagão do eterno retorno, entendido como um simples círculo fechado, totalmente contrário ao conceito de tempo linear, assumido pelo libertacionismo judaico-cristão. Porque, contra os sucessivos milenarismos do fim da história, há que proclamar, como Santo Agostinho, que não é o mundo que acaba, é um novo mundo que começa. Não pode haver tradição sem inovação, sem aquele movimento que passa por uma realidade viva, bem concreta, e não por um simples espaço vazio.
Assumir a tradição não tem que ser o deus, pátria, família de quem apenas sabia conjugar o verbo salazar. Os tradicionalistas que a democracia gerou depois de 1974 fizeram-se contra o militarismo revolucionário, contra o intervencionismo estatal das nacionalizações, contra a intolerância racista da lei da nacionalidade, contra o desprezo otelista dos direitos do homem. Fizeram-se da liberdade, para a liberdade e pela liberdade, em nome da democracia pluralista, contra as conquistas da unicidade vanguardista dos que instrumentalizaram a ideia de revolução. Há assim uma genealogia liberdadeira do pós-abrilismo, aquela que serviu sem procurar servir-se, ao contrário dos arrivismos fidalgueiros de alguns neo-direitistas das adjûncias mercenárias das alcatifas ministeriais e dos muitos corredores e passos perdidos, onde vão acotovelando-se os interesseiros e pressionantes lobbies do spoil system.
Há um tradicionalismo que readquiriu o sentido clássico do diálogo, onde, etimologicamente, há uma conversa, com alternância no discurso dos interlocutores, passando-se a um tema comum que se percorre, pelo que só pode haver diálogo, quando entre os dialogantes se reconhecem lugares comuns, pontos de passagem que permitem a torça de ideias e de experiências de vida.
A tradição consensualista nunca foi uma tese, contra a qual se assumiu a antítese liberalista, para, depois, desaguarmos na oceânica maravilha da síntese pseudo-futurista, com muita palha de modernidade, pós-modernidade ou vanguarda, mesmo daqueles que, muito exogenamente se dizem conservadores, ou dos que continuam a traduzir nacionalismos em calão de État-Nation ou de national interest.
O tempo pós-revolucionário que vamos vivendo continua a ser de complexidade crescente, onde a convergência do antigo continua em dialéctica com a divergência do actual. As raízes do passado sustentam tanto o tempo presente como as saudades de futuro. Os divergentes continuam em diálogo com os convergentes, a liberdade, com a ordem e a justiça, com a segurança. É essa a inevitável emergência da liberdade vivida, onde não há reaccionários fins da história nem repristinações revolucionárias. É esse o eterno regresso da história, com o consequente relembrar da política, onde é o homem que faz a história, mesmo sem saber que história vai fazendo.
Assumindo, muito provocatoriamente, a memória azul e branca, não me digo, contudo, um mero eclético, doutrinariamente idéologue: isto é, conservador do que está, mesmo a nível dos valores; verbosamente reformista, quanto aos processos; e utopicamente revolucionário, no tocante aos objectivos. Porque não sou dos que, tendo sido da extrema-esquerda aos dezoito anos, se ficam a partir da idade adulta com os nomes da moderação conveniente, para melhor poderem navegar ao sabor do vento, nas águas pantanosas dos tempos que passam, dizendo, nomeadamente, na primeira curva do caminho, que, são de meia esquerda, para, na encruzilhada seguinte, se declararem de meia direita.
Esses, que se ficam por uma espécie de esquerda menos ou de uma direita envergonhada, costumam dizer que não são conservadores, mas reformistas, esquecendo que tudo depende dos ingredientes de conteúdo com que vão enchendo os chouriços daquelas cláusulas gerais que dão parecença ao hábito do respectivo continente, mas que nem por isso faz o monge. Tudo depende da matéria com que se fecunda a forma, bem como da luz simbólica que dá sentido ao corpo político.
Por exemplo, quem assumir as doutrinas sociais do conservadoríssimo João Paulo II está bastante mais à esquerda do que os sociais-democratas herdeiros do Bloco Central. Tal como o modelo anti-plutocrático de Oliveira Salazar (1889-1970) está imensamente mais à esquerda do que a prática assumida pelos governos socialistas dos finais do século XX, nas relações com os grandes grupos económicos. O sentido popular do guerrilheiro miguelista Padre Casimiro José Vieira também não está à direita da versão pós-revolucionária do progressismo cristão institucionalizado pela Conferência Episcopal. O nobre povo dos heróis do mar e da nação imortal é que precisa de voltar a ter a plenitude dos activos direitos políticos!
Em vez da revolução perdida, a que vai de 1820 a 1974, traduzindo em calão outras matrizes, situadas entre 1789 e 1917, prefiro o mito da restauração consensualista, à maneira de 1640 ou de 1808, ou das revoluções evitadas, como o foram a Glorious Revolution dos ingleses, desencadeada em 1688, ou a independência da república norte-americana, de 1787. Modelos que, ao propagarem-se, a partir da era pós-napoleónica, permitiram o actual pluralismo da democracia representativa, assente no sufrágio universal. Até não vale a pena reduzir a Revolução francesa a Robespierre e ao cesarismo e chauvinismo napoleónicos, porque, a partir de 1814, a democracia francesa, com o cartismo moderado restaurou, não apenas a monarquia, mas também o regime misto tentado nos primeiros dias de 1789, com a convocação dos estados gerais, sucessivamente interrompido pelos absolutismos democráticos, de esquerda e de direita.
Quando me qualifico como tradicionalista, quero acentuar que não ouso seguir os tais contra-revolucionários que querem uma revolução ao contrário, porque, mais do que o contrário de uma revolução, prefiro que se avance para uma revolução evitada, a fim de nos livrarmos das pós-revoluções castradoras que sempre nos fazem regredir.
Foi girondino Condorcet (1743-1794) que definiu a contra-revolução como une révolution au contraire, ao que Joseph de Maistre (1753-1821) respondeu, proclamando: nous ne voulons pas la contre-révolution, mais le contraire de la révolution. Assim se sintetizava o pensamento reaccionário puro que não hesitava em utilizar a violência para promover o regresso à anterior ordem absoluta, do trono e do altar, isto é, da monarquia de direito divino, acompanhada pela restauração do próprio poder do papa, segundo as perspectivas do ultramontanismo.
Por seu lado, John Adams (1735-1826), o segundo presidente da república americana, reconheceu que a revolução norte-americana não foi um levantamento inovador, mas a restauração das antigas liberdades e prerrogativas coloniais dos Tudor, criticando o abuso de conceitos apriorísticos que seria praticado por Thomas Jefferson (1743-1826) e James Madison (1751-1836). Neste sentido, subscreveu a tese de Edmund Burke (1729-1797), para quem a mesma foi uma revolução evitada, não realizada.
Quando me proclamo liberal, e até velho liberal, apenas quero dizer que não me seduz certo neoliberalismo importado, difundido pelas potências que beneficiam com as actuais regras do jogo das trocas mundiais de ideias, bens e serviços, porque, face ao pensamento único desse totalitarismo doce, que dissolve as identidades e as autonomias dos povos, das nações e das civilizações, importa assumir o libertacionismo, para se resistir em liberdadeirismo.
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