quarta-feira, abril 27, 2005

Reflexões sobre a chamada "Constituição" europeia

por Dulce Rodrigues

No dia 4 de Março de 2005, o jornal Contacto (jornal de língua portuguesa no Luxemburgo) publicava um editorial com o título: "Portugal é na Europa".

O subscritor (cujo nome se limita às iniciais "bn") desse editorial fala dos rumores que circulam nos corredores de Bruxelas de que, se a Grã-Bretanha disser "não" à "constituição" europeia será o fim da Grã-Bretanha, mas que se for a França, será o fim da "constituição" – o que exprime a diferença de peso dos diferentes estados europeus. Escreve ainda que nem se atreve a perguntar o que acontecerá a Portugal se disser "não".

Na minha modesta opinião, não creio que será o fim da Grã-Bretanha se disser "não", como também não será o fim da União europeia se for a França a fazê-lo. Evidentemente que todos nós sabemos – ou pelo menos suspeitamos – que a União europeia tem sobretudo servido os propósitos dos diversos governos franceses, permitindo-lhes aplicar medidas impopulares sem terem de as assumir: uma vez essas medidas tomadas "em nome da Europa", a França aplica-as protestando que a isso foi obrigada. Um jogo político em que colaboraram praticamente sempre os restantes estados membros, pois a estrutura pouco transparente da União europeia para isso tem contribuído. E a França disso se tem aproveitado, continuando como de hábito a considerar que a União europeia é... a França.

Apesar de tudo isto, no entanto, a realidade é que a União europeia é uma organização supostamente democrática composta por 25 estados membros. E como se poderia considerar "democrática" uma organização em que todos os seus estados membros não tivessem o mesmo "peso"? Isso pressuporia a existência de duas espécies de cidadãos europeus: uns de primeira e outros de segunda; talvez até de uma terceira... O que comprometeria gravemente o futuro democrático dessa organização: do mesmo modo que num país democrático todos os cidadãos são iguais perante a lei, também na União europeia todos os estados membros estão em pé de igualdade – desde que tenham a coragem de assumir esse seu privilégio, claro.

A diferença de "peso" ou "importância" de alguns estados face aos outros, só existirá se esses estados continuarem a dar provas de fraqueza como até aqui. Quem não se sabe respeitar a si próprio e sofre de falta de amor-próprio e medo, não consegue fazer-se respeitar pelos outros e será sempre "escravo" de quem se considera superior e temerário. Foi ao assumirem com coragem as suas convições que homens e mulheres "sem medo" e conscientes do seu valor ganharam o respeito e a consideração dos seus concidadãos, apesar de virem, muitas vezes, de meios sociais carenciados, bem pobres mesmo.

Convém não confundir aqui "igualdade democrática" com outras formas de igualdade (tão do gosto demagógico de certos senhores), pois fora essa igualdade perante a lei, todos nós somos diferentes uns dos outros: uns magros, outros gordos; uns altos, outros baixos; uns loiros, outros morenos; uns trabalhadores, outros calões... A igualdade só existe relativamente aos direitos e deveres dos cidadãos.

E é exactamente essa igualdade perante a lei que permite (permitirá, realmente, com a "constituição" que nos querem impor?) a qualquer estado membro da União europeia dizer "não" a essa pretensa "constituição". Tanto os cidadãos que votarem "não", como os que votarem "sim", serão igualmente europeus. A diferença só estará na natureza do impacto do seu voto no que respeita às políticas institucionais, sociais, económicas, ambientais e democráticas.

O "não" estará longe de provocar uma crise económica e social, pois a Europa já se debate com uma grave crise nesses sectores. Pelo contrário, o "não" originará uma crise política, bem menos perigosa do que a presente crise econónica e social, e obrigará à reflexão necessária para que aqueles(as) que têm nas mãos a liderança dos seus países compreendam que não se pode eternamente ludibriar o cidadão comum. Até agora, foram ignorados pelos dirigentes políticos europeus todos os principais aspectos que os deveriam ter interessado: direito à educação básica gratuita, sistema social, de saúde, fiscal comum a todos os estados-membros... para só citar alguns, que considero mais importantes.

Gostaria de salientar aqui os principais pontos de que enferme a alegada "constituição" e que me parecem mais graves:

1. O texto que nos pretendem impor não é uma constituição, mas mais um tratado, a juntar a todos os outros já existentes. Uma verdadeira constituição tem de emanar de uma Assembleia constituinte – o que não é o caso com o presente texto, pois não existe Assembleia constituinte a nível europeu – e essa Assembleia constituinte deve apoiar-se na soberania popular para ganhar legitimidade democrática. O próprio texto da chamada "constituição", aliás, refere-se a "Tratado pelo qual é instituída a Constituição europeia". Uma maneira diplomática e, certamente, politicamente correcta de contornar o problema e deitar areia nos olhos dos cidadãos.

2. Uma constituição pressupõe um texto simples, claro e preciso, além de curto – o que também não é o caso: 453 Artigos, mais 36 Protocolos, 2 Anexos e 39 Declarações! Num total de 765 páginas A4! O texto é a tal ponto confuso e incompreensível que um debate televisivo ofereceu o triste espectáculo de dois juristas que se afrontaram com interpretações diferentes, quando ambos pertenciam à mesma ideologia política!

3. Aqueles(as) que defendem o "sim" dizendo que depois se retirará o que não convier e se introduzirá o que for preciso, "esquecem-se" de que, da forma como foi elaborado o seu texto, é quase impossível, na prática, modificar a alegada "constituição" – qualquer alteração a introduzir terá de ser ratificada por todos os estados membros no decurso de um longo e complexo processo, e bastará um só país para bloquear toda e qualquer alteração. Aconselho a leitura dos Artigos IV-443 (Procedimento de alteração ordinária) e IV-444 (Procedimento de revisão simplificada) ambos da Parte IV.

4. Propõem-nos, pois, em nome da Democracia, aceitar um texto que é contrário aos princípios básicos de democracia!

Num apontamento final salientarei uma vez mais que se Portugal ou qualquer outro estado membro disser "não" a esta "constituição", a União europeia continuará a funcionar no dia-a-dia como até aqui, mas a crise política que daí advirá – longe de provocar o caos – poderá obrigar à revisão de pontos essenciais à existência de uma União europeia democrática e mais justa socialmente. A União europeia precisa, sem dúvida, de uma Constituição, mas NÃO desta.

Não devemos ter medo do "medo" que nos querem inspirar os defensores do sim.

Num próximo documento, tentarei esclarecer mais alguns pontos que considero importantes.

Dulce Rodrigues, 27/4/2005

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