segunda-feira, abril 25, 2005

BENTO XVI, Homilia de Inauguração do Pontificado

Texto integral da homilia da S. Missa de solene inauguração do pontificado

Senhores Cardeais,
Venerados Irmãos no episcopado e no sacerdócio,
Distintas Autoridades e Membros do Corpo diplomático,
Caríssimos Irmãos e Irmãs
O canto da ladainha dos santos acompanhou-nos por três vezes, nestes dias tão intensos: durante o funeral do nosso Santo Padre João Paulo II; por ocasião do ingresso dos Cardeais no Conclave; e também hoje, quando o cantámos novamente com a invocação: Tu illum adiuva [isto é, “Tu (Deus) ajuda-o”] – sustenta o novo sucessor de S. Pedro. Cada vez que ouvi este canto orante, ouvi-o de um modo totalmente particular, como uma grande consolação. Como nos sentimos abandonados depois da partida de João Paulo II! O Papa que foi, durante 26 anos, o nosso Pastor e guia no caminho através deste tempo. Ele atravessava o limiar para a outra vida – entrando no mistério de Deus. Mas não deu este passo sozinho. Quem crê, nunca está só – não o está na vida e não o está nem sequer na morte. Naquele momento, pudemos invocar os santos de todos os séculos – os seus amigos, os seus irmãos na fé, sabendo que eles seriam o cortejo vivo que o acompanhariam no além, até à glória de Deus. Sabíamos que a sua chegada era esperada. Agora sabemos que ele está entre os seus e está verdadeiramente em sua casa. Fomos novamente consolados ao cumprir o solene ingresso no Conclave, para eleger aquele que o Senhor tinha escolhido. Como podíamos reconhecer o seu nome? Como podiam os 115 Bispos, provenientes de todas as culturas e países encontrar aquele a quem o Senhor desejava entregar a missão de ligar e desligar? Mais uma vez, nós sabíamo-lo: sabíamos que não estamos sós, que estamos rodeados, que somos conduzidos e guiados pelos amigos de Deus. E agora, neste momento, eu, débil servidor de Deus, devo assumir esta missão inaudita, que supera realmente toda a capacidade humana. Como posso fazer isto? Serei capaz de o fazer? Todos vós, caros amigos, acabastes de invocar o exército dos santos, representado por alguns dos grandes nomes da história de Deus com os homens. Deste modo, também se reaviva em mim esta consciência: não estou só. Não devo levar sozinho aquilo que, na realidade, nunca poderia levar sozinho. O exército dos santos de Deus protege-me, sustenta-me e conduz-me. E a vossa oração, caros amigos, a vossa indulgência, o vosso amor, a vossa fé e a vossa esperança acompanham-me. De facto, à comunidade dos santos não pertencem apenas as grandes figuras que nos precederam e cujos nomes conhecemos. Todos nós formamos a comunidade dos santos, nós baptizados em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, nós que vivemos do dom da Carne e do Sangue de Cristo, por meio do Qual Ele nos quer transformar e tornar-nos semelhantes a Ele mesmo. Sim, a Igreja está viva – esta é a maravilhosa experiência destes dias. Justamente nos tristes dias da doença e da morte do Papa, isto manifestou-se de modo maravilhoso aos nossos olhos: que a Igreja está viva. E a Igreja é jovem. Ela leva em si mesma o futuro do mundo e, por isso, mostra a cada um de nós o caminho para o futuro. A Igreja está viva e nós vêmo-lo: nós experimentamos a alegria que o Ressuscitado prometeu aos seus. A Igreja está viva – Ela está viva, porque Cristo está vivo, porque Ele ressuscitou verdadeiramente. Na dor, presente no rosto do Santo Padre nos dias de Páscoa, contemplámos o mistério da Paixão de Cristo e tocámos, ao mesmo tempo, as Suas feridas. Mas em todos estes dias, pudemos também, num sentido profundo, tocar o Ressuscitado. Foi-nos dado experimentar a alegria que Ele prometeu, após um breve tempo de obscuridade, como fruto da sua Ressurreição.
A Igreja está viva – saúdo assim com grande alegria e gratidão a todos vós, que estais aqui reunidos, venerados irmãos Cardeais e Bispos, caríssimos sacerdotes, diáconos, operadores pastorais, catequistas. Saúdo-vos a vós, religiosos e religiosas, testemunhas da transfigurante presença de Deus. Saúdo-vos a vós, fiéis leigos, imersos no grande espaço da construção do Reino de Deus que se expande no mundo, em cada expressão da vida. O discurso enche-se de afecto também na saudação que dirijo a todos aqueles que, renascidos no Sacramento do Baptismo, ainda não estão em plena comunhão connosco; e a vós, irmãos do povo judaico, a quem estamos ligados por um grande património espiritual comum, que tem as suas raízes nas promessas irrevogáveis de Deus. Enfim, o meu pensamento – quase como uma onda que se expande – dirige-se a todos os homens do nosso tempo, crentes e não crentes.

Caros amigos! Neste momento não preciso de apresentar um programa de governo. Alguns dos traços daquilo que considero ser o meu dever, já expus na minha mensagem da passada quarta-feira, 20 de Abril; não faltarão outras ocasiões para o fazer. O meu verdadeiro programa de governo é o de não fazer a minha vontade, de não procurar as minhas ideias, mas pôr-me à escuta, com toda a Igreja, da Palavra e da vontade do Senhor, e de me deixar guiar por Ele, de modo que seja Ele mesmo a guiar a Igreja nesta hora da nossa história. Em vez de expor um programa, queria simplesmente procurar comentar os dois sinais com que a assunção do Ministério Petrino é liturgicamente representada. Ambos estes sinais reflectem, de resto, exactamente também aquilo que é proclamado nas leituras de hoje. O primeiro sinal é o Pálio, tecido de pura lã, que me foi posto aos ombros. Este sinal antiquíssimo, que os Bispos de Roma levam desde o século IV, pode ser considerado como uma imagem do jugo de Cristo, que o Bispo desta cidade de Roma, o servo dos servos de Deus, toma sobre os seus ombros. O jugo de Deus é a vontade de Deus que nós acolhemos. E esta vontade não é para nós um peso exterior, que nos oprime e nos tira a liberdade. Conhecer aquilo que Deus quer, conhecer qual é o caminho da vida – esta era a alegria de Israel, era o seu grande privilégio. Esta é também a nossa alegria: a vontade de Deus não nos aliena, purifica-nos – talvez até de modo doloroso – e assim conduz-nos a nós mesmos. Deste modo, não servimos apenas a Ele, mas a salvação do mundo inteiro, de toda a história. Na realidade, o simbolismo do Pálio é ainda mais concreto: a lã de cordeiro pretende representar a ovelha perdida ou também a ovelha doente e a ovelha débil, as quais o pastor põe aos seus ombros e conduz às águas da vida. A parábola da ovelha tresmalhada, que o pastor procura no deserto era, para os Padres da Igreja, uma imagem do mistério de Cristo e da Igreja. A humanidade – todos nós – é a ovelha tresmalhada que, no deserto, já não encontra o caminho. O Filho de Deus não tolera isto; Ele não pode abandonar a humanidade numa tal miserável condição. Ele Levanta-se, abandona a glória do Céu, para reencontrar a ovelha e segui-la até à Cruz. Põe-na aos ombros, leva a nossa humanidade, leva-nos a nós mesmos – Ele é o Bom Pastor que oferece a sua vida pelas ovelhas. Antes de mais, o Pálio diz que todos nós somos levados por Cristo, mas, ao mesmo tempo, convida-nos a levar-nos uns aos outros. Assim, o Pálio torna-se o símbolo da missão do Pastor, de que falam a segunda leitura e o Evangelho. A santa inquietação de Cristo deve animar o pastor: para ele, não é indiferente o facto de tantas pessoas viverem no deserto. E há tantas formas de deserto. Há o deserto da pobreza, o deserto da fome e da sede, há o deserto do abandono, da solidão, do amor destruído. Há o deserto da obscuridade de Deus, do esvaziamento das almas já sem consciência da dignidade e do caminho do homem. Os desertos exteriores multiplicam-se no mundo, porque os desertos interiores se tornaram assim tão amplos. Por isso, os tesouros da terra já não estão ao serviço da edificação do jardim de Deus, no qual todos podem viver, mas estão ao serviço dos poderes da exploração e da destruição. A Igreja, no seu conjunto, e os Pastores nela devem pôr-se a caminho, tal como Cristo, para conduzir os homens para fora do deserto, para o lugar da vida, para a amizade com o Filho de Deus, para Aquele que nos dá a vida, a vida em plenitude. O símbolo do cordeiro tem ainda um outro aspecto. No Antigo Oriente, era costume os reis designarem-se a si mesmos como pastores do seu povo. Esta era uma imagem do seu poder, uma imagem cínica: os povos eram para eles, como ovelhas, das quais o pastor podia dispor a seu bel prazer. Enquanto que o Pastor de todos os homens, o Deus vivo, Se tornou, Ele mesmo, Cordeiro, pôs-se do lado dos cordeiros, daqueles que são espezinhados e mortos. É justamente assim que Ele Se revela como o verdadeiro Pastor: «Eu sou o Bom Pastor… Dou a minha vida pelas minhas ovelhas», diz Jesus de Si mesmo (Jo 10, 14 ss.). Não é o poder que redime, mas o amor. Este é o sinal de Deus: Ele mesmo é amor. Quantas vezes desejávamos que Deus Se mostrasse mais forte. Que Ele atingisse duramente, derrotasse o mal e criasse um mundo melhor. Todas as ideologias do poder justificam-se assim, justificam a destruição daquilo que se oporia ao progresso e à libertação da humanidade. Nós sofremos pela paciência de Deus. E, todavia, todos temos necessidade da sua paciência. O Deus que Se tornou Cordeiro, diz-nos que o mundo se salva pelo Crucificado e não pelos crucificadores. O mundo é redimido pela paciência de Deus, é destruído pela impaciência dos homens.
Uma das características fundamentais do pastor dever ser a de amar os homens que lhe foram confiados, tal como ama Cristo, a cujo serviço se encontra. “Apascenta as minhas ovelhas”, diz Cristo a Pedro e a mim neste momento. Apascentar quer dizer amar, e amar quer dizer também estar dispostos a sofrer. Amar significa: dar às ovelhas o verdadeiro bem, o alimento da verdade de Deus, da Palavra de Deus, o alimento da sua presença, que Ele nos dá no Santíssimo Sacramento. Caros amigos, neste momento, eu só posso dizer: rezai por mim, para que eu aprenda cada vez mais a amar o Senhor. Rezai por mim, para que eu aprenda a amar cada vez mais o seu rebanho – vós, a Santa Igreja, cada um de vós, individualmente e todos vós em conjunto. Rezai por mim, para que eu não fuja por medo perante os lobos. Rezemos uns pelos outros, para que o Senhor nos leve e nós aprendamos a levar-nos uns aos outros.
O segundo sinal, com que é representado na liturgia hodierna a tomada de posse do Ministério Petrino é a entrega do anel do pescador. O chamamento de Pedro a ser pastor, que acabámos de ouvir no Evangelho, vem no seguimento da narração de uma abundante pesca: depois de uma noite em que tinham lançado as redes sem sucesso, os discípulos vêem na margem o Senhor ressuscitado. Ele manda-lhes voltar a pescar mais uma vez e eis que a rede se enche de tal maneira que eles não conseguem puxá-la para cima; 153 grandes peixes: “E apesar de serem tantos, a rede não se rompeu” (Jo 21, 11). Esta narração, no final do caminho terreno de Jesus com os seus discípulos, corresponde a uma narração do início: também naquela altura, os discípulos não tinham pescado nada durante toda a noite; também naquela altura, Jesus convidara Simão a fazer-se ao largo mais uma vez. E Simão, que então ainda não era chamado Pedro, deu a admirável resposta: Mestre, sobre a tua Palavra lançarei as redes! E eis a entrega da missão: “Não temas! De ora em diante serás pescador de homens” (Lc 5, 1-11). Também hoje é dito à Igreja e aos sucessores dos Apóstolos para se lançarem ao largo no mar da história e para lançarem as redes, para conquistar os homens para o Evangelho – para Deus, para Cristo, para a verdadeira vida. Os Padres dedicaram um comentário muito particular também a esta missão singular. Eles dizem assim: para o peixe, criado para a água, é mortal ser tirado para fora do mar. Ele é tirado do seu elemento vital para servir de alimento ao homem. Mas, na missão do pescador de homens acontece o contrário. Nós, homens, vivemos alienados, nas águas salgadas do sofrimento e da morte; num mar de obscuridade sem luz. A rede do Evangelho tira-nos para fora das águas da morte e leva-nos para o esplendor da luz de Deus, para a verdadeira vida. É mesmo assim – na missão de pescador de homens, no seguimento de Cristo, é necessário levar os homens para fora do mar salgado de todas as alienações para a terra da vida, para a luz de Deus. É mesmo assim: nós existimos para mostrar Deus aos homens. E só onde se vê Deus é que começa verdadeiramente a vida. Só quando encontramos em Cristo o Deus vivo, é que conhecemos o que é a vida. Não somos o produto casual e sem sentido da evolução. Cada um de nós é o fruto de um pensamento de Deus. Cada um de nós é querido, cada um de nós é amado, cada um de nós é necessário. Não há nada mais belo do que ser alcançados, surpreendidos pelo Evangelho, por Cristo. Não há nada mais belo do que conhecê-Lo e comunicar aos outros a amizade com Ele. A missão do pastor, do pescador de homens pode parecer frequentemente cansativa. Mas é bela e grande, porque, no fim de contas, é um serviço à alegria, à alegria de Deus que quer entrar no mundo.
Queria aqui pôr em relevo ainda uma coisa: tanto na imagem do pastor, como na do pescador, emerge, de modo muito explícito, o chamamento à unidade. “Tenho ainda outras ovelhas, que não são deste redil; também estas Eu preciso de as trazer e hão-de ouvir a minha voz e haverá um só rebanho e um só pastor” (Jo 10, 16) - diz Jesus no final do discurso do Bom Pastor. E a narração dos 153 grandes peixes termina com a alegre constatação: “E apesar de serem tantos, a rede não se rompeu” (Jo 21, 11). Ai de mim, querido Senhor, esta rede agora rompeu-se! Quereríamos dizer cheios de dor. Mas não – não devemos estar tristes! Alegramo-nos com a tua promessa, que não desilude e fazemos todo o possível para percorrer o caminho para a unidade, que Tu prometeste. Fazemos memória dela na oração ao Senhor, como mendigos: sim, Senhor, lembra-te do que prometeste. Faz com que sejamos um só pastor e um só rebanho! Não permitas que a tua rede se rompa e ajuda-nos a ser servidores da unidade.
Neste momento, volto com a memória ao dia 22 de Outubro de 1978, quando o Papa João Paulo II iniciou o seu ministério aqui, na Praça de S. Pedro. As suas palavras de então ressoam-me ainda aos ouvidos: “Não tenhais medo, abri, ou melhor, escancarai as portas a Cristo!” O Papa falava aos fortes, aos poderosos do mundo, os quais tinham medo que Cristo lhes tirasse algo do seu poder, se O deixassem entrar e dessem liberdade à fé. Sim, Ele tirar-lhes-ia, certamente, qualquer coisa: o domínio da corrupção, da reviravolta do direito, do arbítrio. Mas não teria tirado nada do que pertence à liberdade do homem, à sua dignidade, à edificação de uma sociedade justa. O Papa, falava, além disso, a todos os homens, sobretudo aos jovens. Não teremos, porventura, de qualquer modo, todos nós, medo – se deixamos entrar Cristo totalmente dentro de nós, se nos abrimos totalmente a Ele – medo de que Ele nos tire algo na nossa vida? Não teremos, porventura, medo de renunciar a qualquer coisa de grande, de único, que torna a vida assim tão bela? Não nos arriscamos a encontrar-nos, depois, na angústia e privados da liberdade? E mais uma vez, o Papa queria dizer-nos: não! Quem deixa entrar Cristo, não perde nada, nada – absolutamente nada daquilo que torna a vida livre, bela e grande. Não! Só nesta amizade é que se escancaram as portas da vida. Só nesta amizade é que se abrem realmente as grandes potencialidades da condição humana. Só nesta amizade podemos experimentar aquilo que é belo e livre. Assim, hoje, eu quero com grande força e grande convicção, partindo da experiência de uma longa vida pessoal, dizer-vos a vós, caros jovens: Não tenhais medo de Cristo! Ele não tira nada, e dá tudo. Quem se dá a Ele, recebe o cêntuplo. Sim, abri, escancarai as portas a Cristo – e encontrareis a verdadeira vida.
Amen.

Bento XVI

[tradução realizada por pensabem.net; negritos acrescentados]

AsiaNews, 24 de Abril de 2005

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