sexta-feira, abril 15, 2005

O EVANGELHO DO SOFRIMENTO

CARTA DO CANADÁ

por Fernanda Leitão


Homem de todas as dores. Perdeu os pais e os irmãos muito cedo, os seus melhores amigos desapareceram do mundo também cedo. Viu a sua bem amada pátria invadida e espezinhada pela bota satânica do nazismo, e bateu-se pela sua libertação descendo ao fundo das maiores carências e trabalhos penosos. Viu depois a sua pátria querida de novo escravizada por outra manifestação demoníaca, o comunismo, e bateu-se como um leão para libertar a sua Polónia e todos os países dominados pelo mesmo inferno. Renunciou ao mundo e entregou-se a Cristo.
Deus mandou-o para terra alheia a ser a Pedra da sua Igreja. O servo de Deus aceitou, embora confessando não se sentir digno de tal escolha. No trono de Pedro por pouco não sucumbiu a uma dor tão tamanha que nem a imaginava: a descristianização de muitos países da Europa e da América do Norte por culpa de um certo clero com comportamentos de luxúria, materialismo e ganância, contando com o laxismo de certas hierarquias, abafando os gritos de alma do clero digno desse nome e do povo em revolta amarga. Alma de bronze, coração de flor, João Paulo, caldeado no sofrimento, robustecido pelo sentimento de total doação a Deus, radical nos princípios, terno no amor ao próximo, pegou no cajado e foi pelo mundo fora prégar a palavra necessária.
Ressequido de sofrimento e de angústia, depois de um século sanguinário, injusto e hipócrita, como outro não houve, o mundo deixou-se alagar pela palavra, o sorriso, a figura daquele homem atlético e de boas feições que lhe estendia a mão com humildade. O mundo sobressaltou-se quando o servo de Deus foi baleado pelas forças obscuras e secretas que tentam sufocar a humanidade. Mas compreendeu que o servo bom e humilde fosse à prisão ouvir o rapaz que empunhou a arma assassina, a mando dos tais, e lhe perdoasse. O mundo também compreendeu que aquele homem que não queria ser poderoso ajoelhasse aos pés da imagem de Nossa Senhora, num lugar humilde de Portugal, porque a gratidão existia e tinha de ser mostrada aos homens como uma bússola que os não deixasse perder o norte da vida. Por toda a parte, multidões correram para ele, numa grande sede de amor, de justiça, de paz. E às multidões juntaram-se os grandes do mundo, afinal tão pequenos nos seus desígnios que atiraram o mundo para este beco de difícil saída.
O servo de Deus tudo via, tudo sofria no silêncio da sua alma. E escrevia, escrevia, numa pressa de quem sabe que o tempo humano não é longo e que aos pastores incumbe deixar herança, por escrito e em actos exemplares. Porque, disse não sei quem, “ter fé é acreditar no que não se vê”. E assim sendo, grande fé é esta que Cristo suscita 2000 anos depois de ter sido pregado numa cruz por dirigentes corruptos e medrosos de perderem o seu poder temporal, isto é, o de explorarem o povo. Mas 2000 anos pesam muito sobre uma humanidade que tem sido, está a ser, fustigada por todos os desvarios e abusos. O servo de Deus bem sabia que era preciso soprar as brasas no coração do mundo, tal como Teresa de Calcutá soube.
Quando chegou a hora da doença, da invalidez, mal pode imaginar-se o sofrimento impotente do atlético polaco que praticava desporto e vendia saúde quando chegou ao Vaticano. Mas, a exemplo do Senhor a quem serviu até ao fim, vergou a cabeça e sofreu sem um queixume, com a maior dignidade. Foi uma grande lição.
Como enorme lição foi o seu funeral com milhões de pessoas deslocando-se de todos os países, sobretudo jovens, indiferentes ao inevitável fausto de uma igreja milenarmente instalada e sobretudo com os marejados olhos postos naquele caixão tão despojado, tão pobre. E também o foi o seu testamento de homem honrado que saíu da vida como nela entrou, sem bens, de mãos vazias. João Paulo II foi o apóstolo do século XXI. O sinal evidente para os que andam tentados pela descrença. As multidões anónimas, na sua humildade, perceberam isso mesmo. Só não aceitaram este Papa os que fazem do ódio a sua bandeira e a sua enxada, pertençam eles às sociedades secretas, ao comunismo, ao nazismo, ao fascismo, ao racismo, ao capitalismo selvagem, ou a qualquer outro regato que vai dar ao rio do inferno. Na Igreja, e até no mundo, nada será como dantes. Esta morte, tão sofrida e tão sentida, foi a viragem. O mundo não vai ficar em paz num passe de mágica, mas é bom lembrar que o comunismo também não caíu com um estalar de dedos. Temos boa razões para esperar.

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