quarta-feira, abril 27, 2005

Reflexões sobre a chamada "Constituição" europeia

por Dulce Rodrigues

No dia 4 de Março de 2005, o jornal Contacto (jornal de língua portuguesa no Luxemburgo) publicava um editorial com o título: "Portugal é na Europa".

O subscritor (cujo nome se limita às iniciais "bn") desse editorial fala dos rumores que circulam nos corredores de Bruxelas de que, se a Grã-Bretanha disser "não" à "constituição" europeia será o fim da Grã-Bretanha, mas que se for a França, será o fim da "constituição" – o que exprime a diferença de peso dos diferentes estados europeus. Escreve ainda que nem se atreve a perguntar o que acontecerá a Portugal se disser "não".

Na minha modesta opinião, não creio que será o fim da Grã-Bretanha se disser "não", como também não será o fim da União europeia se for a França a fazê-lo. Evidentemente que todos nós sabemos – ou pelo menos suspeitamos – que a União europeia tem sobretudo servido os propósitos dos diversos governos franceses, permitindo-lhes aplicar medidas impopulares sem terem de as assumir: uma vez essas medidas tomadas "em nome da Europa", a França aplica-as protestando que a isso foi obrigada. Um jogo político em que colaboraram praticamente sempre os restantes estados membros, pois a estrutura pouco transparente da União europeia para isso tem contribuído. E a França disso se tem aproveitado, continuando como de hábito a considerar que a União europeia é... a França.

Apesar de tudo isto, no entanto, a realidade é que a União europeia é uma organização supostamente democrática composta por 25 estados membros. E como se poderia considerar "democrática" uma organização em que todos os seus estados membros não tivessem o mesmo "peso"? Isso pressuporia a existência de duas espécies de cidadãos europeus: uns de primeira e outros de segunda; talvez até de uma terceira... O que comprometeria gravemente o futuro democrático dessa organização: do mesmo modo que num país democrático todos os cidadãos são iguais perante a lei, também na União europeia todos os estados membros estão em pé de igualdade – desde que tenham a coragem de assumir esse seu privilégio, claro.

A diferença de "peso" ou "importância" de alguns estados face aos outros, só existirá se esses estados continuarem a dar provas de fraqueza como até aqui. Quem não se sabe respeitar a si próprio e sofre de falta de amor-próprio e medo, não consegue fazer-se respeitar pelos outros e será sempre "escravo" de quem se considera superior e temerário. Foi ao assumirem com coragem as suas convições que homens e mulheres "sem medo" e conscientes do seu valor ganharam o respeito e a consideração dos seus concidadãos, apesar de virem, muitas vezes, de meios sociais carenciados, bem pobres mesmo.

Convém não confundir aqui "igualdade democrática" com outras formas de igualdade (tão do gosto demagógico de certos senhores), pois fora essa igualdade perante a lei, todos nós somos diferentes uns dos outros: uns magros, outros gordos; uns altos, outros baixos; uns loiros, outros morenos; uns trabalhadores, outros calões... A igualdade só existe relativamente aos direitos e deveres dos cidadãos.

E é exactamente essa igualdade perante a lei que permite (permitirá, realmente, com a "constituição" que nos querem impor?) a qualquer estado membro da União europeia dizer "não" a essa pretensa "constituição". Tanto os cidadãos que votarem "não", como os que votarem "sim", serão igualmente europeus. A diferença só estará na natureza do impacto do seu voto no que respeita às políticas institucionais, sociais, económicas, ambientais e democráticas.

O "não" estará longe de provocar uma crise económica e social, pois a Europa já se debate com uma grave crise nesses sectores. Pelo contrário, o "não" originará uma crise política, bem menos perigosa do que a presente crise econónica e social, e obrigará à reflexão necessária para que aqueles(as) que têm nas mãos a liderança dos seus países compreendam que não se pode eternamente ludibriar o cidadão comum. Até agora, foram ignorados pelos dirigentes políticos europeus todos os principais aspectos que os deveriam ter interessado: direito à educação básica gratuita, sistema social, de saúde, fiscal comum a todos os estados-membros... para só citar alguns, que considero mais importantes.

Gostaria de salientar aqui os principais pontos de que enferme a alegada "constituição" e que me parecem mais graves:

1. O texto que nos pretendem impor não é uma constituição, mas mais um tratado, a juntar a todos os outros já existentes. Uma verdadeira constituição tem de emanar de uma Assembleia constituinte – o que não é o caso com o presente texto, pois não existe Assembleia constituinte a nível europeu – e essa Assembleia constituinte deve apoiar-se na soberania popular para ganhar legitimidade democrática. O próprio texto da chamada "constituição", aliás, refere-se a "Tratado pelo qual é instituída a Constituição europeia". Uma maneira diplomática e, certamente, politicamente correcta de contornar o problema e deitar areia nos olhos dos cidadãos.

2. Uma constituição pressupõe um texto simples, claro e preciso, além de curto – o que também não é o caso: 453 Artigos, mais 36 Protocolos, 2 Anexos e 39 Declarações! Num total de 765 páginas A4! O texto é a tal ponto confuso e incompreensível que um debate televisivo ofereceu o triste espectáculo de dois juristas que se afrontaram com interpretações diferentes, quando ambos pertenciam à mesma ideologia política!

3. Aqueles(as) que defendem o "sim" dizendo que depois se retirará o que não convier e se introduzirá o que for preciso, "esquecem-se" de que, da forma como foi elaborado o seu texto, é quase impossível, na prática, modificar a alegada "constituição" – qualquer alteração a introduzir terá de ser ratificada por todos os estados membros no decurso de um longo e complexo processo, e bastará um só país para bloquear toda e qualquer alteração. Aconselho a leitura dos Artigos IV-443 (Procedimento de alteração ordinária) e IV-444 (Procedimento de revisão simplificada) ambos da Parte IV.

4. Propõem-nos, pois, em nome da Democracia, aceitar um texto que é contrário aos princípios básicos de democracia!

Num apontamento final salientarei uma vez mais que se Portugal ou qualquer outro estado membro disser "não" a esta "constituição", a União europeia continuará a funcionar no dia-a-dia como até aqui, mas a crise política que daí advirá – longe de provocar o caos – poderá obrigar à revisão de pontos essenciais à existência de uma União europeia democrática e mais justa socialmente. A União europeia precisa, sem dúvida, de uma Constituição, mas NÃO desta.

Não devemos ter medo do "medo" que nos querem inspirar os defensores do sim.

Num próximo documento, tentarei esclarecer mais alguns pontos que considero importantes.

Dulce Rodrigues, 27/4/2005

segunda-feira, abril 25, 2005

BENTO XVI, Homilia de Inauguração do Pontificado

Texto integral da homilia da S. Missa de solene inauguração do pontificado

Senhores Cardeais,
Venerados Irmãos no episcopado e no sacerdócio,
Distintas Autoridades e Membros do Corpo diplomático,
Caríssimos Irmãos e Irmãs
O canto da ladainha dos santos acompanhou-nos por três vezes, nestes dias tão intensos: durante o funeral do nosso Santo Padre João Paulo II; por ocasião do ingresso dos Cardeais no Conclave; e também hoje, quando o cantámos novamente com a invocação: Tu illum adiuva [isto é, “Tu (Deus) ajuda-o”] – sustenta o novo sucessor de S. Pedro. Cada vez que ouvi este canto orante, ouvi-o de um modo totalmente particular, como uma grande consolação. Como nos sentimos abandonados depois da partida de João Paulo II! O Papa que foi, durante 26 anos, o nosso Pastor e guia no caminho através deste tempo. Ele atravessava o limiar para a outra vida – entrando no mistério de Deus. Mas não deu este passo sozinho. Quem crê, nunca está só – não o está na vida e não o está nem sequer na morte. Naquele momento, pudemos invocar os santos de todos os séculos – os seus amigos, os seus irmãos na fé, sabendo que eles seriam o cortejo vivo que o acompanhariam no além, até à glória de Deus. Sabíamos que a sua chegada era esperada. Agora sabemos que ele está entre os seus e está verdadeiramente em sua casa. Fomos novamente consolados ao cumprir o solene ingresso no Conclave, para eleger aquele que o Senhor tinha escolhido. Como podíamos reconhecer o seu nome? Como podiam os 115 Bispos, provenientes de todas as culturas e países encontrar aquele a quem o Senhor desejava entregar a missão de ligar e desligar? Mais uma vez, nós sabíamo-lo: sabíamos que não estamos sós, que estamos rodeados, que somos conduzidos e guiados pelos amigos de Deus. E agora, neste momento, eu, débil servidor de Deus, devo assumir esta missão inaudita, que supera realmente toda a capacidade humana. Como posso fazer isto? Serei capaz de o fazer? Todos vós, caros amigos, acabastes de invocar o exército dos santos, representado por alguns dos grandes nomes da história de Deus com os homens. Deste modo, também se reaviva em mim esta consciência: não estou só. Não devo levar sozinho aquilo que, na realidade, nunca poderia levar sozinho. O exército dos santos de Deus protege-me, sustenta-me e conduz-me. E a vossa oração, caros amigos, a vossa indulgência, o vosso amor, a vossa fé e a vossa esperança acompanham-me. De facto, à comunidade dos santos não pertencem apenas as grandes figuras que nos precederam e cujos nomes conhecemos. Todos nós formamos a comunidade dos santos, nós baptizados em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, nós que vivemos do dom da Carne e do Sangue de Cristo, por meio do Qual Ele nos quer transformar e tornar-nos semelhantes a Ele mesmo. Sim, a Igreja está viva – esta é a maravilhosa experiência destes dias. Justamente nos tristes dias da doença e da morte do Papa, isto manifestou-se de modo maravilhoso aos nossos olhos: que a Igreja está viva. E a Igreja é jovem. Ela leva em si mesma o futuro do mundo e, por isso, mostra a cada um de nós o caminho para o futuro. A Igreja está viva e nós vêmo-lo: nós experimentamos a alegria que o Ressuscitado prometeu aos seus. A Igreja está viva – Ela está viva, porque Cristo está vivo, porque Ele ressuscitou verdadeiramente. Na dor, presente no rosto do Santo Padre nos dias de Páscoa, contemplámos o mistério da Paixão de Cristo e tocámos, ao mesmo tempo, as Suas feridas. Mas em todos estes dias, pudemos também, num sentido profundo, tocar o Ressuscitado. Foi-nos dado experimentar a alegria que Ele prometeu, após um breve tempo de obscuridade, como fruto da sua Ressurreição.
A Igreja está viva – saúdo assim com grande alegria e gratidão a todos vós, que estais aqui reunidos, venerados irmãos Cardeais e Bispos, caríssimos sacerdotes, diáconos, operadores pastorais, catequistas. Saúdo-vos a vós, religiosos e religiosas, testemunhas da transfigurante presença de Deus. Saúdo-vos a vós, fiéis leigos, imersos no grande espaço da construção do Reino de Deus que se expande no mundo, em cada expressão da vida. O discurso enche-se de afecto também na saudação que dirijo a todos aqueles que, renascidos no Sacramento do Baptismo, ainda não estão em plena comunhão connosco; e a vós, irmãos do povo judaico, a quem estamos ligados por um grande património espiritual comum, que tem as suas raízes nas promessas irrevogáveis de Deus. Enfim, o meu pensamento – quase como uma onda que se expande – dirige-se a todos os homens do nosso tempo, crentes e não crentes.

Caros amigos! Neste momento não preciso de apresentar um programa de governo. Alguns dos traços daquilo que considero ser o meu dever, já expus na minha mensagem da passada quarta-feira, 20 de Abril; não faltarão outras ocasiões para o fazer. O meu verdadeiro programa de governo é o de não fazer a minha vontade, de não procurar as minhas ideias, mas pôr-me à escuta, com toda a Igreja, da Palavra e da vontade do Senhor, e de me deixar guiar por Ele, de modo que seja Ele mesmo a guiar a Igreja nesta hora da nossa história. Em vez de expor um programa, queria simplesmente procurar comentar os dois sinais com que a assunção do Ministério Petrino é liturgicamente representada. Ambos estes sinais reflectem, de resto, exactamente também aquilo que é proclamado nas leituras de hoje. O primeiro sinal é o Pálio, tecido de pura lã, que me foi posto aos ombros. Este sinal antiquíssimo, que os Bispos de Roma levam desde o século IV, pode ser considerado como uma imagem do jugo de Cristo, que o Bispo desta cidade de Roma, o servo dos servos de Deus, toma sobre os seus ombros. O jugo de Deus é a vontade de Deus que nós acolhemos. E esta vontade não é para nós um peso exterior, que nos oprime e nos tira a liberdade. Conhecer aquilo que Deus quer, conhecer qual é o caminho da vida – esta era a alegria de Israel, era o seu grande privilégio. Esta é também a nossa alegria: a vontade de Deus não nos aliena, purifica-nos – talvez até de modo doloroso – e assim conduz-nos a nós mesmos. Deste modo, não servimos apenas a Ele, mas a salvação do mundo inteiro, de toda a história. Na realidade, o simbolismo do Pálio é ainda mais concreto: a lã de cordeiro pretende representar a ovelha perdida ou também a ovelha doente e a ovelha débil, as quais o pastor põe aos seus ombros e conduz às águas da vida. A parábola da ovelha tresmalhada, que o pastor procura no deserto era, para os Padres da Igreja, uma imagem do mistério de Cristo e da Igreja. A humanidade – todos nós – é a ovelha tresmalhada que, no deserto, já não encontra o caminho. O Filho de Deus não tolera isto; Ele não pode abandonar a humanidade numa tal miserável condição. Ele Levanta-se, abandona a glória do Céu, para reencontrar a ovelha e segui-la até à Cruz. Põe-na aos ombros, leva a nossa humanidade, leva-nos a nós mesmos – Ele é o Bom Pastor que oferece a sua vida pelas ovelhas. Antes de mais, o Pálio diz que todos nós somos levados por Cristo, mas, ao mesmo tempo, convida-nos a levar-nos uns aos outros. Assim, o Pálio torna-se o símbolo da missão do Pastor, de que falam a segunda leitura e o Evangelho. A santa inquietação de Cristo deve animar o pastor: para ele, não é indiferente o facto de tantas pessoas viverem no deserto. E há tantas formas de deserto. Há o deserto da pobreza, o deserto da fome e da sede, há o deserto do abandono, da solidão, do amor destruído. Há o deserto da obscuridade de Deus, do esvaziamento das almas já sem consciência da dignidade e do caminho do homem. Os desertos exteriores multiplicam-se no mundo, porque os desertos interiores se tornaram assim tão amplos. Por isso, os tesouros da terra já não estão ao serviço da edificação do jardim de Deus, no qual todos podem viver, mas estão ao serviço dos poderes da exploração e da destruição. A Igreja, no seu conjunto, e os Pastores nela devem pôr-se a caminho, tal como Cristo, para conduzir os homens para fora do deserto, para o lugar da vida, para a amizade com o Filho de Deus, para Aquele que nos dá a vida, a vida em plenitude. O símbolo do cordeiro tem ainda um outro aspecto. No Antigo Oriente, era costume os reis designarem-se a si mesmos como pastores do seu povo. Esta era uma imagem do seu poder, uma imagem cínica: os povos eram para eles, como ovelhas, das quais o pastor podia dispor a seu bel prazer. Enquanto que o Pastor de todos os homens, o Deus vivo, Se tornou, Ele mesmo, Cordeiro, pôs-se do lado dos cordeiros, daqueles que são espezinhados e mortos. É justamente assim que Ele Se revela como o verdadeiro Pastor: «Eu sou o Bom Pastor… Dou a minha vida pelas minhas ovelhas», diz Jesus de Si mesmo (Jo 10, 14 ss.). Não é o poder que redime, mas o amor. Este é o sinal de Deus: Ele mesmo é amor. Quantas vezes desejávamos que Deus Se mostrasse mais forte. Que Ele atingisse duramente, derrotasse o mal e criasse um mundo melhor. Todas as ideologias do poder justificam-se assim, justificam a destruição daquilo que se oporia ao progresso e à libertação da humanidade. Nós sofremos pela paciência de Deus. E, todavia, todos temos necessidade da sua paciência. O Deus que Se tornou Cordeiro, diz-nos que o mundo se salva pelo Crucificado e não pelos crucificadores. O mundo é redimido pela paciência de Deus, é destruído pela impaciência dos homens.
Uma das características fundamentais do pastor dever ser a de amar os homens que lhe foram confiados, tal como ama Cristo, a cujo serviço se encontra. “Apascenta as minhas ovelhas”, diz Cristo a Pedro e a mim neste momento. Apascentar quer dizer amar, e amar quer dizer também estar dispostos a sofrer. Amar significa: dar às ovelhas o verdadeiro bem, o alimento da verdade de Deus, da Palavra de Deus, o alimento da sua presença, que Ele nos dá no Santíssimo Sacramento. Caros amigos, neste momento, eu só posso dizer: rezai por mim, para que eu aprenda cada vez mais a amar o Senhor. Rezai por mim, para que eu aprenda a amar cada vez mais o seu rebanho – vós, a Santa Igreja, cada um de vós, individualmente e todos vós em conjunto. Rezai por mim, para que eu não fuja por medo perante os lobos. Rezemos uns pelos outros, para que o Senhor nos leve e nós aprendamos a levar-nos uns aos outros.
O segundo sinal, com que é representado na liturgia hodierna a tomada de posse do Ministério Petrino é a entrega do anel do pescador. O chamamento de Pedro a ser pastor, que acabámos de ouvir no Evangelho, vem no seguimento da narração de uma abundante pesca: depois de uma noite em que tinham lançado as redes sem sucesso, os discípulos vêem na margem o Senhor ressuscitado. Ele manda-lhes voltar a pescar mais uma vez e eis que a rede se enche de tal maneira que eles não conseguem puxá-la para cima; 153 grandes peixes: “E apesar de serem tantos, a rede não se rompeu” (Jo 21, 11). Esta narração, no final do caminho terreno de Jesus com os seus discípulos, corresponde a uma narração do início: também naquela altura, os discípulos não tinham pescado nada durante toda a noite; também naquela altura, Jesus convidara Simão a fazer-se ao largo mais uma vez. E Simão, que então ainda não era chamado Pedro, deu a admirável resposta: Mestre, sobre a tua Palavra lançarei as redes! E eis a entrega da missão: “Não temas! De ora em diante serás pescador de homens” (Lc 5, 1-11). Também hoje é dito à Igreja e aos sucessores dos Apóstolos para se lançarem ao largo no mar da história e para lançarem as redes, para conquistar os homens para o Evangelho – para Deus, para Cristo, para a verdadeira vida. Os Padres dedicaram um comentário muito particular também a esta missão singular. Eles dizem assim: para o peixe, criado para a água, é mortal ser tirado para fora do mar. Ele é tirado do seu elemento vital para servir de alimento ao homem. Mas, na missão do pescador de homens acontece o contrário. Nós, homens, vivemos alienados, nas águas salgadas do sofrimento e da morte; num mar de obscuridade sem luz. A rede do Evangelho tira-nos para fora das águas da morte e leva-nos para o esplendor da luz de Deus, para a verdadeira vida. É mesmo assim – na missão de pescador de homens, no seguimento de Cristo, é necessário levar os homens para fora do mar salgado de todas as alienações para a terra da vida, para a luz de Deus. É mesmo assim: nós existimos para mostrar Deus aos homens. E só onde se vê Deus é que começa verdadeiramente a vida. Só quando encontramos em Cristo o Deus vivo, é que conhecemos o que é a vida. Não somos o produto casual e sem sentido da evolução. Cada um de nós é o fruto de um pensamento de Deus. Cada um de nós é querido, cada um de nós é amado, cada um de nós é necessário. Não há nada mais belo do que ser alcançados, surpreendidos pelo Evangelho, por Cristo. Não há nada mais belo do que conhecê-Lo e comunicar aos outros a amizade com Ele. A missão do pastor, do pescador de homens pode parecer frequentemente cansativa. Mas é bela e grande, porque, no fim de contas, é um serviço à alegria, à alegria de Deus que quer entrar no mundo.
Queria aqui pôr em relevo ainda uma coisa: tanto na imagem do pastor, como na do pescador, emerge, de modo muito explícito, o chamamento à unidade. “Tenho ainda outras ovelhas, que não são deste redil; também estas Eu preciso de as trazer e hão-de ouvir a minha voz e haverá um só rebanho e um só pastor” (Jo 10, 16) - diz Jesus no final do discurso do Bom Pastor. E a narração dos 153 grandes peixes termina com a alegre constatação: “E apesar de serem tantos, a rede não se rompeu” (Jo 21, 11). Ai de mim, querido Senhor, esta rede agora rompeu-se! Quereríamos dizer cheios de dor. Mas não – não devemos estar tristes! Alegramo-nos com a tua promessa, que não desilude e fazemos todo o possível para percorrer o caminho para a unidade, que Tu prometeste. Fazemos memória dela na oração ao Senhor, como mendigos: sim, Senhor, lembra-te do que prometeste. Faz com que sejamos um só pastor e um só rebanho! Não permitas que a tua rede se rompa e ajuda-nos a ser servidores da unidade.
Neste momento, volto com a memória ao dia 22 de Outubro de 1978, quando o Papa João Paulo II iniciou o seu ministério aqui, na Praça de S. Pedro. As suas palavras de então ressoam-me ainda aos ouvidos: “Não tenhais medo, abri, ou melhor, escancarai as portas a Cristo!” O Papa falava aos fortes, aos poderosos do mundo, os quais tinham medo que Cristo lhes tirasse algo do seu poder, se O deixassem entrar e dessem liberdade à fé. Sim, Ele tirar-lhes-ia, certamente, qualquer coisa: o domínio da corrupção, da reviravolta do direito, do arbítrio. Mas não teria tirado nada do que pertence à liberdade do homem, à sua dignidade, à edificação de uma sociedade justa. O Papa, falava, além disso, a todos os homens, sobretudo aos jovens. Não teremos, porventura, de qualquer modo, todos nós, medo – se deixamos entrar Cristo totalmente dentro de nós, se nos abrimos totalmente a Ele – medo de que Ele nos tire algo na nossa vida? Não teremos, porventura, medo de renunciar a qualquer coisa de grande, de único, que torna a vida assim tão bela? Não nos arriscamos a encontrar-nos, depois, na angústia e privados da liberdade? E mais uma vez, o Papa queria dizer-nos: não! Quem deixa entrar Cristo, não perde nada, nada – absolutamente nada daquilo que torna a vida livre, bela e grande. Não! Só nesta amizade é que se escancaram as portas da vida. Só nesta amizade é que se abrem realmente as grandes potencialidades da condição humana. Só nesta amizade podemos experimentar aquilo que é belo e livre. Assim, hoje, eu quero com grande força e grande convicção, partindo da experiência de uma longa vida pessoal, dizer-vos a vós, caros jovens: Não tenhais medo de Cristo! Ele não tira nada, e dá tudo. Quem se dá a Ele, recebe o cêntuplo. Sim, abri, escancarai as portas a Cristo – e encontrareis a verdadeira vida.
Amen.

Bento XVI

[tradução realizada por pensabem.net; negritos acrescentados]

AsiaNews, 24 de Abril de 2005

sábado, abril 23, 2005

Parábola dos trabalhadores da vinha

Porque o Reino dos Céus é semelhante a um pai de família que saiu de manhã cedo para contratar trabalhadores para a sua vinha. Depois de combinar com os trabalhadores um denário por dia, mandou-os para a vinha. Tormndo a sair pela hora terceira, viu outros que estavam desocupados, e disse-lhes: "Ide, também vós para a vinha, e eu vos darei o que for justo". Eles foram. Tornando a sair pela sexta hora e pela hora nona, fez a mesma coisa. Saindo pela hora undécima, encontrou outros que ali estavam e disse-lhes: "Porque ficais aí o dia inteiro desocupados? Responderam: "Porque ninguém nos contratou". Disse-lhes: "Ide, também vós, para a vinha". Chegada a tarde, disse o dono da vinha ao seu administrador: "Chama o trabalhador e paga-lhes o salário começando pelos últimos até aos primeiros. Vindo os da hora undécima, receberam um denário cada um. E vindo os primeiros, pensaram que receberiam mais, mas receberam um denário cada um também eles. Ao receber, murmuravam contra o pai de família, dizendo: Estes últimos fizeram uma hora só e tu os igualastes a nós, que suportamos o peso do dia e o calor do sol" Ele então disse a um deles: "Amigo, não fui injusto contigo. Não combinaste um denário? Toma o que é teu e vai. Eu quero dar a este último o mesmo que a ti. Não tenho o direito de fazer o que eu quero com o que é meu? Ou o teu olho é mau porque eu sou bom? Assim, os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos".

Mt 20, 1-16

terça-feira, abril 19, 2005

BENTO XVI, UM SIMPLES E HUMILDE TRABALHADOR NA VINHA DO SENHOR

Anunciamo-vos uma grande alegria - Habemus Papam!

Foi eleito o Cardeal Joseph Ratzinger, que escolheu o nome de Bento XVI.
O anúncio foi dado às 18h45 (17h45 de Lisboa) perante uma multidão imensa na Praça de São Pedro. O Papa Bento XVI foi eleito ao quarto escrutínio, após um dia e meio de conclave. Uma duração assim tão breve só teve lugar com Pio XII, em 1939.

Eis as suas primeiras palavras:

«Caros irmãos e irmãs,

depois do grande Papa João Paulo II, os senhores Cardeais elegeram-me a mim, um simples e humilde trabalhador na vinha do Senhor.

Consola-me o facto de que o Senhor sabe trabalhar e agir também com instrumentos insuficientes e, sobretudo, confio-me às vossas orações.

Na alegria do Senhor ressuscitado, confiantes na sua permanente ajuda, vamos em frente.

O Senhor nos ajudará e Maria, a sua Santíssima Mãe, está ao nosso lado. Obrigado!»

domingo, abril 17, 2005

JOÃO PAULO II, PASTOR UNIVERSAL

por Teresa Maria Martins de Carvalho

Bispo de Roma, Vigário de Cristo, sucessor de S. Pedro, Primaz da Itália, Arcebispo de Metropolita da Província Eclesiástica de Roma, Pastor da Igreja Universal, Cabeça do Colégio dos Bispos, Patriarca do Ocidente, Soberano do Estado do Vaticano, servo dos servos de Deus…
Quando um Papa é eleito recebe todos estes títulos cuja responsabilidade terá de assumir até ao fim do seu Pontificado. O mais significativo é, como se sabe, o de Bispo de Roma, Sucessor de Pedro, lugar que define a precedência da Igreja de Roma “na caridade” que une todas as igrejas cristãs, e que se define logo nos primeiros tempos do cristianismo. – “Pedro, tu amas-me? Apascenta as minhas ovelhas” (Jo 21, 18) como foi apontado a Simão Pedro por Jesus Ressuscitado.
Quando percorremos o pontificado de João Paulo II, encontramos, visivelmente a corporização nele de estes títulos, um a um.
“- O bom pastor dá a vida pelas ovelhas”… “Conheço as minhas ovelhas e as minhas ovelhas conhecem-me.” (Jo 10, 11).
A vida de João Paulo II constituiu uma permanente doação, enfrentando perigos e cansaços, com muita coragem, serenidade e… bom humor.
O Papa superstar apostava no valor imprescindível, no enorme impacto da imagem da sociedade contemporânea. Prestou-se a todas as televisões, a todas as fotografias, a todas as perguntas dos jornalistas. Mostrou-se com crianças ao colo, exibindo um “sombrero” ou um toucado de penas, segurando um Koala, na visita à Austrália, ou envergando a capa negra dos estudantes de Coimbra que lha impuseram, depois de ouvirem um alegre “Olá, malta!” naquela voz poderosa e forte. Os jovens. A grande conquista de João Paulo II, tocando uma geração inteira, nascida já no deu pontificado. Jovens, milhares de jovens, multidões de jovens…
Não era difícil imaginá-lo, vestido de camponês, com o seu cajado e transportando nos seus robustos ombros a ovelha desgarrada. Esta missão de pastor universal cumpriu-a fielmente, à direita e à esquerda, mostrando a todos os homens que todos são homens, salvos por Jesus Cristo.
O peso intelectual da sua inteligência e cultura possibilitou-lhe enfrentar com sabedoria os temas candentes do nosso tempo. A coragem da fé, a força da coerência, a confiança na humanidade, a humildade na verdade e no perdão, pedido e dado, o afã nos caminhos da paz, do encontro e da conciliação.
Não querendo ficar confinado ao Vaticano, saiu, foi a quase todos os países (menos à China e à Rússia, para seu grande desgosto), ao encontro das pessoas, falar-lhes, aparecer, abençoar. O Papa espectáculo, que arrastava multidões onde quer que fosse, não as seduzia pela sua própria representação mas envergava Jesus Cristo, ele, Vigário, “o doce Cristo na terra” como dizia, do Papa, Santa Catarina de Sena. Nos últimos anos da sua vida, minado pela doença, mais visível se tornava, naquele espaço tremendo de levar adiante as suas tarefas, a figura de Cristo sofredor. “Ninguém desce da Cruz.” Dizia ele, quando admoestado. Acérrimo defensor da vida, aquele arrastar-se era vida até ao fim. Até quando Deus quisesse… Exemplo tão comovente e tão rico de humanidade na velhice e na doença. Naqueles gestos cansados, à beira do colapso, reviram-se os velhos e os doentes, sentindo-se portadores de sofrimento valorizado, neste endosso à Paixão de Cristo.
É uma carga imensa ser Bispo de Roma. João Paulo II não teve medo. Não ter medo foi mesmo a primeira tónica do seu pontificado: “Não tenhais medo!” E alinhou o seu arcaboiço físico e moral no cumprimento da sua vocação. O seu papel na queda do comunismo foi decisivo e era ver os países que iam saindo da órbita soviética apressarem-se a estabelecer relações diplomáticas com a Santa Sé, como se isso fosse sinal inequívoco de liberdade…
O encontro ecuménico de Assis em 1986, com os chefes religiosos de variadas religiões e que espantou o mundo, ficou também como sinal distintivo deste pontificado.
“João de Deus” lhe chamaram os brasileiros, na sua primeira viagem ao Brasil, no gesto tão brasileiro, carinhoso e exaltado, de dar sobrenome a quem reconhece grandeza e desperta afecto. PONTIFEX MAXIMUS, o Sumo Pontífice, é um título herdado da antiga Roma que designava o cargo religiosos de unir (“lançar pontes”) os vários grupos sacerdotais da cidade.
O homem que “lançou pontes” entre todos os homens teve o enterro maior e mais universal que houve no mundo. Inédito? Correspondeu por inteiro à personalidade de João Paulo II, peregrino da paz, da união e da concórdia. A multidão não era de admirar. João Paulo II e as multidões já se tinha visto. Acudiram à última homenagem os grandes deste mundo, cumprimentando-se entre si, cristãos (católicos, protestantes, ortodoxos), chefes de Estado inimigos na guerra, muçulmanos, judeus, agnósticos, reis e rainhas, principies, figuras políticas importantes. Todo o mundo à volta do Pastor Universal. “Servo bom e fiel, entra na alegria do teu Senhor”.
A ligação a Fátima comoveu-nos, a nós portugueses, e para sempre gravou no nosso coração a figura de João Paulo II.
Se é grande o peso de ser-se Papa, grande será também o de ser-se Papa depois deste, que Deus ajude e proteja o seu sucessor.

sexta-feira, abril 15, 2005

O EVANGELHO DO SOFRIMENTO

CARTA DO CANADÁ

por Fernanda Leitão


Homem de todas as dores. Perdeu os pais e os irmãos muito cedo, os seus melhores amigos desapareceram do mundo também cedo. Viu a sua bem amada pátria invadida e espezinhada pela bota satânica do nazismo, e bateu-se pela sua libertação descendo ao fundo das maiores carências e trabalhos penosos. Viu depois a sua pátria querida de novo escravizada por outra manifestação demoníaca, o comunismo, e bateu-se como um leão para libertar a sua Polónia e todos os países dominados pelo mesmo inferno. Renunciou ao mundo e entregou-se a Cristo.
Deus mandou-o para terra alheia a ser a Pedra da sua Igreja. O servo de Deus aceitou, embora confessando não se sentir digno de tal escolha. No trono de Pedro por pouco não sucumbiu a uma dor tão tamanha que nem a imaginava: a descristianização de muitos países da Europa e da América do Norte por culpa de um certo clero com comportamentos de luxúria, materialismo e ganância, contando com o laxismo de certas hierarquias, abafando os gritos de alma do clero digno desse nome e do povo em revolta amarga. Alma de bronze, coração de flor, João Paulo, caldeado no sofrimento, robustecido pelo sentimento de total doação a Deus, radical nos princípios, terno no amor ao próximo, pegou no cajado e foi pelo mundo fora prégar a palavra necessária.
Ressequido de sofrimento e de angústia, depois de um século sanguinário, injusto e hipócrita, como outro não houve, o mundo deixou-se alagar pela palavra, o sorriso, a figura daquele homem atlético e de boas feições que lhe estendia a mão com humildade. O mundo sobressaltou-se quando o servo de Deus foi baleado pelas forças obscuras e secretas que tentam sufocar a humanidade. Mas compreendeu que o servo bom e humilde fosse à prisão ouvir o rapaz que empunhou a arma assassina, a mando dos tais, e lhe perdoasse. O mundo também compreendeu que aquele homem que não queria ser poderoso ajoelhasse aos pés da imagem de Nossa Senhora, num lugar humilde de Portugal, porque a gratidão existia e tinha de ser mostrada aos homens como uma bússola que os não deixasse perder o norte da vida. Por toda a parte, multidões correram para ele, numa grande sede de amor, de justiça, de paz. E às multidões juntaram-se os grandes do mundo, afinal tão pequenos nos seus desígnios que atiraram o mundo para este beco de difícil saída.
O servo de Deus tudo via, tudo sofria no silêncio da sua alma. E escrevia, escrevia, numa pressa de quem sabe que o tempo humano não é longo e que aos pastores incumbe deixar herança, por escrito e em actos exemplares. Porque, disse não sei quem, “ter fé é acreditar no que não se vê”. E assim sendo, grande fé é esta que Cristo suscita 2000 anos depois de ter sido pregado numa cruz por dirigentes corruptos e medrosos de perderem o seu poder temporal, isto é, o de explorarem o povo. Mas 2000 anos pesam muito sobre uma humanidade que tem sido, está a ser, fustigada por todos os desvarios e abusos. O servo de Deus bem sabia que era preciso soprar as brasas no coração do mundo, tal como Teresa de Calcutá soube.
Quando chegou a hora da doença, da invalidez, mal pode imaginar-se o sofrimento impotente do atlético polaco que praticava desporto e vendia saúde quando chegou ao Vaticano. Mas, a exemplo do Senhor a quem serviu até ao fim, vergou a cabeça e sofreu sem um queixume, com a maior dignidade. Foi uma grande lição.
Como enorme lição foi o seu funeral com milhões de pessoas deslocando-se de todos os países, sobretudo jovens, indiferentes ao inevitável fausto de uma igreja milenarmente instalada e sobretudo com os marejados olhos postos naquele caixão tão despojado, tão pobre. E também o foi o seu testamento de homem honrado que saíu da vida como nela entrou, sem bens, de mãos vazias. João Paulo II foi o apóstolo do século XXI. O sinal evidente para os que andam tentados pela descrença. As multidões anónimas, na sua humildade, perceberam isso mesmo. Só não aceitaram este Papa os que fazem do ódio a sua bandeira e a sua enxada, pertençam eles às sociedades secretas, ao comunismo, ao nazismo, ao fascismo, ao racismo, ao capitalismo selvagem, ou a qualquer outro regato que vai dar ao rio do inferno. Na Igreja, e até no mundo, nada será como dantes. Esta morte, tão sofrida e tão sentida, foi a viragem. O mundo não vai ficar em paz num passe de mágica, mas é bom lembrar que o comunismo também não caíu com um estalar de dedos. Temos boa razões para esperar.

segunda-feira, abril 11, 2005

A intercessão de São João Paulo Magno

Os críticos do Papa pretendem alterações que transformariam a Igreja Católica numa seita protestante. Isto não é insulto, mas mera constatação


João César das Neves

Nestes dias muito se fala do Papa peregrino, ecuménico, reformador, do Papa dos jovens, dos pobres, da vida. Mas, além de tudo isso, a morte de João Paulo II marca o termo do concílio Vaticano II. O seu imponente pontificado consistiu apenas na encarnação, institucionalização, normalização e plenitude desse ensinamento. Dentro de dias começará para a Igreja Católica a era pós-concílio. O próximo Papa, o primeiro do último meio- -século que não foi padre conciliar, lançará a nova fase da Igreja.

A situação dos cristãos em meados do século XX era muito difícil. O problema não vinha das perseguições e perda de fiéis, pois o "pequenino rebanho" (Lc 12, 32) vivia habituado a isso. A dificuldade estava em, desta vez, a Igreja se sentir culpada por essas circunstâncias. Por isso estava desanimada, complexada, à defesa.

Esta não era a primeira vez que o fenómeno existia. Era a segunda. No século XVI viveu-se um forte ataque de cristãos fervorosos contra o que consideravam a imoralidade, abusos e perversão eclesiais. O resultado foi a terrível Reforma, que dividiu dolorosamente a Igreja e a Europa por 200 anos. Desta segunda vez as acusações não eram tão graves. Não se tratava de corrupção moral ou vícios institucionais, mas de desadequação da linguagem e métodos aos tempos modernos. A casa estava bem funda- da; só precisava abrir as janelas.

Nos dois casos, a solução foi conciliar. O século XVI viu o grandioso concílio de Trento (1545-1563), aplicado por um santo, São Pio V (Papa de 1566-1572), inverter a situação. "Em 1590 cerca de metade da massa terrestre europeia estava sob o controlo de Governos protestantes e/ou da cultura protestante; em 1690 o número era apenas cerca de um quinto." (MacCulloch, D. Reformation, Penguin Books, Londres, 2003, p.669). Quatro séculos depois, o concílio Vaticano II (1962-1965) realizou uma reforma equivalente aplicada por quatro santos João, Paulo e João Paulo.

O impulso apostólico e pastoral de João Paulo II mudou completamente o estado de espírito, atitude e ânimo dos fiéis. O Papa deixa uma Igreja jovem e ordenada, empenhada, alegre e confiante. Com a doutrina esclarecida no catecismo (1992), alimentada pelo jubileu (2000), pelo rosário (2003), pela eucaristia (2005), vive num mundo consagrado ao Imaculado Coração de Maria (1984). A receita vinha do primeiro momento "Não tenhais medo! Abri, mais, escancarai as portas a Cristo! Abri ao seu poder salvador as portas dos Estados, dos sistemas económicos e políticos, dos extensos campos da cultura, da civilização e do desenvolvimento" (homilia na inauguração do pontificado, 22 de Outubro de 1978).

Hoje ninguém pode negar a enorme transformação do Vaticano II, semelhante à de Trento. Mas, por muito que se mude, ainda há quem queira mais. A História repete-se os críticos do Papa pretendem alterações que transformariam a Igreja Católica numa seita protestante. Isto não é insulto, mas mera constatação. Com todo o respeito, nota-se que os propósitos dos opositores (descentralização papal e fim da cúria, casamento de padres e ordenação de mulheres, liberdade para aborto, homossexualidade, divórcio, preservativo, etc.) são aspectos que distinguem as comunidades protestantes e, com os avanços do diálogo ecuménico, quase os únicos que as distinguem.

Os críticos chamam aos fiéis "tradicionalistas" e "conservadores". Bem podiam chamar-lhes "católicos" e a si próprios "protestantes".

As tarefas do novo Papa são gigantescas. A descristianização e decadência europeias, a crise de vocações no Ocidente, o desafio gnóstico e esotérico, a evangelização das potências nascentes China, Índia, Islão, os dramas sociais nas católicas América Latina e África, a luta pela vida e família, etc. São problemas que se podem dizer impossíveis de resolver. Como sempre, a Igreja não tem capacidade humana de subsistir. Só a presença do Espírito Santo dá vida ao corpo místico de Jesus Cristo, que conta agora com a poderosa intercessão de São João Paulo Magno.

(in Diário de Notícias, 11 de Abril de 2005)

segunda-feira, abril 04, 2005

Lições do crepúsculo de um pontífice

Peter Weigel, autor de TESTEMUNHO DE ESPERANÇA: A BIOGRAFIA DO PAPA JOÃO PAULO II

Segunda-feira, 4 de Abril de 2005

Cinco dias antes de ter deixado a Polónia para o conclave que o elegeria Papa, o cardeal Karol Wojtyla assistiu a uma celebração do vigésimo aniversário da sua consagração como bispo. A residência em Cracóvia dos seus amigos Gabriel e Bozena Turowski estava decorada com dezenas de fotografias tiradas, ao longo de um quarto de século, de Wojtyla a pedir boleia, a esquiar e a andar de caiaque com os Turowskis e outros amigos laicos, que ainda chamavam ao cardeal “Wujek” (tio), o nome de guerra que lhe tinham dado quando era um jovem capelão na Polónia estalinista. Por cima das fotografias estava um dístico caseiro a dizer “Wujek continuará a ser Wujek” — precisamente o que Wojtyla dissera aos amigos quando regressara a uma viagem de caiaque interrompida em 1958 pela notícia de que fora nomeado bispo.

Mais de um quarto de século depois, o homem que o mundo conhece como João Paulo II está ainda a ser Wujek. Durante estas semanas da sua doença, todas as espécies de perguntas foram feitas. Viria o Papa a considerar a abdicação? O que é que aconteceria se ficasse gravemente incapacitado durante um longo período de tempo? Estas questões não são sem interesse, mas falham o ponto mais importante do drama. O mundo está a ver um homem a viver, até ao fim, uma das convicções que modelaram a sua vida e o seu impacto na história: a convicção de que a luz da Páscoa é sempre precedida pela escuridão da Sexta-Feira Santa, não só no calendário, mas no reino do espírito.

A cultura ocidental contemporânea não se casa bem com o sofrimento. Evitamo-lo, se possível. Sequestramo-lo quando se torna inevitável. Quantos de nós morreremos em casa? Abraçar o sofrimento é um conceito que nos é estranho. E, no entanto, o sofrimento abraçado em obediência à vontade de Deus está no centro da cristandade. O Cristo cuja paixão mais de 1500 milhões de cristãos comemoraram há pouco não está retratado nos Evangelhos como alguém a quem o sofrimento tenha meramente acontecido — um profeta com a sua dose típica de má sorte. O Cristo dos Evangelhos abraça o sofrimento como o seu destino, a sua vocação — e é recompensado por esse sacrifício na Páscoa.

É isso que João Paulo II — não um velho teimoso mas um verdadeiro discípulo cristão — tem vindo a fazer neste último mês: a ser testemunho da verdade de que o sofrimento encarado com obediência e amor pode ser redentor.

Há dias, em Roma, quando perguntei ao cardeal nigeriano Francis Arinze o que é que esta fase do notável pontificado de João Paulo II significava, o cardeal sugeriu que, do seu leito de hospital, o Papa estava a colocar algumas graves questões na agenda mundial: o sofrimento significa alguma coisa, ou é simplesmente um absurdo? O sofrimento contribui de algum modo para o resto de nós? Existe dignidade na velhice?

Na mente do cardeal Arinze o exemplo de João Paulo II oferece uma resposta a estas perguntas. Sim, o sofrimento pode ter significado. Sim, esse sofrimento pode-nos ensinar: recorda-nos que não podemos controlar as nossas vidas, e estimula uma compaixão que nos enobrece. Para além disso, sugeriu o cardeal, João Paulo II, na sua fraqueza e sofrimento, foi um tremendo encorajamento para os idosos, os doentes, os diminuídos e os moribundos, que encontram força e esperança no seu exemplo.

O mundo perdeu muito da história de Karol Wojtyla nos seus 26 anos como Papa porque o mundo tenta compreendê-los em termos políticos, como apenas outro jogador na cena global. Não há dúvida de que João Paulo II tem sido o Papa politicamente mais influente desde há séculos, mas isso não é o que ele é no mais profundo do seu ser. As suas recentes hospitalizações e a sua luta para estar à altura do compromisso que assumiu ao ser eleito em 1978 deve recordar a toda a gente que este homem é, acima de tudo, um pastor cristão que vai desafiar-nos até ao fim com a mensagem da cruz — a mensagem da Sexta-Feira Santa e da Páscoa.

Tal como Hanna Suchocka, a antiga primeira-ministra polaca, me disse recentemente, o Papa “está a viver a sua via sacra”. Não é algo que o mundo, desde há muito tempo, tenha visto um Papa fazer. Devemos reconhecê-lo pelo que ele é, e estar gratos pelo exemplo.

Fonte: Público

sábado, abril 02, 2005

JOÃO PAULO II

Um dom de Deus à humanidade

"NÃO TENHAIS MEDO!" foi o primeiro apelo do Papa João Paulo II. Ao recebermos a notícia da sua morte, damos graças a Deus por o ter tido entre nós transmitindo um tão profundo e intenso testemunho de Esperança.

Hoje é dia de recolhimento e oração. Aos leitores que nos visitam em busca de algumas palavras de reflexão, deixamos o texto «João Paulo II», de Teresa Martins de Carvalho, aqui publicado em 20 de Outubro de 2003:

É já considerado o Papa mais importante do século XX, não só por causa da extensão do seu pontificado mas sobretudo pelo vigor de muitos dos seus gestos e ditos, clamorosos, inéditos ou que vieram completar, estrondosamente, os gestos, proféticos, iniciados por João XXIII e Paulo VI, seus antecessores.

A insistência no perdão, na paz, na união, no derrubar de muros, na reparação de rompimentos e de ódios, na salvaguarda da família e da vida, cria-lhe temas extremos que terá de desenvolver segundo a fé e que explicam a velocidade de um pontificado que também se pode exprimir em números: tantas viagens, tantas canonizações, tantas beatificações, tantos discursos, tantas encíclicas, tantas intervenções...

Um Papa polaco? Quando o soube, Brejnev, o ditador de serviço na União Soviética, exclamou: - Agora há-de querer ir à Polónia... Vai tudo acabar, então...

A queda do muro de Berlim e a reunificação da Europa começa aí, com um Papa polaco. E não sabia da missa a metade... A compleição de um atleta, a força física patente de quem pratica desporto ao ar livre, a sensibilidade do artista, a ternura de quem foi privado da família desde cedo, o gosto pela festa, o bom humor, são qualidades que outras pessoas porventura compartilharão com ele. Parece-nos que aquilo que faz a força do Santo Padre se considera melhor noutra dimensão: a coerência. Coerência firme, resoluta, corajosa, entre aquilo em que acredita, a sua fé e o que pensa, diz, faz... É raríssimo encontrar um espécimen humano com tal grau de unidade da mente, coração, inteligência, vontade. Essa força espiritual transforma-se nele em poder quase mágico, contagiante, o do orante contemplativo que recorda a fascinação que exerce nos crentes o staretz russo, o santo eremita, característica única da intensa espiritualidade eslava. Este carisma excepcional que atrai multidões, conquista os jovens, ele, o papa “sempre juvenil” mesmo agora, já velho e tão doente, arrastando-se numa Via Sacra interminável, imagem do seu modelo Jesus Cristo, dando-se até à Cruz.

Num mundo onde os corpos jovens dominam a sociedade, sociedade em que os velhos são “descartáveis”, esta visão do Papa moribundo incomoda. Ela anuncia quem está saudável mentalmente, mesmo sem quase poder mexer-se nem por isso deverá desligar-se da sua vocação, religiosa ou humana. Persistência e coragem mais uma vez por mostrar-se assim diminuído, aos olhos de todos, ele, o antigo atleta. «É quando sou fraco que sou forte» diz-nos S. Paulo (2 Cor 12, 10). Belo exemplo para todos os fracos, os velhos e os doentes que sofrem a tentação de desistir de viver, de cumprir até ao fim a sua chamada a este mundo.

São inumeráveis os pontos em que assentou a sua força e a sua verdade mas talvez o que mais marcará a sua passagem na Cadeira de Pedro é o abrir os braços aos outros cristãos separados, na busca da unidade, aos crentes de outras religiões, começando pelos judeus, “nossos irmãos mais velhos”, o chamado espirito de Assis, onde por duas vezes, na terra de S. Francisco, foi o anfitrião humilde dos crentes de todos os quadrantes, na oração comum pela paz.

Este Papa universal que transita de século e de milénio, como quem abre portas, é uma figura luminosa, ponto de referência e de acolhimento.

«Vós sois o sal da terra e a luz do mundo» disse o Senhor aos seus seguidores (Mt 5, 13-16). Na sociedade ocidental em perda de valores, que já não é cristã, nem sequer de inspiração cristã, sociedade do simulacro, da vitória da aparência sobre o ser, percebe-se que tal homem, como João Paulo II, marque o seu tempo como figura insigne, perpassada de mistério e de intensa humanidade.

A beatificação de Madre Teresa de Calcutá, que tão ardentemente ansiava realizar, obtendo que o processo galgasse trâmites e tempo, ver-se-á sempre como o encontro desejado e culminante entre duas figuras maiores do século XX, ambos transportando consigo, nas suas vidas, o radicalismo evangélico. O Papa tão criticado por ser político, a religiosa tão criticada por não ter sido política.

Dons de Deus à humanidade.

Isaías 44

21 Lembra-te destas coisas, ó Jacó, e Israel, porquanto és meu servo; eu te formei, meu servo és, ó Israel, näo me esquecerei de ti.

22 Apaguei as tuas transgressöes como a névoa, e os teus pecados como a nuvem; torna-te para mim, porque eu te remi.

23 Cantai alegres, vós, ó céus, porque o SENHOR o fez; exultai vós, as partes mais baixas da terra; vós, montes, retumbai com júbilo; também vós, bosques, e todas as suas árvores; porque o SENHOR remiu a Jacó, e glorificou-se em Israel.

24 Assim diz o SENHOR, teu redentor, e que te formou desde o ventre: Eu sou o SENHOR que faço tudo, que sozinho estendo os céus, e espraio a terra por mim mesmo;

25 Que desfaço os sinais dos inventores de mentiras, e enlouqueço os adivinhos; que faço tornar atrás os sábios, e converto em loucura o conhecimento deles;

26 Que confirmo a palavra do seu servo, e cumpro o conselho dos seus mensageiros; que digo a Jerusalém: Tu serás habitada, e às cidades de Judá: Sereis edificadas, e eu levantarei as suas ruínas;

27 Que digo à profundeza: Seca-te, e eu secarei os teus rios.

28 Que digo de Ciro: É meu pastor, e cumprirá tudo o que me apraz, dizendo também a Jerusalém: Tu serás edificada; e ao templo: Tu serás fundado.