quarta-feira, fevereiro 16, 2005

Homilia DO CARDEAL-PATRIARCA NAS EXÉQUIAS DA IRMÃ LÚCIA

Sé Nova de Coimbra, 15 de Fevereiro de 2005

A morte da irmã Lúcia era inevitável. É um momento de comoção. E até com uma certa surpresa agradável, verificámos que foram poucos os portugueses que lhe ficaram indiferentes. E, no entanto, esta cerimónia solene que estamos a celebrar não é especial porque a irmã Lúcia era especial. Ela é a liturgia da Igreja para um crente que viveu a sua vida procurando seguir o Senhor na fidelidade, percebendo a sua vontade e o seu desígnio, à busca do seu rosto.

E, por isso mesmo, este é talvez um momento privilegiado para percebermos que o que de extraordinário aconteceu na vida desta mulher, se insere na normalidade de uma vocação cristã. Porque aquilo de extraordinário que ao nível da fé e da religiosidade acontece, se não se inserir na normalidade da vocação cristã, corre o risco de não ser verdadeiro.

Tudo começa numa escolha e num chamamento. A fé cristã começa sempre numa eleição de predilecção, numa palavra escutada, numa mensagem de amor consentida e sentida, num desejo de Deus acerca de nós. Começa tudo quando uma experiência do divino se torna tão forte que não a podemos ignorar, tão enraizada na nossa consciência que nem as nossas dúvidas a podem anular. Quando um projecto de Deus é anunciado com tal clareza, só me resta procurar segui-lo e ser-lhe fiel. E toda a vida cristã, para aqueles que procuram ser fiéis a este chamamento, é essa longa espera, essa longa caminhada daquelas virgens fiéis e prudentes, que a parábola do Evangelho nos aponta simbolicamente, e que aguentam – em todas as vicissitudes, em todas as dificuldades, porventura em todas as trevas –, a sua luz acesa à espera que venha o seu Senhor. Até àquele dia – como dizia a primeira leitura do Profeta – em que então, num face a face, serão enxugadas todas as lágrimas, anuladas todas as dores, cumuladas todas as tristezas. E o Profeta não se refere apenas às dores físicas e humanas, que sabemos serem inerentes ao próprio existir humano. Refere-se também às tribulações da fé. Porque esta caminhada de fé é tantas vezes uma caminhada sofrida, experimentada pela dúvida, pela tentação, pela busca. E, sabemos pela história da irmã Lúcia – ela própria o testemunhou nas suas Memórias –, nem ela foi dispensada desse tributo à dor, à obscuridade, à busca aflita da luz de Deus.

Logo numa das primeiras aparições – talvez na segunda, falo de memória –, Lúcia, em nome dos três, pergunta a Nossa Senhora: "E Vocemecê quem é, e o que quer de nós?"

Esta pergunta que dirige a Nossa Senhora, exprime o grito ansioso de todos os crentes, tantas vezes dirigido ao nosso Deus, a Jesus Cristo, a quem entregámos a vida, na profundidade da nossa fé: "E tu quem és, Senhor, e o que queres de mim?" É uma pergunta que tem sempre uma resposta, uma resposta que se vai aprofundando, que se vai radicalizando, que se vai porventura iluminando até àquele dia – que neste momento Lúcia já conhece – em que a resposta será dada definitivamente.

A uma vocação corresponde normalmente uma missão. Deus chama-nos e confia em nós, Deus chama-nos e envia-nos. E na maneira como Lúcia narra nas suas Memórias as aparições de Nossa Senhora, na sua simplicidade de criança, é tão claro que as crianças recebem aquela visita inesperada do Céu, como uma missão, como algo que o Senhor tinha para lhes pedir a elas. Uma missão que tem a ver com a missão da Igreja, que tem a ver com aquele mistério que atravessa a história dos homens, que é um projecto de bondade e de amor transformador para todos quantos se quiserem abrir a ela. Uma missão que tem em comum a própria intuição do Evangelho: "Arrependei-vos e acreditai!" Uma missão que cada um deles exerce à sua maneira.

Um dia, Lúcia perguntou a Nossa Senhora se o Francisco e a Jacinta iam para o Céu. E Nossa Senhora disse-lhes que sim, que os viria buscar muito brevemente para o Céu, mas que a ela lhe pedia que ficasse mais algum tempo, dando-lhe a entender que a sua missão não tinha acabado.

Há uma parte desta missão específica da irmã Lúcia que conhecemos: ela foi a porta-voz, a mensageira das revelações. Francisco era um contemplativo, só gostava de estar calado a adorar o Senhor. Jacinta, na sua emotividade de criança, ficava de tal maneira comovida e possuída pelo que via e ouvia, mas não dizia nada: ofereceu-se. São lindas, as poucas palavras que lhe conhecemos, já em Lisboa, no Hospital da Estefânia, onde entrega a sua vida. Lúcia é sempre quem fala com Nossa Senhora.

Hoje, na liturgia, lemos um texto do Livro do Êxodo, em que Moisés diz a Deus, quando este o envia para enfrentar o Faraó: "Mas eu não sou bom falador. Eu não sei falar." E Deus diz-lhe: "Tu vais e Aarão falará por ti. A missão é tua, mas Aarão falará." Lúcia é aquela que fala, que comunica e que tem de tal maneira isto a peito, como missão, que comunica incansavelmente. Espero que muito brevemente possamos ter acesso, através de publicações bem preparadas para o povo de Deus, a esse manancial imenso de doutrina espiritual na linha da mensagem de Fátima que esta mulher tão simples, mas tão grande de coração, escreveu. Foi uma missão incansável. É uma parte da sua missão que levou para o Céu, no seu coração. Porque a mensagem de Fátima é um desafio à penitência, à conversão e à contemplação. Não foi por acaso que mudou de Ordem Religiosa e foi para o Carmelo. Penso que na última parte da sua vida, assumiu claramente a oração como missão.

Estamos comovidos porque a irmã Lúcia é a irmã Lúcia. Com ela viva, todos os acontecimentos de Fátima eram nossos contemporâneos. A sua morte marca uma fronteira. A partir deste momento, Fátima é um grande Santuário, uma grande mensagem, uma grande tradição espiritual que recebemos deles, que recebemos de gerações e gerações de peregrinos, penitentes e orantes, que tomaram a sério, contra tudo e contra todos, a simplicidade de uma mensagem. Estamos comovidos não tanto porque ela morreu. Estamos comovidos porque hoje, entre Fátima e o Céu, uma nova ponte se estabeleceu.

Termino esta homilia como comecei: a morte de Lúcia comoveu-nos e sensibilizou-nos. Pessoalmente, fui particularmente tocado pelo volume das reacções e mensagens que inesperadamente surgiram de todos os quadrantes. Queria aqui agradecer, em nome da Igreja, a todos aqueles, pessoas e instituições, que me fizeram chegar mensagens escritas, tiveram gestos e tomaram decisões, fizeram declarações em público, manifestaram, cada um à sua maneira, mas todos com grande respeito, que sentiram na morte desta mulher qualquer coisa que tocava Portugal.

E quando uma comunidade nacional é capaz de reconhecer na simplicidade de uma religiosa discreta, mas na grandeza de uma espiritualidade vivida, um símbolo que fala a todos, este é certamente, para nós, um sinal de esperança. Lúcia, hoje junto de Deus, certamente terá perguntado pela última vez a Nossa Senhora: "E Vocemecê o que quer?" Oxalá ela lhe pergunte, não tanto acerca dela, mas que lhe diga: "Mas Vocemecê o que quer deste Portugal, desta terra de Santa Maria?"


Coimbra, 15 de Fevereiro de 2005


† JOSÉ, Cardeal-Patriarca

Sem comentários: