«Somos todos chamados à santidade»
Por Teresa Maria Martins de Carvalho
Esta declaração do Papa João Paulo II, extraída da doutrina do Concílio do Vaticano II, é por ele constantemente repetida, não só por palavras mas também por gestos demonstrativos da ideia que exprime, como são as inúmeras beatificações e canonizações do seu pontificado. Centenas, parece. De todo o género: padres e madres fundadores, místicos, leigos, jovens, velhos e criancinhas (os pastorinhos de Fátima), pobres e ricos, com algumas estreias absolutas, como a beatificação de um cigano e de um casal...
Mais um diferente, este último. A imprensa portuguesa assinalou o facto em poucas e escondidas linhas: no domingo passado o Papa beatificou mais uns tantos fiéis entre os quais se contava Carlos de Habsburgo, o último imperador austro-hungaro. Foi tudo.
Grandes parangonas, extensas reportagens fotográficas, com todo o Gotha em Roma. Lá estavam os duques de Bragança, parentes do imperador pela imperatriz Zita. Isto noutras imprensas, claro. Dois dias depois o jornal Público, que é a minha referência noticiosa e onde li as linhas modestas noticiando o acontecido, voltou a dar notícias em prosa da casa, 20 linhas numa pequena coluna, alvitrando que, segundo zum-zuns, tal beatificação era um truque do turismo madeirense (o imperador beatificado viveu em exílio, na Madeira, os dois últimos anos da sua vida e está sepultado na Senhora do Monte) que assim chamava mais turistas à ilha, desta vez turismo religioso. Só que, dizem, os milagres por ele realizados eram irrisórios e ninguém tem especial devoção pelo defunto Imperador. Sem mais.
Fiquei indignada. Qualquer jornal que se preze, diante deste acontecimento, fazia uma reportagem decente: quem era este Carlos, que foi Imperador no meio da I Grande Guerra, o que fez, o que lhe aconteceu. Nada. A instrução dos nossos jornalistas é muito curta. Não são capazes de melhorar o noticiário, a não ser aproveitar a deixa e, em poucas linhas, dar machadadas no Papa e na Igreja Católica. E, incidentalmente no governo da Madeira... Não sei o que se passou em outros jornais. Digam-me.
Nos nossos dias, será assim de somenos um imperador santo?
* * *
TRANSCREVEMOS UM ELUCIDATIVO ARTIGO publicado na revista 30 dias, nº 6, 2003 -
"Carlos de Habsburgo imperador da Áustria e rei da Hungria. O último imperador católico" por Paolo Mattei:
Foram reconhecidas as virtudes heróicas de Carlos de Habsburgo imperador da Áustria e rei da Hungria. Reinou nos anos da Primeira Grande Guerra, “o massacre inútil” que Carlos procurou deter sem sucesso. E que levaria ao ocaso definitivo do que restava do Sacrum Imperium
É um dia de primavera de 1922 em Funchal, na ilha da Madeira. Na catedral de Nossa Senhora do Monte, 30 mil pessoas assistem ao funeral de um rei de trinta e quatro anos. O homem, que foi imperador em meio aos primeiros destroços fumegantes do século XX, morreu pobre e exilado nesta ilha, nos braços de sua mulher, a imperatriz, em 1 de abril desse ano. A multidão que se aglomera dentro e fora da igreja e a maior parte dos habitantes da ilha o consideram um santo. Seu nome é Carlos, Carlos I, imperador da Áustria e rei da Hungria. Nas últimas horas, perguntava brincando aos médicos que tentavam em vão curar sua grave pneumonia: "Comment allez-vous? Moi je vais bien!".
O hóspede ilustre da ilha tem o rosto sereno, e as pessoas vão até lá para cumprimentar pela uma última vez o homem que durante cinco meses deu conforto a suas vidas com a sua presença. O bispo de Funchal dirá a um padre austríaco, algum tempo depois: "Nenhuma missão concorreu tão eficazmente para reavivar a fé na minha diocese quanto o exemplo dado por seu imperador em sua enfermidade e em sua morte".
No último mês de abril, oitenta e um anos depois daquele dia de primavera, foram reconhecidas suas "virtudes heróicas", primeiro passo no caminho para a beatificação.
Na noite anterior à sua morte, Carlos sussurrara à mulher: "Toda a minha aspiração é conhecer sempre, o mais claramente possível e em todas as coisas, a vontade de Deus, e segui-la, e da maneira mais perfeita". Era a aspiração que o havia acompanhado durante todos os dias de sua vida.
A carreira de um imperador
Nascido em Persenbeug, às margens do rio Danúbio, na Baixa Áustria, em 17 de agosto de 1887, Carlos era o primogênito do arquiduque da Áustria, Otão Francisco - sobrinho de sua alteza imperial e real Francisco José -, e da arquiduquesa Maria Josefa, que nasceu princesa e duquesa da Saxônia. Como todo rebento de sua estirpe, foi conduzido a aprender as várias línguas faladas no Império, a estudar música, a cursar o ginásio e o colegial na abadia beneditina dos "Schotten", em Viena, e a formar-se em Ciências Jurídicas na universidade de Praga. Em 1911, desposou Zita, dos Bourbon de Parma. O matrimônio foi abençoado pelo papa Pio X, o qual, em audiência privada a Zita, preconizou o futuro de seu consorte como imperador e revelou a ela que as virtudes cristãs de Carlos seriam um exemplo para todos os povos. Do casamento nasceram 8 filhos, o último dos quais veio à luz depois da morte de Carlos.
A carreira militar começou em 1903 e terminou em 1916, quando subiu ao trono. Carlos se tornara príncipe herdeiro quando morreu seu tio, Francisco Ferdinando, cujo homicídio, estopim da Grande Guerra, consumou-se em 28 de junho de 1914. Pio X, logo depois do assassinato do arquiduque em Sarajevo, enviou uma carta a Carlos por intermédio de um alto funcionário vaticano, na qual lhe rogava que alertasse Francisco José sobre o perigo de uma guerra que traria enorme desventura à Áustria e a toda a Europa. Mas o conteúdo da carta veio a ser conhecido por aqueles que lutavam pelo início da guerra, e o funcionário vaticano foi detido na fronteira da Itália. Carlos só recebeu a carta muito tempo depois, em pleno conflito, quando já era tarde demais para procurar afastá-lo.
Dois anos depois do início das hostilidades, quando morreu o tio-avô Francisco José, Carlos se tornou imperador com o nome de Carlos I: era 21 de novembro de 1916. Em 30 de dezembro, na igreja de Santo Estêvão, catedral de Budapeste, foi coroado rei apostólico da Hungria, com o nome de Carlos IV: a monarquia dual austro-húngara formara-se em 1867, quando, com o reconhecimento da autonomia húngara, os territórios do Império foram divididos em dois blocos: a Cisleithania, sob administração austríaca, e a Transleithania, sob administração húngara. As Constituições, os governos e os primeiros-ministros eram distintos, mas as duas partes conservavam em comum o imperador - imperador da Áustria e rei da Hungria - e os ministérios das Relações Exteriores, da Fazenda e da Guerra.
Carlos herdava uma potência em crise e em declínio: a Áustria-Hungria já sofria com a expansão da Alemanha e as derrotas sofridas nos lados da Itália ao longo das guerras de independência, e agora via seus territórios balcânicos também ameaçados. Além de tudo, depois das primeiras batalhas vitoriosas, as tropas imperiais estavam arrasadas. Se, no que diz respeito ao início do conflito, é verdade o que anota o historiador Victor Tapié (Monarchie et peuples du Danube. Paris, Fayard, 1969), quando afirma que "o exército austro-húngaro bateu-se com uma energia constante e que, qualquer que fosse sua origem étnica, o soldado, atado por um sentimento de fidelidade pessoal e bem refletido, deu provas de resistência e coragem", é também verdade que, já no final de 1915, o cansaço e as perdas de vidas humanas quase prevaleciam. Metade do exército regular - mal equipado, tecnologicamente atrasado, insuficientemente financiado - foi eliminada já nos combates de 1914. Os destinos da guerra para os austro-húngaros dependiam inteiramente da força dos aliados alemães.
Carlos chegou ao front em 10 de setembro de 1914, na Galícia, e pediu logo para visitar, em nome do imperador, as tropas na linha de frente. Ia encontrar os soldados em todos os setores das vários frentes, condecorava os oficiais por seus méritos e fornecia a Francisco José relatórios não falseados da situação militar, sem lhe esconder que o conflito, com o passar dos meses, ia-se transformando numa carnificina sem precedentes. A infantaria era enviada ao suicídio, seguindo a tática louca dos ataques frontais com baionetas. Carlos assumiu o comando da 20 Corporação em 1916, ano dos massacres de Verdum, do Somme e das nove primeiras batalhas do Isonzo; ano também do aparecimento dos tanques de guerra ingleses nos campos de batalha. Sua ação foi decisiva para derrotar a Romênia e deter o avanço dos russos comandados pelo general Brusilov na frente oriental. Empreendeu a ofensiva na frente italiana que culminou com a vitória de Folgaria. Mas as ruínas e o extermínio desses combates vitoriosos eram insuportáveis para ele. Suas tentativas de iniciar negociações de paz começaram bem no momento em que a Dupla Aliança austro-alemã conseguia as conquistas mais significativas. Falando ao ministro das Relações Exteriores austríaco, conde Berchtold, disse-lhe não entender como era possível continuar "a não fazer ainda nenhum programa pela paz. Quer vençamos, com a graça de Deus, quer sejamos derrotados, é preciso de qualquer forma fixar esse programa com os diversos aliados. Eu não posso e não quero ser pessimista". Desde então, para encontrar uma solução pacífica para aquela guerra trágica, o futuro imperador não fez outra coisa senão percorrer todas as estradas diplomáticas possíveis. Ao mesmo tempo que continuava a percorrer também as estradas de verdade, que se abriam com dificuldade entre as trincheiras da linha de frente.
Na Positio super virtutibus estão reunidos os testemunhos sobre pequenos episódios que aconteceram naqueles anos. Neles se lê que Carlos "gastou completamente, rezando, o rosário de contas de ouro que sempre carregava consigo, de modo que depois a jovem arquiduquesa teve de providenciar um novo". Conta-se o dia em que salvou a vida de um subordinado que estava para se afogar no Isonzo. Registra-se o depoimento do capelão Rodolfo Spitzl, que, na estrada que vai do vale do Ástico a Arsiero, durante uma marcha forçada da tropa, viu o futuro imperador cuidar pessoalmente de um soldado que, por suas feridas, não conseguia mais caminhar: "Eu não acredito", disse então Carlos ao oficial médico, "que o senhor ou eu conseguiríamos marchar com os pés desse jeito tanto tempo quanto este homem. Providencie o mais rápido possível que ele vá convalescer num hospital". Padre Spitzl conta como o viu tranqüilizado quando soube "que no regimento se dava pouca importância às ‘celebrações religiosas nas paradas’, e que se procurava em primeiro lugar providenciar ao menos uma vez por mês que cada subdivisão - mesmo nas áreas de combate - tivesse a oportunidade de assistir à santa missa e receber os santos sacramentos". São esses pequenos episódios que dão também uma idéia da fé de Carlos. E do caráter firme com que se fazia obedecer. Por exemplo, quando se opôs ao uso de gases letais contra o inimigo, contestando a ordem do chefe de Estado Maior alemão Hans von Seeckt, que queria empregá-los na frente oriental. Ou quando lutou contra a utilização dos submarinos para atacar as cidades inimigas na orla do Adriático, a começar por Veneza.
Da "guerra de forças" à "guerra metafísica"
Como imperador, Carlos assumiu automaticamente o comando supremo de todas as tropas. Uma de suas primeiras decisões foi transferir a sede do comando supremo, de Teschen para Baden, perto de Viena, de forma que tivesse mais facilidade para exercer os encargos políticos e militares. Mas acabou passando mais dias no front que em Baden, pois participava da vida das tropas, indo constantemente à linha de frente para inspeções. Recebia relatórios diretos de todos os comandantes, que conhecia pessoalmente. Ficou muitas vezes à mercê das shrapnel, as balas de canhão explosivas que liberavam uma chuva de estilhaços nos campos de batalha. E entre 1916 e 1918 foi ainda mais obstinado na tentativa de fazer cessar a hostilidade, tanto que os alemães o acusaram de covardia, pois só reconheciam a "paz vitoriosa". Para pôr em prática sua política, Carlos nomeou novos ministros, escolhendo-os entre aqueles que não haviam tramado para favorecer a guerra.
O imperador também sabia que a paz social de seu país era condição fundamental e necessária para se alcançar a paz mundial. Por isso, instituiu um Ministério para a Assistência Social e um para a Saúde Pública, aboliu a prática dos duelos e concedeu uma anistia geral em 1917. Os nacionalismos que inflamavam o Reino também punham em risco a paz interna, e afastavam a internacional. Foi por isso que Carlos projetou um Estado com base federativa, segundo o propósito de Francisco Ferdinando. François Fejtó, no livro Requiem pour un empire défunt (Paris, Le Seuil, 1993), explica que, seguindo o que Francisco Ferdinando imaginara, Carlos "queria eliminar da Constituição húngara tudo o que pudesse impedir eventuais concessões aos sérvios e tentativas de mudar a estrutura dual do império. Propunha-s_ também a dar satisfações aos autonomistas tchecos, que, como outros eslavos e, em geral, todas as forças pacifistas da monarquia - particularmente os socialistas -, tinham-se encorajado com os sinais precursores da revolução russa de fevereiro de 1917". Mas a perspectiva federativa, que trazia consigo o sufrágio universal, não podia agradar à aristocracia que ocupava o poder na Hungria. Leo Valiani, no livro La dissoluzione dell’Austria-Ungheria (Milão, Il Saggiatore, 1966), explica que as "reformas democráticas, que deveriam salvar a monarquia de se esfacelar, no caso de uma paz que viesse de alguma forma da derrota militar, eram alvo a priori da oposição tanto da maioria do Parlamento húngaro quanto dos partidos austro-alemães do Reichsrat, com exceção apenas dos social-democratas".
Na esfera internacional, Carlos via nas relações com a França a possibilidade mais concreta para chegar a um acordo pela paz. Assim, escreveu ao presidente da República francesa, Poincaré, em 24 de março de 1917, numa carta secreta: "Fico particularmente feliz por constatar que, mesmo nos encontrando atualmente em campos opostos, nenhuma diferença fundamental de perspectiva ou aspiração divide meu Império da França. Creio ter o direito de esperar que a viva simpatia que alimento pela França, sustentada pelo afeto que ela inspira em toda a monarquia, impeça para sempre a volta a um estado de guerra, pelo que emprego toda a minha responsabilidade pessoal". Graças a essa proximidade, em 1917 o príncipe Sixto de Bourbon - cunhado de Carlos, descendente dos reis franceses, condecorado por Poincaré com a cruz do mérito na guerra - começou, com Carlos, uma negociação diplomática entre a França e o Império. Negociação que deveria ser mantida em segredo, para não despertar suspeitas entre os alemães. Carlos, naturalmente, desejava conquistar a paz ao lado da Alemanha, mas não excluía a possibilidade de que, não aceitando o Kaiser uma eventual saída positiva do conflito (cuja condicio sine qua non era a restituição da Alsácia-Lorena à França e a libertação dos países invadidos), a Áustria se desligasse da Aliança e assinasse a paz separadamente. Essas negociações fracassaram, não só pela dificuldade de se chegar a um acordo definitivo sobre os territórios reivindicados pela Itália, mas sobretudo também pela postura irresponsável do ministro das Relações Exteriores austríaco, Ottokar Czernin. O historiador Gordon Brook-Shepherd, no livro The Last Habsburg (Nova York, Weybright & Talley, 1968), vê na nomeação do ministro das Relações Exteriores um erro fundamental cometido por Carlos, pois Czernin nunca buscou a paz, e era um amigo incondicional dos alemães, que desejavam que a guerra só terminasse depois de sua vitória total. Czernin, em 1918, fez com que o primeiro-ministro francês, Clemenceau, revelasse ao mundo a negociação secreta do Imperador pela paz separada, pondo em risco, assim, a vida de Carlos e a segurança da Áustria perante a Alemanha. Carlos foi obrigado a recuar publicamente. Era a vitória daqueles que, explica Fejtó, "estavam obcecados por uma vitória total [...]. Ao longo da guerra - que emperrou várias vezes, em impasses dos quais tradicionalmente se sairia por meio de negociações ou compromissos - apresentou-se uma idéia inédita: a da vitória total, a todo custo. Já não se tratava mais de obrigar o inimigo a ceder, a recuar, mas de afligir-lhe chagas incuráveis; não mais de humilhá-lo, mas de destruí-lo. Esse conceito da vitória total condenava a priori ao fracasso qualquer tentativa razoável de pôr fim, mediante compromissos, a um massacre inútil. A guerra mudou não apenas ‘quantitativamente’, mas também, para empregar o conceito hegeliano, qualitativamente. A idéia não nasceu apenas da exasperação dos chefes militares diante do fracasso ou da paralisia de batalhas que consideravam decisivas. Nem provinha dos gabinetes dos diplomatas, das chancelarias. Parecia elevar-se das profundezas populares. Tinha um tom quase místico. Era ideológica. Consistia em demonizar o inimigo, fazer da guerra de forças uma guerra metafísica, uma luta entre o Bem e o Mal, uma cruzada". A vitória dessa idéia foi lembrada por Augusto Del Noce numa anotação inédita: "A recusa da cumplicidade com o mal coincidiu, para mim, com a ‘fuga sem fim’ diante do que me parecia ser o mal, a progressiva destruição do que restava do Sacrum Imperium. A fidelidade ao compromisso de agosto de 1916, antes que a escola começasse para mim".
Anos depois, refletindo sobre tudo isso, o socialista radical francês Anatole France disse a respeito de Carlos: "Foi o único homem decente que apareceu durante a guerra, num posto de dirigente; mas não foi ouvido. Desejou sinceramente a paz, e por isso foi desprezado pelo mundo inteiro. Foi uma esplêndida oportunidade que se perdeu".
As tropas austro-húngaras avançam pelo vale do Isonzo
O choro pelo massacre inútil
A guerra continuava e o imperador Carlos I vivia em meio às ruínas e à morte nas trincheiras, ao lado dos soldados de todas as nações envolvidas. Eram os anos das "noites violentadas", como as vivia o então soldado Giuseppe Ungaretti, do lado italiano das barricadas, num sono entrecortado: "O ar é crivado/ como uma renda/ pelas balas/ dos homens/ retraídos/ nas trincheiras/ como caracóis em suas cascas". Em agosto de 1917, ao final da décima primeira batalha do Isonzo, Schumann, fotógrafo da corte, viu _arlos chorar ante os cadáveres carbonizados e despedaçados, e o ouviu sussurrar: "Nenhum outro homem pode responder sobre isso diante de Deus. Eu o farei, o quanto antes". Na Áustria - e por quase toda a Europa - o alimento era escasso; a pobreza, a fome e a morte eram as verdadeiras vencedoras daquele conflito. Carlos sabia disso, e reduziu ao mínimo o nível de vida em sua casa, onde ele e sua família se alimentavam com rações de guerra. O Imperador recusou dar pão branco ao comando supremo de Baden, fazendo com que fosse distribuído entre os doentes e feridos; ante a confusão de seus oficiais, ele mesmo comia tranqüilamente seu pão preto. Organizou cozinhas de guerra, empregou os cavalos da corte para o fornecimento de carvão em Viena, doou e distribuiu até mais do que podia.
Enquanto isso, o aliado alemão pensava em recorrer a armas mais destrutivas. Durante um almoço, o grande almirante Alfred von Tirpitz quis convencê-lo a usar aeroplanos e submarinos para bombardear as cidades italianas; Carlos recusou-se e deixou a mesa. Além do desastre que se via dia após dia, a inteligência política também lhe sugeria que evitasse os bombardeios. Ele sabia que isso aceleraria a entrada dos Estados Unidos na guerra, o que resultaria na ruína para seu país. Mas os alemães não lhe deram ouvidos. Em fevereiro de 1917, o kaiser Guilherme II ordenou a guerra submarina sem nenhuma tolerância, mandando afundar qualquer navio que transitasse nas rotas atlânticas. Foi o grande erro dos Impérios Centrais, pois Wilson resolveu agir e entrou na guerra ao lado da Entente, tomando, na prática, o lugar da Rússia, que, em outubro do mesmo ano, seria agitada pela revolução, e em dezembro assinaria com a Alemanha o armistício de Brest-Litovsk. Apesar de todas as tentativas de Carlos, a paz não foi alcançada pelas armas da diplomacia, mas pelas do fogo.
O ano de 1918 foi o da capitulação. No Piave, no Marne, em Amiens, em Vitório-Vêneto e por toda parte, o destino da Alemanha e do Império Austro-Húngaro estava determinado. Wilson enunciou seus "14 pontos" para a manutenção da paz mundial. A Romênia firmou o tratado de paz com a Entente, a Bulgária se rendeu, a Tchecoslováquia e a Polônia declararam independência, a Turquia subscreveu o armistício e o Kaiser abdicou, permitindo o nascimento, no ano seguinte, da frágil República de Weimar.
Enquanto os eventos se precipitavam, Carlos se viu isolado quando as ruas de Viena foram se enchendo de agitadores enlouquecidos. Em 11 de novembro, assinou um manifesto em que declarava: "Reconheço a priori o que a Áustria alemã decidir em sua opção pela futura forma de Estado. O povo assumiu o governo por meio de seus representantes. Renuncio a qualquer participação no governo do Estado. Ao mesmo tempo, exonero de seu mandato meu governo austríaco". Confiando em políticos que lhe garantiam a manutenção da dinastia se ele se manifestasse publicamente, deixando ao povo a liberdade de decidir a futura estrutura do Estado, Carlos assinou aquela declaração consciente de que não era uma abdicação, que jamais subscreveria, para não faltar ao juramento que fizera diante de Deus ao se tornar imperador. Sua intenção era retirar-se momentaneamente das funções públicas, para atender à insistência com que lhe pediam isso os homens de governo e para evitar um inútil derramamento de sangue. Mas, em 12 de novembro, foi proclamada a queda da monarquia e, na mesma noite, Carlos viu-se obrigado a deixar Viena rumo a seu castelo de caça em Eckarstau, a vinte quilômetros da capital. Enquanto isso, a Hungria estava em plena revolta e o primeiro ministro Tisza era assassinado pelos revolucionários.
Na Postio super virtutibus se lê que, "apesar de toda essa situação, o Servo de Deus continuou todas as noites a rezar o Te Deum, e mandou que o cantassem em 31 de dezembro de 1918 em agradecimento por tudo o que trouxera o ano que terminava. Propuseram-lhe deixar de lado a comemoração, mas ele respondeu que aquele fora um ano de muitas graças, pelas quais tinha de agradecer". E a todos que lhe perguntavam, perplexos, quais tinham sido essas graças, Carlos respondia: "Se este ano foi duro, poderia ter sido bem mais trágico para todos nós. Se uma pessoa está disposta a pegar da mão de Deus o que é bom, é preciso que também esteja disposta a aceitar, com gratidão, tudo o que pode ser difícil e doloroso. Além do mais, este foi o ano do tão suspirado fim da guerra, e pelo bem da paz vale qualquer sacrifício e qualquer renúncia". Carlos teve de renunciar também a sua permanência na Áustria, onde a situação se tornava cada vez mais perigosa para sua vida e a de seus familiares. Em 23 de março de 1919, a família imperial deixou o país rumo à Suíça e, em 3 de abril, o governo austríaco sancionava oficialmente o exílio do soberano e o confisco de seus bens. Foi da Suíça que Carlos tentou duas vezes voltar à Hungria e restaurar o Reino. Por insistência de numerosos homens políticos, militares e simples cidadãos, mas, sobretudo, do papa Bento XV, o qual, segundo o testemunho do último chefe de gabinete do imperador, "expressou-se repetidamente acerca da necessidade de uma restauração na Hungria", Carlos empreendeu duas tentativas fracassadas de voltar ao trono, em março e outubro de 1921. Depois disso, nada mais lhe restou senão o caminho do exílio. Ele repetia sempre aos que ficaram a seu lado naquele momento: "Mesmo que tudo tenha fracassado, temos de agradecer a Deus, pois seus caminhos não são os nossos caminhos".
"Jesus"
"Em 19 de novembro de 1921, festa de Santa Isabel, aparece no horizonte a ilha do exílio [...]. O imperador distingue as duas torres de uma igreja. ‘Que saudade aquela igreja me dá!’, exclama. ‘Como me lembra as igrejas de meu país! Certamente é dedicada a Nossa Senhora: vamos logo visitá-la’. Era Nossa Senhora do Monte, a igreja em que poucos meses depois viria a ser sepultado": é com essas palavras que Giuseppe Della Torre (Carlo d’Austria. Una testimonianza cristiana. Milão, 1972) conta a chegada de Carlos à ilha da Madeira. Carlos viveria mais cinco meses, e durante sua permanência o povo se deu conta de que aquele homem tinha algo mais importante que o próprio título imperial: "Carlos teve a oportunidade de se aproximar de muitas pessoas; de iniciar com todos um relacionamento humano, imediato; de contagiar a todos com o brilho de sua personalidade, rica em sentimentos e atenções pelo próximo. Foi assim que a simpatia inicial, cheia de compaixão, que os habitantes da ilha demonstraram por ele e sua esposa transformou-se bem cedo num entusiasmo manifesto, que incendiou o espírito de todos".
Quase todos os cidadãos de Funchal estão lá, nesse dia de primavera de 1922. Querem cumprimentar uma vez mais aquele seu amigo que se despedira deles e da vida terrena pronunciando como última palavra um simples nome: "Jesus".
Nesse dia, em Funchal e por toda parte, não há mais impérios ou imperadores para representar o povo cristão na Europa e no mundo. Aquele homem, aquele imperador de trinta e quatro anos, comovera os habitantes da Madeira por algo que nem tinha a ver com seu título real e com o poder que esse título significara. Talvez fosse o afeto com o qual pronunciara aquele simples nome que os havia impressionado naqueles cinco meses. Talvez tenha sido essa mesma coisa que comoveu todos aqueles que o conheceram, na corte ou nas dolorosas trincheiras do início do século. Talvez a única defesa para o povo cristão fosse realmente o afeto por aquele simples nome tantas vezes pronunciado e implorado pelo último imperador.
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