segunda-feira, julho 17, 2006

Testemunhos para a História

por João Mattos e Silva

Apareceram nas livrarias, quase simultaneamente, dois livros que falam de personagens da História portuguesa do século XX e que, cada um à sua maneira, nos ajudam a compreender pessoas, situações, episódios, mitos da história da República e dos monárquicos, após a revolução de 1910: uma biografia, "Um Herói Português - Henrique de Paiva Couceiro", de Vasco Pulido Valente e " Salazar e a Rainha", de Fernando Amaro Monteiro.

Na biografia de Paiva Couceiro o enfoque está na figura, hoje de difícil compreensão, do " Comandante", como militar nas guerras de ocupação colonial dos fins do século XIX e inícios de XX e como Governador Geral de Angola mas, acima de tudo, como Paladino da Monarquia derrubada no 5 de Outubro. E é neste papel de último defensor do regime que fez Portugal durante oitocentos anos, que Paiva Couceiro se agiganta e é lembrado pela História. Ao traçar o seu percurso, traça-se, ainda que em largas pinceladas, a história da República até 1944 e, para a compreensão das incursões armadas, a história dos movimentos monárquicos, na opinião de vários autores que a este período se dedicaram e que comungo, os grandes causadores do insucesso das acções restauracionistas, a par do carácter voluntarista e quixotesco do "condestável". De realçar nesta biografia a crueza - e mesmo rudeza terminológica - com que Pulido Valente avalia a I República e os dirigentes republicanos e como acaba com certos mitos da historiografia republicana, como a dos "heróicos defensores de Chaves".

Fernando Amaro Monteiro, centrado na relação de Salazar com a Rainha D. Amélia, através da correspondência trocada, acaba por escrever uma autêntica história dos movimentos monárquicos sob a I República e as duas primeiras décadas da II, enfatizando as suas divisões, as suas pusilanimidades e, nalguns casos, as autênticas traições ao ideal que diziam defender. E traça esplêndidos retratos: de D. Carlos, da Rainha D. Amélia, de João Franco, de vários outros políticos que apressaram (fica-se, mais uma vez, na dúvida, se por incapacidade se por traição) o fim da Monarquia, dos dirigentes monárquicos, Lugares-Tenentes de D. Manuel II e de D. Duarte Nuno de Bragança e de outros, do último rei e de Salazar (para além dos dois primeiros chefes do Estado da II República, Carmona e Craveiro Lopes).
O grande mérito deste trabalho de Fernando Amaro Monteiro, monárquico de toda uma vida de 72 anos com envolvimento na acção política, é desfazer o grande mito que alguns ainda cultivam contra todas as evidências, de que Salazar era monárquico e de que, certamente numa manhã de nevoeiro, haveria de restaurar a Monarquia. E a de que se não o fez foi por culpa ou omissão dos monárquicos. Podia tê-la restaurado com D. Manuel, por quem tinha grande apreço, como poderia tê-lo feito com D. Duarte Nuno de quem só sabia o que lhe interessava, ou preparar para o futuro a restauração, como fez o Caudilho de Espanha, Francisco Franco. Por formação tradicionalista, Salazar era deferente com os Reis e com os Príncipes, sobretudo porque esses reis e príncipes, uns porque viveram o fim catastrófico do fim do constitucionalismo monárquico e o regicídio hediondo e, ainda que de fora, a balbúrdia republicana, os outros porque formados numa concepção de monarquia tradicionalista, viram nele o garante da ordem, paz social e da recuperação económica do País e o admiraram até à abdicação do que representavam.

A história da Causa Monárquica que Amaro Monteiro traça é o espelho dessa abdicação, da submissão de uma grande parte dos monárquicos ao regime republicano do Estado Novo. Salazar, com os seus gestos respeitadores da tradição, a deferência – mas também em certas ocasiões a vileza do dono do poder absoluto – para com os Príncipes, manipulou os monárquicos, dispôs a seu bel prazer da Causa Monárquica e dos seus dirigentes, incorporou-os no seu Estado Novo. Terá dito um dia, que a sua vocação seria a de "primeiro-ministro de um rei absoluto" e sabia que nem D. Manuel II nem D. Duarte Nuno – que em 1958 foi impedido de assinar uma Proclamação pelo Lugar-Tenente indigitado por Salazar, em que se assumia, porque Herdeiro dos Reis de Portugal, como garante das "liberdades públicas perante a força, a autoridade e as largas funções que caracterizam o Estado Moderno" - tinham o perfil de um D. José e que ele dificilmente seria com eles um Marquês de Pombal. Para o estatismo de Salazar, que era a própria encarnação do Estado cujos Chefes fazia e desfazia a seu bel prazer – e deixou tantos herdeiros nesta III República… – era inconcebível que alguém que representava a Nação histórica pudesse estar acima dele e para além do Estado.

Estes livros, tão diferentes nas pessoas e no pensamento político dos seus autores, mais do que meras páginas de uma história que precisa ser conhecida, devem fazer pensar os monárquicos e todos os portugueses de boa fé, amantes da " lusitana antiga liberdade".


In Diário Digital, em 14 de Julho de 2006

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