CARTA DO CANADÁ
por Fernanda Leitão
Nos anos 60 do século passado foi-me enviado, com pedido de fazer tudo o que pudesse para ajudar, um rapaz de Angola, acabado de saír da prisão do Tarrafal que queria passar-se para o estrangeiro. Tivemos uma longa conversa e pude, a certa altura, verificar com os meus próprios olhos as suas costas cortadas a chicote. Cicatrizes umas a seguir às outras. Era um jovem mestiço de bom aspecto, muito limpo e alinhado. Arranjei, com amigos, maneira de o esconder e o passar para Marrocos a partir do Algarve. Na hora da largada, deu-me um livro que, de vez em quando, relia: “O Último Justo”.
Depois disso nunca mais o vi. Nessa altura eu ia por vezes a países da Europa, onde em geral havia um substancial número de exilados portugueses, e perguntava por ele. Ninguém o conhecia nem sabia dele. Em 1975, com Angola já no braseiro que conduziu à guerra civil, uma jornalista, que tinha feito parte do grupo que o passou para o estrangeiro, telefonou-me. Tinha acabado de chegar de Luanda e viu o desaparecido. Era o chefe da polícia política e responsável por prisões arbitrárias, torturas, espancamentos e outras distorsões de quem perdeu o respeito por tudo e todos. Estava a fazer aos outros aquilo que a PIDE lhe tinha feito, nas prisões de Angola e do Tarrafal. Acabou abatido a tiro dentro do seu gabinete. Grandes alçapões tem a alma humana!
Por essa altura eu já estava farta de saber que um sujeito que põe bombas e usa armas de morte, alegando razões políticas, só é terrorista o tempo necessário e suficiente para chegar a ministro, presidente de República ou diplomata.
Chamaram terroristas aos actuais governantes e autoridades das antigas colónias portuguesas. E também a várias personalidades do actual regime português. Em suma, a palavra terrorista já por essa altura andava desvalorizada, estafada, gasta. Só voltou a ter importância quando rebentaram com as torres de New York, porque os ataques bombistas em França, Itália, Espanha, Alemanha e outros países, incluindo da Ásia e América do Sul, nunca tiveram importância aos olhos dos Estados Unidos e de Israel. Israel que, diga-se de passagem, foi um alfobre de terroristas, não foi só o Ben Gurion, houve muitos mais.
Hoje, 30 de Julho de 2006, o mundo estremeceu com a matança de Canaã, a sul do Líbano, em que perderam a vida 67 civis, dos quais 37 eram crianças e os restantes quase todos mulheres. Mais um bombardeio cego e cruel, como aqueles que têm destruído aquele país, que já vai em mil mortos e um milhão de desalojados. Em três semanas! Notícias fiáveis de jornalistas que ali aguentam a pé firme em nome da verdade e da informação, e aí se devem destacar os repórteres portugueses que lá estão, dizem-nos da destruição sem tréguas, da matança sem hesitações. A Igreja que Sofre dá-nos a saber que alguns conventos têm sido atingidos rudemente. Os refugiados que chegam aos milhares ao Canadá contam histórias medonhas de crueldade. Os israelitas estão a fazer aos povos vizinhos aquilo que o monstro alemão fez com eles. Grandes alçapões tem a alma humana!
Israel nega tudo. Diz que só entrou no Líbano para acertar contas com o Hezbollah e para resgatar um soldado raptado. Bush e Blair, apontados a dedo como municiadores de Israel, negam a pés juntos tal estatuto. Condoleeza Rice, sempre com aquele sorriso de plástico, vai apresentando condolências e prometendo o cessar fogo para daqui uns dias, isto é, quando Israel lhe comunicar que já não há mais nada para bombardear. O Hezbollah, que também não é flor que se cheire, riposta com mísseis cada vez mais potentes, o que dá a perceber que o destino último será Telavive, ao mesmo tempo que oferece, no corpo a corpo, uma resistência com que os israelitas não contavam. A águia americana está de olho no Irão e na Síria, pronta a invadir em nome da democracia mal cheirosa, essa que cheira a petróleo. Por aqui, no Norte da América, receia-se que estejamos a caminhar para a Terceira Guerra Mundial. Todos o dizem.
Há culpas de lado a lado, sabe-se. Mas os Estados Unidos da América, useiros e vezeiros em semear tempestades, encontraram a alma gémea em Israel. A mesma teimosia cruel, o mesmo sectarismo bronco, a mesma falta de respeito pelos seres humanos que não tenham nascido sob as suas bandeiras. Não é assim que se esvazia o radicalismo islâmico e se incentiva o islamismo moderado e inteligente. Apenas o Desenvolvimento, a Justiça, o Respeito e o Diálogo podem conseguir aquilo que as armas nunca conseguirão.
1 comentário:
Será por certo toda a guerra condenável e muito mais lamentável a perda de vidas civis, o que nos dias correm se achou por bem designar como danos colaterais.
No entanto parece-me que é injusto atacar quem precisamente neste caso é o país que rodeado por quem o considera seu inimigo, o ataca constantemente...
Se me é permitida a sugestão, e porque se tratam apenas de factos, leia o post intitulado de Israel vs Líbano em:
http://davidonweb.blogspot.com/
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