quinta-feira, julho 13, 2006

A única lição

por Luciano Amaral*


Há quem diga que a II Guerra Mundial começou há 70 anos atrás, em 18 de Julho de 1936, com a revolta de certos militares espanhóis (de que viria a destacar-se o general Francisco Franco) contra o Governo dito da "Frente Popular" da II República.

A revolta deu origem a um dos mais dramáticos episódios do século XX, a Guerra Civil de Espanha, e quando se diz que inaugurou a II Guerra Mundial pensa-se no facto de nela se terem enfrentado alguns dos mais emblemáticos actores do conflito mundial, a Alemanha hitleriana e a Itália mussoliniana, do lado revoltoso, e a URSS estalinista, do lado do Governo. Para além de que, uma vez terminado o enfrentamento espanhol, em 1939, logo começou o mundial.

Há quem no entanto tome esta comparação por superficial. Lembram que a II Guerra Mundial foi lançada por Hitler depois de se ter entendido com Estaline no Pacto Germano- -Soviético. E lembram que da Guerra Civil espanhola estiveram muito conspicuamente ausentes os países democráticos (França, Inglaterra e EUA), os quais viriam, depois, a ser os primeiros a entrar em guerra com a Alemanha e a Itália. A Guerra Civil deveria então ser antes vista como mais uma materialização do conflito revolução vs. contra-revolução inaugurado pela revolução soviética de 1917, que atravessou o século XX e constituiu o seu fio condutor, resultando na impossibilidade de mediação entre extremos radicais.

Há no entanto um sentido mais profundo no qual os dois episódios se ligam. Em ambos ocorreu uma associação espúria entre democracia e comunismo. Assim como os aliados democráticos na II Guerra Mundial acabaram por juntar-se à URSS estalinista em nome da democracia, também na Guerra Civil de Espanha o lado dito republicano, mas na verdade cada vez mais dominado pelo PCE e a facção leninista do PSOE, acabou por ser propagandisticamente identificado com a democracia. A ambiguidade da II Guerra Mundial resultou na prática entrega de cerca de metade da Europa à tirania comunista. A ambiguidade na Guerra Civil de Espanha resultou na grande mentira histórica segundo a qual a vitória de Franco teria significado a derrota da democracia.

A verdade é que a II República e a Guerra Civil são episódios com algo de semelhante ao da República de Weimar: um regime de matriz democrática e liberal revelou-se incapaz de se defender perante os extremos, o fascista, de um lado, e o comunista, do outro. Não há dúvidas sobre os procedimentos democráticos da II República. Mas também não há dúvidas de que, dominada pela esquerda republicana e o PSOE (um partido muito diferente do PSOE de hoje), a República viu esses procedimentos sistematicamente atraiçoados pela esquerda: quando a Confederação Espanhola das Direitas Autónomas (CEDA) ganhou as eleições de 1933, a esquerda inicialmente conseguiu impedi-la de governar. E quando a CEDA finalmente entrou no Governo (embora em pastas secundárias), uma coligação do PSOE com anarco-sindicalistas, comunistas e independentistas catalães e bascos juntou-se para desencadear uma revolta em 1934. Acaso esta revolta (de que resultariam cerca de um milhar de mortos) tivesse triunfado, ter-se-ia instaurado em Espanha uma ditadura de esquerda.

O cálculo do horror gratuito está muito bem distribuído pelos dois lados durante a Guerra Civil de 1936-39. Do lado republicano, aos cerca de sete mil padres assassinados juntam-se os milhares de presos, torturados e assassinados nas famosas tchekas (segundo o modelo estalinista, como o nome indica), não faltando mesmo episódios emblemáticos, como a execução sumária de 2500 presos em Paracuellos de Jarama (diz-se que às ordens do ainda vivo Santiago Carrillo) ou a morte dos escritores Pedro Muñoz Seca e Ramiro de Maetzu. Do lado dito nacionalista, contam-se também os milhares de execuções sumárias, os campos de concentração e mortes famosas como a de Federico Garcia Lorca. Lugar de destaque merece a Guerra Civil dentro da guerra civil que George Orwell celebrizou, na qual PCE, PSOE e esquerda republicana suprimiram brutalmente os seus supostos aliados anarco-sindicalistas e da esquerda radical (o POUM), depreciativamente intitulada de trotskista.

A vitória e a longa sobrevivência de Franco não nos deve fazer esquecer quem estava do outro lado. A vitória de Franco não foi a derrota da democracia, no sentido em que a derrota de Franco seria a vitória da democracia. A Guerra Civil de Espanha é um daqueles episódios que relembram a dimensão fundamentalmente trágica da História: nem sempre é possível escolher um dos lados e ficar de bem com a nossa consciência. A esquerda e a direita que dela procuram tirar lições edificantes para o seu lado respectivo, como ainda hoje tristemente acontece em Espanha ou no Parlamento Europeu, deviam antes tirar lições edificantes acerca daquilo que cada uma fez então. E depois, procurar não repetir.

*Professor universitário


In Diário de Notícias, 13-07-2006.

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