CARTA DO CANADÁ
por Fernanda Leitão
Na Pátria julga-se que os emigrantes, abanando a árvore das patacas como modo de vida, estão irremediavelmente longe da realidade nacional pelo que será fácil aos políticos, que aterram nas comunidades como os milhafres quando é caso disso, obterem adesão e votos em troca de promessas eleiçoeiras. Os portugueses que não saíram do país têm um retrato falseado do que de facto pensam e sentem os emigrantes, graças a diplomatas relapsos, a deputados pela emigração mentirosos ou omissos por conveniência, devidamente ajudados por uns quantos correspondentes da LUSA que, embora pagos pelo dinheiro que os contribuintes são obrigados a esportular para manter essa agência noticiosa estadual, tratam de servir apenas, e só, os partidos a quem devem o tacho. Retrato falseado que, por inércia, a comunicação social veicula, sem curar de saber o que realmente se passa. A formidável abstenção eleitoral na emigração seria um cartão vermelho incontornável, a exigir urgente e aprofundado estudo, se Portugal tivesse a dirigir os seus destinos políticos sérios e decentes. Mas não é, infelizmente, o caso. Portugal está a asfixiar num novelo de faz conta, tecido e mantido pela camarilha partidocrática e pelos aproveitadores de todos os regimes.
Tem-se como assente, na Pátria, que o emigrante é um pouca-coisa que só lê a BOLA. De facto, esse é o jornal nacional mais distribuído nas comunidades emigrantes. Mas não se diz, por ignorância ou má fé, que o emigrante lê, e avidamente, a imprensa regional – aquela que lhe diz concretamente o que se passa na sua região e no país. Ao que deve acrescentar-se a internet, sobretudo na área dos blogs, o telefonema semanal para a família e amigos, e também a RTP-Internacional que lhe mostra o estendal abominável da coisa pública porque as imagens falam por si, nem é preciso dar-se atenção à conversa para se perceber que tudo aquilo é uma peixeirada em pátio de cantigas. Politicamente falando, para os emigrantes o longe faz-se perto. Anda de olhos abertos e não vai na arenga das delegações partidárias locais nem nas postas de prosa corrompida e medíocre de jornais que vivem na babugem do subsídio ou do encosto que o deputado da emigração prometeu.
A proclamada parranice dos emigrantes foi chão que deu uvas porque, para além do mais, vai a Portugal uma vez por ano. E de ano para ano, vem mais desencantado, mais zangado. Zangadíssimo, nos últimos anos que, no dizer castiço do homem da rua, têm sido de pouca vergonha político-partidária. Ao que é prudente acrescentar as mentiras que o escarmentam, bacoradas por uns que prometem mundos e fundos aos antigos combatentes, sabendo que o país está em péssima situação financeira, por outros que se julgam apetrechados a botar sentença sobre o ensino da língua portuguesa no estrangeiro, pelos que garantem a melhoria de serviços consulares, pelos que fazem ouvidos de mercador ao abandono jurídico daqueles emigrantes que são vigarizados em compras de imóveis ou em maus serviços bancários, etc., etc, etc. Um muro de lamentações maior que o de Jerusalém.
Há momentos em que os emigrantes se identificam com António Nobre, quando no SÓ exclamou amargurado: “amigos, que desgraça nascer em Portugal”. Mas são mais os momentos em que se indignam, se revoltam, porque esperam o regresso de Portugal a si mesmo, à sua vocação centenária de modéstia e honradez, de frugalidade e verdade.
Por isso mesmo ainda têm uma centelha de esperança quando um ministro que não pode ser acusado de corrupto ou de incompetente, no caso o dos Negócios Estrangeiros, promete limpar consulados e embaixadas dos parasitas que os enxameiam por via da colocação política. Será um pequeno passo, mas é um passo no bom sentido. Como podemos ficar indiferentes à nomeação de um biólogo para o cargo de conselheiro social, que sabe tanto dessa área como eu de lagares de azeite? É o caso, nos dias que correm, em Otava, onde passa férias pagas pelo erário público um funcionário do Ministério do Ambiente, apenas e só porque é amigalhaço do secretário de estado das Comunidades e foi membro do gabinete de Sócrates quando o actual primeiro ministro passou por essa pasta. E dum outro que lê livros sem parar perante uma turma de adultos, autoproclamado professor de Português graças ao laxismo do Instituto Camões. Ou de outro, que desde a África do Sul só participa em banquetes e jantaradas, sem que tenha feito nada pelo ensino da língua portuguesa, mas está pago como tal por todos nós. Enquando estes parasitas refocilam, num fartar vilanagem, quem é competente, honesto e cumpridor, é saneado disfarçadamente, como quem não quer a coisa, por uns pedreiras de serviço à partidocracia reles que está a desgraçar o país.
Eleições? As autárquicas, vistas deste lado, puseram o cidadão comum sem fé nenhuma na justiça portuguesa, essa que faz greve porque lhe buliram nas regalias, mas a quem devemos os Isaltinos, os Ferreiras Torres, as Fátimas de Felgueiras e companhia, essa que nunca ressarciu e dignificou os emigrantes roubados pela Caixa Económica Faialense mas inocentou quem participou da quadrilha. As presidenciais, trazem ao menos a concordância de todos nós com a propaganda que grita que Mário Soares é o espelho do regime. Nada mais verdadeiro. Ao menos isso. Estamos fartos de saber que assim é, mas sempre é bom que outros o digam. O PS pode limpar as mãos à parede. Pensa-se que ganhará Cavaco Silva, mas sobretudo porque se demarcou dum PSD atirado à sarjeta pelos Barrosos, os Santanas Lopes, os Cesários, as Manuelas Aguiares, essa pandilha toda. O tempo dirá.
Nos liberi sumus; Rex noster liber est, manus nostrae nos liberverunt... [Nós somos livres; nosso Rei é livre, nossas mãos nos libertaram...]
quinta-feira, outubro 27, 2005
terça-feira, outubro 25, 2005
OS PILARES DA DEMOCRACIA
Apresentação de «Os Pilares da Democracia» por José Manuel Quintas
Mário Saraiva, Os Pilares da Democracia, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1949 (2ª edição, Livro Aberto, 2005).
Este livro tem em fundo a Velha Europa em agonia militar. Enquanto ia sendo escrito, entre 1944 e 1948, deu-se o avanço soviético na Polónia e na Crimeia, na Finlândia, Estónia, Roménia e Hungria; os aliados entraram em Roma, desembarcaram na Normandia, e tomaram Paris e Bruxelas; deu-se o encontro de Ialta entre Estaline, Churchill e Roosevelt; os soviéticos tomaram Berlim e os americanos Nuremberga; os alemães renderam-se incondicionalmente em Reims e os japoneses na Baia de Tóquio, depois dos americanos lançarem bombas atómicas sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki. Em 1949, quando por fim surgiu a 1ª edição de Os Pilares da Democracia, a Europa ocidental estava já sob a protecção de uns EUA que executavam o «Plano Marshall» e aceitavam integrar a Aliança Atlântica. Foi por essa altura que Mário Saraiva (1910-1998) ousou perguntar, no prólogo: "Será a Democracia o regime do próximo futuro?"
A sua resposta revela que não se deixou perturbar pela agonia europeia, pela ameaça atómica ou pelos planos de Marshall: também no fim da guerra de 1914-18, o tratado de Versalhes assinalara "a vitória das democracias", e, no entanto…
Mas eis o cerne do pensamento de Mário Saraiva a este respeito:
"uma coisa é a vitória pela força das armas e outra o triunfo das ideias. Estas não se esmagam com o peso da metralha, antes se reduzem à impotência pela razão serena do argumento".
"Se o desfecho de uma luta ideológica pode marcar um rumo à eterna massa ondulante dos oportunistas e dos aderentes, o que é verdade é que ele não altera em nada a posição primacial da contenda das ideias, pois não é a sorte de uma guerra que põe ou tira razões a uma doutrina política".
Na sua juventude, Mário Saraiva recusara-se a alinhar com a República autocrática de Oliveira Salazar, seguindo o exemplo dos mestres integralistas lusitanos - Hipólito Raposo, Luís de Almeida Braga, Alberto de Monsaraz, Pequito Rebelo, Rolão Preto. Recusava-se agora também a alinhar com a "massa ondulante dos oportunistas e aderentes" da novel Democracia. Imperturbável face ao desfecho da guerra, confiando no poder das conclusões da inteligência, entendia que aquela hora era propícia para reafirmar os princípios do ideário monárquico integralista que bem cedo adoptara.
Mas, e no seu ponto de vista, assistia-se a uma verdadeira vitória da Democracia?
As interrogativas que alinhou dissipam qualquer dúvida acerca do sentido da sua resposta:
"E não vimos nós Mussolini e Hitler reivindicarem para os seus regimes o título de democráticos, invocando razões nas maiorias que os levaram ao poder e nos plebiscitos que os apoiaram?"
"E não vemos nós também Estaline, o ditador totalitário de todas as Rússias, denominar de democracia autêntica o seu sistema soviético?"
"E o que diremos do "fascista" Péron, vitorioso democraticamente na República Argentina?"
Ao aludir assim a algumas das mais recentes prostituições da palavra "Democracia", Mário Saraiva iluminava perante o leitor um velho jogo de simulações e de ludíbrios: no século XX, tanto eram democratas os fiéis aos princípios da Revolução Francesa de 1789, como os partidários da Revolução de 1917; e eram-no igualmente os jacobinos totalitários, Hitler e Mussolini.
Mário Saraiva começa na verdade por uma clara identificação do seu objecto, arredando expressamente o presidencialismo dos Estados Unidos da América, as Democracias do Reino Unido e do Norte da Europa ou a Democracia da republicana Suíça. Nas suas palavras, este livro tem por assunto a Democracia "que tem na França a sua terra natal"; a Democracia do monopólio da representação política por intermédio de partidos ideológicos.
Em 1949, Portugal surgia ao lado dos subscritores do Tratado do Atlântico Norte, o "Tratado das Democracias". Deixava Mário Saraiva passar incólume a Democracia de Oliveira Salazar? Obviamente que não. No seu entendimento, a 2ª República não deixou de se inspirar no referido modelo francês, ao menos num ponto crucial: "O partido único é ainda a solução partidária. É um regime de partidos em que um só domina todos os outros".
Ao pensar num regime político que em Portugal viesse substituir o «Estado Novo», todavia, o mais certo, o mais provável, seria voltarmos ao pluripartidarismo experimentado durante a 1ª República e no período final da Monarquia. Não se enganou.
Mário Saraiva diz-nos que tem por objectivo principal revelar a debilidade doutrinária do parlamentarismo. Uma simples olhadela ao índice deste livro, assinalando temas como "Igualdade", "Eleições", "Parlamentos", "Soberania Popular", "Liberdade" e "Política Partidária", revela-nos o propósito de um minucioso exame aos seus argumentos fundamentais, desde o conceito-base da igualdade dos cidadãos até ao corolário da representação por intermédio de partidos ideológicos. Todavia, começando por contrariar a igualdade abstracta do sufrágio universal através da defesa da igualdade concreta dos cidadãos organizados nos corpos intermédios, bem cedo o seu articulado de razões se dirige à apresentação de uma alternativa democrática, assente no sufrágio orgânico e na representação nacional através dos municípios e dos sindicatos.
A sua primeira citação é sintomaticamente retirada da rádio Mensagem do Natal de 1944 pelo Papa Pio XII, na qual se denuncia o Estado deixado ao exclusivo arbítrio e à nivelação mecânica das massas. Em reforço das suas ideias, Mário Saraiva não deixa de recorrer também aos clássicos do anti-parlamentarismo português - Alexandre Herculano, Antero de Quental, Oliveira Martins, Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão, Fialho de Almeida. Cita-os extensa e abundantemente, em páginas de antologia demolidora, mas sem pessimismo ou desencanto, antes com o intuito de servir a solução que preconiza: ao regime da centralização demo-liberal por intermédio de partidos ideológicos opõe o regime descentralizador dos municípios e sindicatos. Fazendo jus ao pensamento integralista, também para ele o regime perfeito será o «regime misto» de São Tomás de Aquino, no qual seja conjugada a Democracia, a Aristocracia e a Monarquia.
Mas este livro de Mário Saraiva apresenta um especial interesse por outra razão: o de nos fornecer alguns traços salientes de uma heterodoxa interpretação do processo histórico de implantação do Parlamentarismo em Portugal. O assunto é lançado ao tratar a "soberania popular" e vale bem a pena resumir as suas linhas de força.
Os adeptos do demo-liberalismo – partidocratas ou não – dizem que são pelo "governo do povo pelo povo". Uma pergunta se impõe: "pode, ao mesmo tempo, o Povo ser sujeito e objecto de soberania?".
A dificuldade lógica é superada, dizendo-se que, afinal, o povo não governa, mas escolhe quem governa segundo a sua vontade. Mas será verdade que os políticos governam segundo a vontade do povo? Talvez assim seja em democracia directa, mas sê-lo-á nos regimes de partidos?
Em regime de partidos, o povo é governado por uma minoria segundo a indicação das maiorias. Não é a maioria que governa. Quem governa é o grupo de políticos directores do partido ou partidos vencedores.
"Ora – argumenta Mário Saraiva - os partidos não se formam de baixo para cima, mas ao contrário, como empresa de um grupo que institui o partido, o qual fabrica uma maioria e depois governa em nome da maioria que fabricou. Aí está precisamente a burla. Proclama-se que o povo é soberano quando na verdade, por intermédio do voto, a soberania é entregue a outrém. O regime de partidos outra coisa não é que a centralização do poder nas mãos de uns poucos, os poucos que pertencem aos directórios partidários."
Chegado a este ponto, Mário Saraiva começa então a expor a história portuguesa da conquista do poder pelos profissionais da política, que não foi uma invenção ou imposição dos chamados "republicanos", antes uma "invenção de letrados para proveito próprio e de quem lhes adiantou o capital".
Tal como noutros lugares, os candidatos a profissionais da política começaram por se fazer passar por aliados e protectores do povo, seduzindo-o com a malícia de fórmulas vagas mas sonoras – "liberdade", "soberania popular". Uma importante lição importa no entanto retirar do estudo da nossa década de 30 do século XIX: "O povo deixou-se cair no logro e certos reis (os reis filósofos) também". Isto é, em Portugal, os profissionais da política instalaram-se sob o manto da Instituição Real.
Ao ler os capítulos finais deste livro, vem-nos forçosamente à memória o célebre grupo financeiro criado por Juan Mendizabal para servir o imperador do Brasil contra a Monarquia legítima de D. Miguel. Como esquecer o papel desempenhado por esse grupo financeiro, pouco depois apoiado pela Inglaterra, pela França e pela Espanha da Quádrupla Aliança? Mário Saraiva conclui serenamente: "a partidocracia foi implantada entre nós à força de ideias e de armas estrangeiras".
Mas há uma data e um decreto que Mário Saraiva não deixa de referir, retirando lição. Foi em 7 de Maio de 1834 que se dissolveram os órgãos do Estado que davam ao braço popular um efectiva e forte interferência na governação pública. Foi nessa data que se acabou com os lugares de Juiz e Procuradores do Povo, a Casa dos Vinte e Quatro e os Grémios dos diferentes Ofícios. O Ministro que assim decretava, pouco depois – lembra também Mário Saraiva – acolheu "com viva satisfação" a fundação da Associação Mercantil Lisbonense. Ou seja: proibiam-se as organizações operárias mas aprovavam-se com viva satisfação as organizações capitalistas. Não admira. Também em França, no período da Revolução, foi em nome da Liberdade que se suprimiram as Corporações do Trabalho (Lei «Le Chapelier») e, sempre em nome da Liberdade, que se decretou a pena de morte para aqueles que as pretendessem reconstituir.
Tal como em França, também entre nós as primeiras vítimas da classe política foram as organizações operárias. Mas a segunda vítima haveria de ser a pessoa do Rei e, pouco depois, a própria Instituição Real. Para que a apropriação do Estado pelos profissionais da política fosse completa - o povo fora já expropriado dos seus órgãos privativos, dos seus municípios e das suas corporações de ofícios – bastava apear o Rei e colocar no seu lugar um Presidente. Foi o que se fez em 5 de Outubro de 1910. O último escolho, a última dificuldade a vencer pela classe política na via do domínio total do Estado, haveria de ser o próprio Rei.
- Não estão aí uns sugestivos pilares onde assentar uma revisão do processo histórico que introduziu o Parlamentarismo em Portugal?
Mário Saraiva, Os Pilares da Democracia, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1949 (2ª edição, Livro Aberto, 2005).
Este livro tem em fundo a Velha Europa em agonia militar. Enquanto ia sendo escrito, entre 1944 e 1948, deu-se o avanço soviético na Polónia e na Crimeia, na Finlândia, Estónia, Roménia e Hungria; os aliados entraram em Roma, desembarcaram na Normandia, e tomaram Paris e Bruxelas; deu-se o encontro de Ialta entre Estaline, Churchill e Roosevelt; os soviéticos tomaram Berlim e os americanos Nuremberga; os alemães renderam-se incondicionalmente em Reims e os japoneses na Baia de Tóquio, depois dos americanos lançarem bombas atómicas sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki. Em 1949, quando por fim surgiu a 1ª edição de Os Pilares da Democracia, a Europa ocidental estava já sob a protecção de uns EUA que executavam o «Plano Marshall» e aceitavam integrar a Aliança Atlântica. Foi por essa altura que Mário Saraiva (1910-1998) ousou perguntar, no prólogo: "Será a Democracia o regime do próximo futuro?"
A sua resposta revela que não se deixou perturbar pela agonia europeia, pela ameaça atómica ou pelos planos de Marshall: também no fim da guerra de 1914-18, o tratado de Versalhes assinalara "a vitória das democracias", e, no entanto…
Mas eis o cerne do pensamento de Mário Saraiva a este respeito:
"uma coisa é a vitória pela força das armas e outra o triunfo das ideias. Estas não se esmagam com o peso da metralha, antes se reduzem à impotência pela razão serena do argumento".
"Se o desfecho de uma luta ideológica pode marcar um rumo à eterna massa ondulante dos oportunistas e dos aderentes, o que é verdade é que ele não altera em nada a posição primacial da contenda das ideias, pois não é a sorte de uma guerra que põe ou tira razões a uma doutrina política".
Na sua juventude, Mário Saraiva recusara-se a alinhar com a República autocrática de Oliveira Salazar, seguindo o exemplo dos mestres integralistas lusitanos - Hipólito Raposo, Luís de Almeida Braga, Alberto de Monsaraz, Pequito Rebelo, Rolão Preto. Recusava-se agora também a alinhar com a "massa ondulante dos oportunistas e aderentes" da novel Democracia. Imperturbável face ao desfecho da guerra, confiando no poder das conclusões da inteligência, entendia que aquela hora era propícia para reafirmar os princípios do ideário monárquico integralista que bem cedo adoptara.
Mas, e no seu ponto de vista, assistia-se a uma verdadeira vitória da Democracia?
As interrogativas que alinhou dissipam qualquer dúvida acerca do sentido da sua resposta:
"E não vimos nós Mussolini e Hitler reivindicarem para os seus regimes o título de democráticos, invocando razões nas maiorias que os levaram ao poder e nos plebiscitos que os apoiaram?"
"E não vemos nós também Estaline, o ditador totalitário de todas as Rússias, denominar de democracia autêntica o seu sistema soviético?"
"E o que diremos do "fascista" Péron, vitorioso democraticamente na República Argentina?"
Ao aludir assim a algumas das mais recentes prostituições da palavra "Democracia", Mário Saraiva iluminava perante o leitor um velho jogo de simulações e de ludíbrios: no século XX, tanto eram democratas os fiéis aos princípios da Revolução Francesa de 1789, como os partidários da Revolução de 1917; e eram-no igualmente os jacobinos totalitários, Hitler e Mussolini.
Mário Saraiva começa na verdade por uma clara identificação do seu objecto, arredando expressamente o presidencialismo dos Estados Unidos da América, as Democracias do Reino Unido e do Norte da Europa ou a Democracia da republicana Suíça. Nas suas palavras, este livro tem por assunto a Democracia "que tem na França a sua terra natal"; a Democracia do monopólio da representação política por intermédio de partidos ideológicos.
Em 1949, Portugal surgia ao lado dos subscritores do Tratado do Atlântico Norte, o "Tratado das Democracias". Deixava Mário Saraiva passar incólume a Democracia de Oliveira Salazar? Obviamente que não. No seu entendimento, a 2ª República não deixou de se inspirar no referido modelo francês, ao menos num ponto crucial: "O partido único é ainda a solução partidária. É um regime de partidos em que um só domina todos os outros".
Ao pensar num regime político que em Portugal viesse substituir o «Estado Novo», todavia, o mais certo, o mais provável, seria voltarmos ao pluripartidarismo experimentado durante a 1ª República e no período final da Monarquia. Não se enganou.
Mário Saraiva diz-nos que tem por objectivo principal revelar a debilidade doutrinária do parlamentarismo. Uma simples olhadela ao índice deste livro, assinalando temas como "Igualdade", "Eleições", "Parlamentos", "Soberania Popular", "Liberdade" e "Política Partidária", revela-nos o propósito de um minucioso exame aos seus argumentos fundamentais, desde o conceito-base da igualdade dos cidadãos até ao corolário da representação por intermédio de partidos ideológicos. Todavia, começando por contrariar a igualdade abstracta do sufrágio universal através da defesa da igualdade concreta dos cidadãos organizados nos corpos intermédios, bem cedo o seu articulado de razões se dirige à apresentação de uma alternativa democrática, assente no sufrágio orgânico e na representação nacional através dos municípios e dos sindicatos.
A sua primeira citação é sintomaticamente retirada da rádio Mensagem do Natal de 1944 pelo Papa Pio XII, na qual se denuncia o Estado deixado ao exclusivo arbítrio e à nivelação mecânica das massas. Em reforço das suas ideias, Mário Saraiva não deixa de recorrer também aos clássicos do anti-parlamentarismo português - Alexandre Herculano, Antero de Quental, Oliveira Martins, Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão, Fialho de Almeida. Cita-os extensa e abundantemente, em páginas de antologia demolidora, mas sem pessimismo ou desencanto, antes com o intuito de servir a solução que preconiza: ao regime da centralização demo-liberal por intermédio de partidos ideológicos opõe o regime descentralizador dos municípios e sindicatos. Fazendo jus ao pensamento integralista, também para ele o regime perfeito será o «regime misto» de São Tomás de Aquino, no qual seja conjugada a Democracia, a Aristocracia e a Monarquia.
Mas este livro de Mário Saraiva apresenta um especial interesse por outra razão: o de nos fornecer alguns traços salientes de uma heterodoxa interpretação do processo histórico de implantação do Parlamentarismo em Portugal. O assunto é lançado ao tratar a "soberania popular" e vale bem a pena resumir as suas linhas de força.
Os adeptos do demo-liberalismo – partidocratas ou não – dizem que são pelo "governo do povo pelo povo". Uma pergunta se impõe: "pode, ao mesmo tempo, o Povo ser sujeito e objecto de soberania?".
A dificuldade lógica é superada, dizendo-se que, afinal, o povo não governa, mas escolhe quem governa segundo a sua vontade. Mas será verdade que os políticos governam segundo a vontade do povo? Talvez assim seja em democracia directa, mas sê-lo-á nos regimes de partidos?
Em regime de partidos, o povo é governado por uma minoria segundo a indicação das maiorias. Não é a maioria que governa. Quem governa é o grupo de políticos directores do partido ou partidos vencedores.
"Ora – argumenta Mário Saraiva - os partidos não se formam de baixo para cima, mas ao contrário, como empresa de um grupo que institui o partido, o qual fabrica uma maioria e depois governa em nome da maioria que fabricou. Aí está precisamente a burla. Proclama-se que o povo é soberano quando na verdade, por intermédio do voto, a soberania é entregue a outrém. O regime de partidos outra coisa não é que a centralização do poder nas mãos de uns poucos, os poucos que pertencem aos directórios partidários."
Chegado a este ponto, Mário Saraiva começa então a expor a história portuguesa da conquista do poder pelos profissionais da política, que não foi uma invenção ou imposição dos chamados "republicanos", antes uma "invenção de letrados para proveito próprio e de quem lhes adiantou o capital".
Tal como noutros lugares, os candidatos a profissionais da política começaram por se fazer passar por aliados e protectores do povo, seduzindo-o com a malícia de fórmulas vagas mas sonoras – "liberdade", "soberania popular". Uma importante lição importa no entanto retirar do estudo da nossa década de 30 do século XIX: "O povo deixou-se cair no logro e certos reis (os reis filósofos) também". Isto é, em Portugal, os profissionais da política instalaram-se sob o manto da Instituição Real.
Ao ler os capítulos finais deste livro, vem-nos forçosamente à memória o célebre grupo financeiro criado por Juan Mendizabal para servir o imperador do Brasil contra a Monarquia legítima de D. Miguel. Como esquecer o papel desempenhado por esse grupo financeiro, pouco depois apoiado pela Inglaterra, pela França e pela Espanha da Quádrupla Aliança? Mário Saraiva conclui serenamente: "a partidocracia foi implantada entre nós à força de ideias e de armas estrangeiras".
Mas há uma data e um decreto que Mário Saraiva não deixa de referir, retirando lição. Foi em 7 de Maio de 1834 que se dissolveram os órgãos do Estado que davam ao braço popular um efectiva e forte interferência na governação pública. Foi nessa data que se acabou com os lugares de Juiz e Procuradores do Povo, a Casa dos Vinte e Quatro e os Grémios dos diferentes Ofícios. O Ministro que assim decretava, pouco depois – lembra também Mário Saraiva – acolheu "com viva satisfação" a fundação da Associação Mercantil Lisbonense. Ou seja: proibiam-se as organizações operárias mas aprovavam-se com viva satisfação as organizações capitalistas. Não admira. Também em França, no período da Revolução, foi em nome da Liberdade que se suprimiram as Corporações do Trabalho (Lei «Le Chapelier») e, sempre em nome da Liberdade, que se decretou a pena de morte para aqueles que as pretendessem reconstituir.
Tal como em França, também entre nós as primeiras vítimas da classe política foram as organizações operárias. Mas a segunda vítima haveria de ser a pessoa do Rei e, pouco depois, a própria Instituição Real. Para que a apropriação do Estado pelos profissionais da política fosse completa - o povo fora já expropriado dos seus órgãos privativos, dos seus municípios e das suas corporações de ofícios – bastava apear o Rei e colocar no seu lugar um Presidente. Foi o que se fez em 5 de Outubro de 1910. O último escolho, a última dificuldade a vencer pela classe política na via do domínio total do Estado, haveria de ser o próprio Rei.
- Não estão aí uns sugestivos pilares onde assentar uma revisão do processo histórico que introduziu o Parlamentarismo em Portugal?
sexta-feira, outubro 21, 2005
O cristão no mundo de hoje
por Henrique Barrilaro Ruas
No Princípio, para além de todos os começos, antes do encadear dos fenómenos pelo vínculo da causalidade, era a imutável Inteligência, donde toda a Inteligibilidade dimanaria.
O Mistério não se abriu como um teorema: revelou-se como um Ser. O Verbo não era um princípio abstracto: estava em Deus. E, no seio de Deus, era Deus Ele próprio.
Desde todo o sempre, na permanência do Ser sem mistura de não-ser, o Logos era Inteligência, sede das ideias, e Pessoa, sede e fonte de valores[ii]. Essa fonte ia correr abundantemente...
Nunca nenhum homem compreenderá o tremendo mistério do acto criador. O Mistério não é um teorema: é uma realidade. «Todas as coisas foram criadas por Ele» - assim nos fala o Autor inspirado, como quem conta um caso que se passou. E efectivamente há aqui a passagem brusca das realidades substanciais: «No princípio era o Verbo» - para as realidades acidentais; do Necessário - para o Contingente; do Absoluto - para o Relativo; da Eternidade - para a História : «Nada daquilo que foi criado foi criado sem Ele». Esta é a história maravilhosa que nos conta S. JOÃO, depois do Génesis. Aí começa a nossa história. O mistério das origens é de si mesmo incompreensível ao homem, por isso que é das origens. O começo absoluto transcende todas as concepções científicas. E, no entanto, só por ele se explicam todas as concepções científicas. Aqui encontramos o gérmen de todas as coisas. Aqui descobrimos o laço causal que une o Criador à criatura. Lembrando que o profundo sentido de Poesia é Criação, digamos que este é o Poema das Origens.
Para saber donde vem o Cristianismo, temos de ler o princípio do 4º Evangelho. S. João, propondo-se contar a vida de Jesus, viu, divinamente inspirado, que devia começar pelo Verbo, que existia antes de todas as coisas. A História do Cristianismo é uma história que começa com o acto criador. Daí todo o seu carácter transcendente e todo o seu carácter imanente. O Cristianismo é a história de Cristo. Mas Cristo é Deus e Homem; é uma Pessoa em que duas naturezas se associam: a divina e a humana. À primeira, chamamos nós sobre-natureza, num critério, é bem de ver, puramente humano, pois guardamos o nome de natureza para aquela só com que nascemos.
Transcendência do Cristianismo: ele é alguma coisa de estranho em relação ao Homem; uma espécie de invasão e de conquista; uma Palavra que subitamente rompe o silêncio; uma espada que rasga a carne bem tratada; um vento impetuoso que varre a face da Terra: um convite subtilmente e instantemente murmurado para um Banquete invisível; um Modelo de perfeição que habita numa luz inacessível; um fermento que entra dentro de nós e se propõe assimilar-nos, transformando-nos.
Imanência do Cristianismo: Nada mais natural ao homem do que ele! Todo o homem nasce religioso. As mais variadas religiões o têm acompanhado, e são tantos os cultos e tantos os deuses quanto é grande a fantasia humana e forte a sugestão da Natureza. O Paganismo decadente dizia aos homens: «Adorai este homem! - é o Imperador». Só o Cristianismo lhe diz: «Adorai este Homem! - é Deus». O Paganismo punha acima do divino Imperador os deuses celestes, e acima destes o Destino. Só o Cristianismo nada sobrepõe ao Homem-Deus. «Todo o homem - segundo a palavra de Aristóteles - deseja naturalmente saber». O Cristianismo vem ao encontro deste desejo, desvendando o Desconhecido, fazendo do mistério - o Dogma.
Um cristão do nosso tempo, Jacques Rivière, pôs em singular relevo este papel gnoseológico do Cristianismo, em páginas de admirável profundeza, das quais saliento uma passagem: «. ..o mistério aparecerá como uma localização do inexplicável, espalhado e latente nas coisas. Mas, em vez de ter uma localização no princípio, como fazem a Ciência e a Filosofia, é uma localização no próprio seio das coisas, nos próprios sítios onde se encontram os pontos obscuros; é a determinação, tão exacta e literal quanto possível, da sua posição. Nada de redução, de escamoteamento por substituição, de deslocamento e de remeter à origem, como a Matemática ensina às outras ciências a fazer. Mas uma condensação que permite simplesmente ver claro ali. O desconhecido fixado: para evitar que ele espalhe o seu carácter vago sobre todo o resto, para que se saiba onde é que está a coisa que não se pode saber como as outras, e para que assim, em vez de lhe ficar a dever somente incerteza, dele provenha o poder explicativo»[iii].
Dá, por outro lado, o Cristianismo, ao conjunto de todas as verdades, um sentido humano, um valor vital, que o mesmo pensador francês expressava nestas sugestivas palavras: «Logo que se consideram em relação e coesão com todo o resto, quer dizer: desde que se mergulham de novo na experiência, eles actuam como um fermento que faz levedar toda a massa. Dão vida a tudo o que nos parecia classificado e finito»[iv]. E todo esse fermento, que dá vida ao que parecia inerte, e transforma e constrói e parece querer fundar um Reino novo, torna-se bem nosso, bem próximo dos corações dos homens, quando ouvimos a palavra do Senhor: «O Reino de Deus está dentro de VÓS».
Imanente quanto ao Homem, o Cristianismo é, pois, uma realidade terrena.
Mas que nada nos faça reduzir à imanência o carácter do Cristianismo. Se é realidade terrena, é porque é realidade entregue aos homens, revelada. Sem a Revelação é impossível compreender o Cristianismo. - «A luz resplandeceu nas trevas». - Há aqui um transpor de abismos insondáveis. Uma descida do Céu à Terra. Homens despertados por um som desconhecido começaram a ouvir vozes celestiais. O fenómeno repetiu-se inúmeras vezes no decorrer de quarenta séculos. Os homens iam registando e transmitindo. Pareciam coisas dispersas... Mas o Céu continuava a falar. Pouco a pouco, aproximando-se umas das outras, as palavras iam formando conjuntos definidos. Era (parafraseando Chesterton) uma espécie de romance da Eternidade, ou, talvez melhor, um Drama em muitos quadros, compreendendo, com o mesmo à-vontade, cenas do Passado, do Presente e do Futuro. E o ponto central que se foi destacando como um núcleo, ou como um fruto que pouco a pouco se vai avolumando, era como uma promessa de casamento. Do fundo das eras longínquas, quebrando todas as resistências, rompendo a condensação das trevas, dissolvendo a camada dos preconceitos e dos vícios, uma estranha promessa era segredada a almas de eleição, e delas ecoava, a ponto de um povo inteiro concentrar nela toda a sua razão de ser, todo o sentido da sua História. Havia a promessa formal duma Aliança perfeita: um dia, tudo quanto fora revelado à cerca do Passado, do Presente e do Futuro, tudo se condensaria numa realidade viva e actuante, num ser sensível ao coração e aos olhos dos homens: toda a Revelação se concretizaria num Homem. Essa era a estranha promessa que o Povo Escolhido foi ouvindo e guardando: a natureza divina e a natureza humana unir-se-iam em consórcio admirável. E o Cântico dos Cânticos pressente, emocionado, a maravilhosa realidade.
Por isso, o Cristianismo é transcendente e imanente: é a entrega de Deus à Humanidade. E o salto brusco, o facto irreversível, o acontecimento que para sempre exclui a hipótese cíclica do Eterno Retorno, é a Revelação, facto central da História, que a ela vai buscar o seu verdadeiro sentido. Se o Tempo é, por si mesmo, a medida do relativo, a marca do imperfeito, a Revelação o sagrou. Deus escolheu um momento, para que, como Luz, resplandecesse nas trevas. Deus entrou na História. Pode-se, desde então, falar de valores cronológicos.
Começou o extraordinário drama da Redenção do Homem, que decaíra da primitiva dignidade, como a Escritura ensina e todas as velhas tradições da Humanidade referem ou postulam. Muito se tem negado nos tempos modernos o grande dogma cristão que, para Pascal, encerrava, juntamente com a existência de Deus, todo o Cristianismo[v]. Hoje, por loucos desvios, novamente é aceite a realidade. O Comunismo, por exemplo, assenta numa concepção pessimista do estado actual do homem, como lucidamente expõe Berdiaev: «...ele contém no seu fundamento a ideia do pecado original. Um pecado original que alastra sobre a História Universal, sobre todas as classes da sociedade, que contamina todas as crenças e todas as ideologias humanas»[vi].
O Homem precisava de redenção. Passados tantos séculos de Cristianismo, o Homem precisa ainda de redenção. O Verbo podia ter-se dirigido ao homem-multidão, à Sociedade, alargando a todos os povos, como tais, o conceito de Povo Escolhido. Mas onde está uma das grandes características do Cristianismo é precisamente no facto de isso não se ter dado: o Verbo dirigiu-se a cada um, ao homem-pessoa. Ora a pessoa define-se, exactamente, por ter em suas mãos a chave do seu destino.
Por mais que filósofos e cientistas digam ao homem, em todos os tons - e, no nosso tempo, com singular teimosia -, que não é livre, ele, mesmo aceitando o esquema mental para cómodo repouso, vive como livre e é como livre que aceita o determinismo.
Foi a um ser capaz de dizer que sim e de dizer que não, a um ser que tem de comum com Deus (como ensina São Boaventura) a liberdade de escolha, que o Verbo Redentor se dirigiu. Não foi pedir ao Imperador de Roma que declarasse passar o seu Império a ser cristão: veio pedir a cada um dos súbditos do Imperador de Roma, aqueles que de rastos o serviam e de joelhos o adoravam, que aceitasse o testemunho do Seu Sangue e bebesse esse Sangue em sinal de Novo e Eterno Testamento.
Desde então, as almas foram ouvindo, ou no esplendor dos palácios, ou na majestade dos templos, ou na miséria dos ergástulos, ou na degradação dos prostíbulos, o mesmo apelo divino. E o drama da Redenção é sempre idêntico, no essencial: Deus a pedir, o homem a aceitar ou a negar. O drama da Redenção é um drama pessoal; passa-se entre personagens; não entre símbolos; não entre potências.
Mas eis que o drama se complica: perscrutando a realidade, não nos encontramos, afinal, com uma cena sempre por igual repetida: o Verbo, como Palavra de Deus, e cada alma isolada. É isto o essencial, o indispensável. Mas há, em regra, homens que intervêm. Logo o Evangelista nos conta: «Houve um homem que foi mandado por Deus, cujo nome era João, o qual veio como testemunha, para dar testemunho da Luz, afim de que, por ele, todos acreditassem.» Foi aquele que a si mesmo se definiu como uma voz, tanto a consciência da sua missão o penetrava. E a voz era esta: «Preparai os caminhos do Senhor.»[vii]
Aqui nos surge a ideia - ou melhor: o facto - de uma propedêutica ao Cristianismo. O facto é este: houve um homem encarregado de preparar a visita do Senhor a outros homens. Seria este um caso acidental? Ou manifestaria uma lei? E esta seria de tipo estatístico, ou de tipo normativo ? Por outras palavras: a propedêutica ao Cristianismo será necessária? E em que sentido se deve fazer?
O problema não é dos puramente especulativos: tem interesse prático, e actual. Um dos seus aspectos é o seguinte: Milhões de homens, dispersos pelo mundo, não contando já com a crise trazida pela guerra, vivem em nível económico inferior ao que a dignidade humana exige. Segundo as palavras claras de Pio XI: «Bem se pode dizer que tais são hoje as condições da vida social e económica, que se torna muito difícil a uma grande multidão de homens ganhar o único necessário que é a salvação eterna»[viii]. De acordo com aquilo de S. Tomás que Leão XIII recorda: o uso dos bens exteriores é reclamado para exercício da virtude.[ix]
Pergunta-se: o Pão deve ir à frente do Evangelho ? ou o Evangelho antes do Pão ? «Pregar Moral a estômagos vazios» será de todo inoperante ? Tanto vale perguntar se, na ordem cronológica, e para a classe proletária, o primado pertence ao económico, ou ao espiritual.
Foi no proletariado do Império romano que o Cristianismo encontrou melhor aceitação. E para isso não foi preciso que os Apóstolos propagassem o espírito de revolta entre os escravos. Pelo contrário : « Servos! sede submissos aos vossos senhores!»[x]. Mas é certo que, por outro lado, desde logo a Igreja nascente se preocupou com melhorar a situação económica dos pobres, encarregando os diáconos de ministrar-Ihes as esmolas recolhidas por toda a parte. Tão elevada era esta função, que, nos primeiros séculos os Bispos de Roma saíam, em geral, da ordem dos diáconos[xi].
No nosso tempo, florescem na Cristandade as admiráveis Conferências de S. Vicente de Paulo, que levam a esmola, não para resolver o problema económico das famílias visitadas, mas como pobre sinal sensível de uma Caridade toda bebida em Deus. A esmola é um símbolo; liturgicamente, diríamos: é um «sacramental».
E as encíclicas sociais constantemente insistem na necessidade de resolver o Problema Económico com espírito de Caridade e palavras de Fé e Esperança.
Ou seja: não parece que se deva falar de primazia de um desses problemas sobre o outro, na ordem cronológica da acção. O bem está na simultaneidade. Seja como for, é este apenas um caso particular na colaboração do homem com o Redentor. E essa colaboração foi manifestamente exigida por Cristo, em todas aquelas palavras, tão claras, tão definidas, que, espalhadas embora pelo Evangelho, constituem o diploma da fundação da Igreja: «lde e ensinai todas as gentes» ; «Apascenta os Meus cordeiros» ; «Aqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados» ; «Fazei isto em memória de Mim.»[xii].
O Homem foi pois associado à Redenção. Eis como o Drama se multiplica, movimentando, numa pujança de incontáveis atitudes, num alvoroço de surpresa alegre e comunicativa, o mundo das almas de boa vontade. Quando a grande Promessa se cumpriu e o Verbo feito carne entrou na cena do Mundo, a Sua presença perturbou os homens: os pastores de Belém foram acordados do seu sono; os Magos percorreram as montanhas e os desertos; Maria e José foram perseguidos; os doutores da Lei sentiram vacilar a sua dialéctica; João cansou o braço de tanto baptizar; os pescadores largaram as redes; o recebedor de impostos abandonou a banca; os mercadores foram expulsos do Templo... E ainda era apenas o princípio, o princípio de uma época em que os homens como que saem dum sonho oriental e começam a agitar-se, a ganhar novo interesse pela vida, a percorrer a Terra... Parecia, já então, que todos exclamavam - uns, com os olhos a brilhar de alegria; outros, a escorrer sombras de revolta: «Vimos o Senhor»![xiii]... Houve tempo em que o Senhor do Mundo passava pelas estradas da Galileia e entrava nas casas de Jerusalém. Então tudo se alvoroçava, como se nascesse um sol novo no horizonte. E esse alvoroço comunicativo, esse gosto tão humano de dar aos vizinhos «a última novidade», era uma forma elementar, rude mas boa, de os homens tomarem parte na Redenção.
Tudo, porém, seria efémero e tumultuoso, se Cristo não tivesse escolhido, dentre a multidão sobressaltada, doze homens para o seguirem mais de perto; se não tivesse prometido (e as Suas palavras são certas como as realidades) que seriam os apóstolos os julgadores do Mundo[xiv]; se não tivesse dito ao rude pescador que se chamou Simão :«Tu és Pedro; e sobre esta pedra edificarei a Minha Igreja»[xv].
É às pessoas que Cristo Se dirige, para as redimir uma por uma. Mas, querendo associar os homens à Sua obra, fez deles uma Sociedade nova. E é na medida em que participam dessa Sociedade, que os homens participam na acção redentora. O poder de remir é um poder sagrado. Ora «Poder Sagrado» é, exactamente, a definição etimológica de «Hierarquia». Daí a Hierarquia Eclesiástica, toda ela repassada da Majestade divina, toda ela a irradiar os esplendores celestes. E todo o homem que queira tomar parte nesta obra por excelência cultural[xvi] que é a difusão dos valores divinos - todo o homem que à missão redentora pense consagrar a vida, tem de sagrá-la, submetendo-se à Hierarquia da Igreja.
Aqui recordo a paixão e o respeito com que Dionísio Areopagita (ou quem lhe tenha usurpado o venerando nome...) se entregou à contemplação da Hierarquia Eclesiástica[xvii]. E, por contraste, dolorosamente considero o desdenhoso à-vontade com que muitos cristãos, nestes dias que vão correndo, encaram a sublime realidade que é, no mundo decaído, expressão divina que Deus empresta para expressão humana.
De certo: a Hierarquia não existe para objecto histórico, arredado da vida; e, hoje, está feito o apelo aos cristãos de boa vontade, para tomarem sobre si, conscientemente, organicamente, o Poder Sagrado que hierarquiza a Igreja. Mas a vasta organização da Acção Católica, correspondendo às profundas necessidades da Sociedade actual, exige, para ser eficaz, uma tomada de consciência, também profunda e também actual (no sentido aristotélico), da dignidade altíssima da Hierarquia, de que dimana. E não se vá confundir a «Acção Católica» com Acção Social ou Acção Cultural dos católicos, mesmo quando a esta presidam os princípios estabelecidos nas Encíclicas papais. Como membros da A. C., o que nos é dado é um mandato expresso da Hierarquia para irmos até onde ela não pode estender, por força dos males modernos, a sua acção apostólica. Mandato é direito que se atribui e é dever que se impõe. Os sucessores dos Apóstolos dizem-nos as mesmas palavras que Cristo lhes dissera: «Ide e ensinai todas as gentes...»[xviii]; «Eu vos envio como a cordeiros para meio de lobos»[xix]. E que vamos ensinar, com a mansidão do cordeiro, a prudência da serpente e a simplicidade da pomba[xx] - «Ide e contai o que vistes: os cegos vêem (...), os pobres são evangelizados»[xxi]. Tratava-se de saber se era o Messias aquele homem que os judeus cercavam, curiosos. Ainda hoje, com sinceridade ou com hipocrisia, é isso o que os homens perguntam uns aos outros. Tudo lhes serve para duvidar. Nada lhes basta para acreditar. A estes tais chamava Bourget «ces grands docteurs», sorrindo do embaraço definitivo de Renan diante de dificuldades filológicas...[xxii].«És tu aquele que há-de vir?»[xxiii]. Cristo não respondeu, como de outras vezes: «Eu o sou»[xxiv]. Respondeu, designando-os testemunhas: «contai o que vistes».
O cristão é uma testemunha. E o mundo moderno precisa de testemunhas. Andam os homens cansados de princípios vagos, de ideias mais ou menos filosóficas, de mitos disformes. O homem moderno precisa de testemunhas: contemos-lhe o que vimos.
Gosto de ler em Jacques Rivière[xxv] esta fórmula expressiva, que aliás deve tomar-se como fórmula que é: os mistérios «são factos, e não ideias». Alargando o conceito, diríamos que o Cristianismo todo consiste em realidades ontológicas, pois as ideias que levanta e defende estão, com o Verbo, em Deus. São ideias imutáveis, porque pertencem ao Imutável, como os factos que o Cristianismo narra. É por serem imutáveis que são susceptíveis de Fé. Encontramos, deste modo, duas características no nosso testemunho: prestado com Fé, acerca de realidades. Enviado para o meio de inimigos, o ideal do cristão é ser confessor da Fé. Isto, com toda a personalidade e não apenas à superfície, onde as palavras tinem como «bronze que soa»[xxvi]. A sua vida deve ter um real sentido hierárquico: «Assim brilhe a vossa luz diante dos homens: que eles vejam as vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai que está nos Céus»[xxvii].
Ainda não há muito, o Santo Padre felizmente reinante recordava, das Cartas tão pouco lidas de Santo Inácio de Antioquia, aquilo a que chamou «um pensamento capaz de fascinar até os espíritos modernos»: «0 Cristianismo, quando é objecto do ódio do mundo, - não é questão de palavras persuasivas, mas de grandeza»[xxviii]. E Pio XII comentava: «Verdadeiramente, na crise religiosa dos nossos dias - a mais grave, talvez, por que passou a Humanidade desde as origens do Cristianismo - a exposição científica e racional das verdades da fé, por muito eficaz que seja, na realidade, não basta por si só». E logo, rompendo caminho, prosseguia o Santo Padre: «nem sequer bastaria uma dose tão escassa de vida cristã, feita de costume convencional, como se vê com demasiada frequência. Hoje é necessária a grandeza dum Cristianismo vivido na sua plenitude, com constância perseverante». Assim o Papa nos indica o verdadeiro ideal dos nossos dias: viver em plenitude pessoal a plenitude do Cristianismo.
E, já agora, recordando de novo o mesmo Santo Inácio de Antioquia, que aquele seu pensamento forte nos introduza no âmago da nossa missão: vou ser triturado pelos dentes das feras... Assim me farei trigo de Jesus Cristo[xxix]. Este era o caso-extremo da regra que a todo o cristão se impõe: fazer oblação de si mesmo ao Criador, para assim se unir à obra redentora. Tanto vale dizer que a vida cristã tem um alto sentido litúrgico: é um culto. No fundo, ser cristão é viver liturgicamente; e participar na Redenção é participar, em plenitude de alma, do Santo Sacrifício. É oferecer-se a Deus como Pão consagrado. «Toda a acção feita para Deus sobe para Ele como homenagem» diz o Padre Plus. E acrescenta: “Ela constitui uma «elevação» do nosso ser para a Sua majestade suprema, um reconhecimento nem sempre expresso, mas muito real, do Seu soberano direito, o gesto filial da criatura que oferece tudo ao seu Criador e seu Pai”. Assim se pode cumprir aquele ideal que se afigura ser um limite-matemático: “permanecer sempre em oração”. O mesmo ilustre jesuíta nos recorda a palavra de S. Boaventura: “Não cessa de orar quem não cessa de bem-fazer”. E que este sentido litúrgico da vida cristã, longe de ser imposição arbitrária, profundamente se enraíza na natureza humana – é o que, entre outros, nos ensinou Alexis Carrel, com positiva certeza, no seu formosíssimo livrinho sobre A Oração. — Duas palavras, que são dois traços luminosos: «É vergonhoso orar» escrevia Nietzsche. Não é mais vergonhoso orar do que beber ou respirar. O homem tem necessidade de Deus como de água e de oxigénio”. E não apenas o homem vulgar, nivelado aos olhos do mundo: é precisamente o homem superior — nota o filósofo alemão contemporâneo Hessen — o que mais sente a necessidade da oração. Dele extraio a pérola desta oração de Miguel Ângelo: “Nada há mais miserável, nada mais vil sobre a terra do que eu próprio, quando me sinto sem Ti. Como é grande o meu anseio de Infinito e como é pequena a força de que disponho para o atingir — que se vê obrigada a implorar misericórdia. Deixa-me alcançar, Senhor, a ponta daquela cadeia que liga a Ti todos os dons do Céu: a fé, que eu apeteço e que por minha própria culpa não posso possuir inteiramente.
“Sem esse dom-dos-dons, o maior e o mais raro, não pode haver paz nem satisfação no mundo!”[xxx]. E Pierre Loti, visitando, descrente mas com profunda ansiedade, os Lugares Santos, murmurava: “On prie comme on peut, et moi je ne peux pas mieux”. O próprio Cristo se retirava para o deserto ou para a montanha, e aí orava ao Pai; e na Última Ceia rezou a longa «Oração Sacerdotal» que o Discípulo Amado nos transmite[xxxi].
Só vivendo assim, integralmente, uma vida de pleno sentido hierárquico e litúrgico, o cristão será digno do apelo da Igreja para que crie, como disse Pio XII, “uma Cristandade modelo e guia para este mundo profundamente enfermo”. Com efeito, só, se pode fazer muita Cristandade (como queria D. Sebastião) — com Cristo. E, se hão-de ser os homens a fazer Cristandade, só hão-de fazê-Ia na medida em que se fizerem, como S. Paulo, imitadores de Cristo[xxxii]. N’Ele está o único modelo perfeito, o tipo do cristão. É filho de Deus. E o Símbolo dos Apóstolos ensina-nos que é Filho Unigénito. Mas logo S. Paulo vem dizer-nos que Jesus Cristo se quis fazer «o Primogénito dentre muitos irmãos.» A Teologia esclarece: em sentido próprio, natural, só Cristo é Filho de Deus. Mas todo o homem é chamado a receber de Deus uma paternidade de adopção.
Na nossa época, há tendência para desprezar o que não se apresenta logo manifesto. Porventura parecerá falho de interesse isso de ser filho adoptivo de Deus... Ora não se trata de uma adopção puramente à maneira legal, como se Deus declarasse (e já não era pouco...) que, para todos os efeitos, tudo se passava como se nós fôssemos Seus filhos. Não conheço mais sugestiva e intensa exposição da real transformação que o Cristianismo nos propõe, que a feita por um inglês - laico e anglicano - num pequeno volume: Para além da Personalidade[xxxiii]. Nada de novo ele ensina — e é esse um dos seus méritos. O outro é usar de uma linguagem clara, sugestiva e pitoresca. Nessa linguagem, pode o homem do nosso tempo, convencido de que a teologia é. ..chinês, verificar facilmente que o Cristianismo lhe propõe o real cumprimento daquela norma evangélica: “Sede perfeitos como o vosso Pai Celeste é perfeito.”[xxxiv]
Trata-se, efectivamente, de sermos filhos de Deus. Para isso entra nas nossas almas a Graça divina; para isso contribui toda a nossa vida, se a intenção for pura e as acções perfeitas.
Foi por se ter perdido na massa dos cristãos este sentido real da palavra da Escritura “Sois deuses” [xxxv] - que o Cristianismo pareceu a alguns ser mais um cadáver sobre a face da Terra. Em 1936, Nicolau Berdiaev formulava esta acusação dolorosa:
“Deve-se acrescentar, desgraçadamente, que o período burguês da história cristã suscitou bem menos energia e espírito de sacrifício que, hoje, o Comunismo. É um longo período desprovido de heroísmo, esse que a sociedade cristã acaba de atravessar; um período de decadência, que preparou os caminhos ao êxito do Comunismo.” E ainda : “Sob a sua forma pior e mais ímpia, o Comunismo surge como o termo fatal da evolução das sociedades chamadas «cristãs»; ele encarna o juízo severo que eles não quiseram lançar sobre si mesmas mas que sobre elas pesa inevitavelmente”.
São hoje bem diferentes as circunstâncias. Para além de muita cobardia e de muita insensatez, os cristãos vão compreendendo a verdade profunda da palavra santa: “a vida do homem é uma milícia”, e vão compreendendo que foi sobretudo para eles que o escritor sagrado a escreveu. Um sopro de heroísmo percorre as almas que mais perto vivem de Deus e do próximo. Uma atitude metafísica opõe-se à atitude fenomenista que invadira o nosso campo. Como queria Platão, de novo se vai à Verdade com toda a alma[xxxvi]. E o que parecia um teorema frio, próprio para a razão especular em horas de ócio, hoje aparece com a palpitação e a fremência, o interesse e a graça dum ser-vivo.
Falar de uma verdade que salva é certamente, regra geral, loucura. Porque a verdade é qualquer coisa de formal: um acordo entre o que é e o que se pensa; ou é então, num sentido ontológico, qualquer dos seres ou dos factos que enchem o Universo. E como que se ia perdendo a certeza de que há efectivamente uma excepção àquela regra: há uma verdade que salva, precisamente porque se trata de uma Verdade viva, com inteligência e vontade e, para mais, com Carne e Sangue. Cristo é essa verdade.
Ora a Religião, para o ser, deve apresentar aos homens uma Verdade salvadora. E isso é privilégio do Cristianismo. Demonstra-me o Cristianismo — pede o racionalista ao cristão. E a melhor resposta do cristão é certamente aquela que está implícita no extraordinário livro de Chesterton — Ortodoxia —: Aqui o tens. O Cristianismo não se demonstra. Está nisso a sua grandeza. «Ecce Homo!»; “Ide e contai o que vistes”. E – a história do que nós vimos — é certo que nada a explica, mas ela explica tudo. Toda a luz reflectida e refractada se vai explicando encadeadamente. Mas há um momento em que atinge o Sol. Que outra luz o explica? — Ele é que explica a luz… (A imagem é de Rivière).
O centro do Cristianismo é a Pessoa divina de Jesus, na qual hipostaticamente se reúnem as duas naturezas. Como pode o racionalista pretender que o cristão lhe demonstre uma pessoa como se fosse um princípio? O que o cristão sabe é que o facto de o Cristianismo ser, essencialmente, a Pessoa de Jesus Cristo, lhe traz, ao lado de transcendentes vantagens, tremendas responsabilidades. Se o centro do Cristianismo fosse uma ideia platónica ou hegeliana; se fosse um princípio matemático ou uma lei da Natureza (como o Fatum dos Romanos) — nenhum inconveniente havia em o abandonar, ao menos temporariamente. É este o caso dos racionalistas modernos, que andam de deus em deus como quem se cansa de ideias-feitas ou lugares-comuns. O cristão, que procura realizar-se como sede e fonte de valores, isto é, como pessoa, sabe que o seu Deus é uma Pessoa que, no princípio, era já plenamente realizada. Olha para o seu Deus como quem tem diante de si um ser que o compreende; que lhe ouve as orações, que o chama quando ele se distrai demasiado a olhar a paisagem, que lhe faz promessas de extraordinário encanto, que o ameaça com a perda dos talentos se não os fizer render, que ele sabe que está sempre pronto a aturar-lhe as criancices e, até, a perdoar-lhe os maiores crimes; e, sobretudo, que lhe dá um amor total e em troca lhe pede um amor total. Viu-O chorar com ele e alegrar-Se com ele. E percebeu que foi também à sua alma que foi feita a estranha promessa de casamento que o Antigo Testamento estava constantemente a renovar. (O Cristianismo é, com efeito, uma espécie de Matrimónio; ou o Matrimónio uma espécie de Cristianismo...) Assim unida à Pessoa Divina, a pessoa humana (ou melhor: o Homem) sente-se como o aventureiro no País da Autoridade, de que nos falou Chesterton: “O homem não pode esperar quaisquer aventuras na terra da anarquia, mas pode esperar toda a sorte de aventuras quando viaja no país da autoridade”. O cristão encontra-se, efectivamente, sujeito a uma autoridade; e a uma autoridade divina. E o mais importante é que essa autoridade não se limita a ser divina: faz leis também divinas. E o homem, que, procurando ser humano, constantemente se sente fraco demais para si próprio (todos poderíamos dizer: “não sou homem para mim...”), o homem, solicitado, seduzido pela terra e a carne, ao procurar as leis que a autoridade terá feito para o ajudar a ser homem, soletra sem compreender: “Sois deuses”; “Sede perfeitos como o Pai Celeste”. E um clarão de Eternidade cega-lhe os olhos que queriam ver. (Foi assim que aconteceu a Paulo, com a agravante de que ele não ia pedir a lei para ser melhor, mas perseguir os que procuravam sê-lo). Estranho significado, o do Cristianismo!
O Homem, num primeiro movimento, cai desiludido. Mas a essência do Cristianismo não é uma Ideia, é uma Pessoa. E, da pessoa, tudo se pode esperar quanto esteja dentro duma harmonia fecunda. A Pessoa que está no centro do Cristianismo, depois de ter dado a lei, olhou penetrantemente para os olhos do homem, e disse-lhe: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida”; “Ninguém pode ir ao Pai senão por Mim”; “Eu sou o Pão da Vida”[xxxvii].
Acreditar ou não acreditar nestas palavras, e agir em conformidade — é o problema cuja gravidade infinita faz o sentido trágico da vida. Para o que acreditar, a solução está dada, embora toda a vida neste mundo haja de ser, em grande parte, " um perpétuo reafirmar e um perpétuo recomeçar. Que, para o descrente, a solução lógica não é o afastamento e a indiferença, foi o que Pascal, depois de outros, demonstrou no célebre argumento da Aposta[xxxviii]. Bem sabemos que são poucos os que seguem a conclusão pragmática do filósofo.
Mas a Pessoa de Cristo é que nem por isso deixa de iluminar “todo o homem que vem a este mundo”. Ilumina o descrente como luz a incidir sobre os olhos de alguém adormecido: graça de Deus sempre à espera do homem transviado. Mas ilumina-o também, segundo, ao menos, a interpretação de Santo Agostinho, na medida em que, como Verbo que tudo criou, o faz participar na Inteligência de tudo o que foi criado. Mesmo não aceitando esta teoria, vemos a Luz verdadeira, que todas as outras exclui como falsas, dar aos cristãos uma Teoria do Homem, ou seja um Humanismo, que em muito ultrapassa as outras concepções. Por isso se pode afirmar que o homem não se basta sem o Verbo iluminador. Porque: não se hasta sem Religião; as únicas Religiões que lhe podem explicar a aspiração ao Absoluto, o arrependimento, todo o vínculo moral — são as transcendentes; as únicas adequadas às suas qualidades sensíveis e ao próprio sentido interior do seu destino natural — são as imanentes; e, entre todas as Religiões, só o Cristianismo consegue, pela união hipostática das duas naturezas na Pessoa do Verbo, conciliar, harmonizar e afinal aperfeiçoar os dois princípios de transcendência e de imanência que o perfeito Humanismo deve conter.
“Achamo-nos colocados — escreve Von Hildehrand — num mundo que, a cada passo, nos aponta mais para além dele. A solene majestade de um glorioso pôr do sol, tanto como a beleza moral dum acto de perdão ou dum amor puro e sem limites, falam-nos claramente dum mundo diferente e superior, de que eles são o reflexo. Eles reflectem, de facto, uma luz que, em si mesma, está mais para além dos nossos olhos — luz que não é deste mundo, mas pela qual ele é iluminado”. Aqui, o transcendente.
“Há horas de contemplação silenciosa — diz-nos Hessen — em que nos sentimos mais perto da essência da realidade e em que o mistério do seu profundo sentido se nos revela mais claro do que no meio do tumultuar das horas vulgares da existência. E então escutaremos aí uma voz que nos diz:
“sê e faze-te a ti mesmo o que tu és”; procura ser homem e realizar todas as aspirações generosas do bem e da virtude que se albergam no teu peito[xxxix] — Eis o imanente.
Mas é Schopenhauer que nos diz: “a bondade da alma é uma qualidade Transcendente, e pertence a uma ordem de coisas mais para além desta vida, que é incomensurável com todas as outras perfeições que nela encontramos”. E, nestas palavras do filósofo do pessimismo, podemos reconhecer um esboço de síntese, que nos faz ver como o imanente e o transcendente devem entrelaçar-se no Humanismo.
Tanto assim é, que as correntes filosóficas, nascidas da concepção dos valores, quando não culminam na visão teológica própria do Cristianismo, tomam na mão a lanterna de Diógenes e percorrem os espaços à procura dum Absoluto. O imanente em busca do transcendente...
Tanto assim é, que as correntes racionalistas que floresceram no chamado Deísmo, à míngua de doutrina viva, humana, que almas entendessem, que tivesse alguma coisa que ver com os homens — vieram a entronizar uma mulher no Altar de Deus. O transcendente em busca do imanente...
Neste capítulo, creio bem que o vício do nosso tempo é o Imanentismo. “O Reino de Deus está dentro de vós” — disse o Senhor. E Santo Agostinho, contando o drama da sua vida, representa-se a percorrer todas as estradas, a bater a todas as portas, interrogar todos os sinais, e tendo dentro de si aquele Deus a quem buscava. Atrás da palavra do Senhor e do exemplo do seu Bispo, formou-se afinal o cortejo dos medíocres, dos que estão sempre à espera de uma ocasião para se instalarem comodamente no meio fofo dos seus próprios erros, com o ar de quem — graças a Deus! ... — encontrou maneira de os justificar a todos. E o imanentismo, próprio das épocas de decadência, é o fundo da heresia modernista, que Roma condenou[xl]. “De todas as religiões horríveis — exclamava Chesterton —, a mais horrível é a adoração do deus interior. Bem sabemos quais são os resultados dessa adoração. O facto de João dever adorar a Deus que tem dentro de si passou ultimamente a significar que João deve adorar João».
Deus está, sem dúvida, dentro de nós: primeiro, porque está em toda a parte como Criador, que mantém os seres na existência; segundo, porque nos fez “à sua imagem e semelhança”. Mas, como Deus não se substitui à personalidade humana, a “voz da consciência” não é, directamente, a voz de Deus, mas sim a voz de Deus interpretada por nós.
Há muito a reformar, neste sentido, inclusivamente em concepções literárias.
Por detrás do erro imanentista, o Cristianismo continua a sustentar o princípio do imanente. Mas associa-o com o transcendente.
Daí deriva a sua extraordinária fecundidade pelo que diz respeito ao Humanismo. Porque nenhum humanismo, como é evidente; pode dispensar-se de encarar o destino do Homem, e também nenhum pode furtar-se a afirmar que o destino primário do Homem é realizar-se plenamente como tal. (Até aqui, o imanente). Mas intervêm agora duas ordens de factos: por um lado, a Sociedade embaraça o livre desenvolvimento do indivíduo, e este não poderá resultar pessoa humana, antes que um critério valorativo independente pronuncie esta sentença que nada tem de espontâneo e fácil: “a Sociedade é menor em dignidade que cada um dos seus membros como sujeito de direitos e, deveres eternos”. Podia-se dizer que este juízo é que estava a inverter a realidade; mas então, se o homem a realizar plenamente fosse a Sociedade, que sentido teriam as aspirações de cada homem a libertar-se em parte do vínculo social? E como se compreenderia que só as consciências individuais exprimissem a “consciência colectiva”?
Isto por um lado. Por outro lado, as tendências do Homem não são apenas para se realizar: são para se ultrapassar. “O Homem ultrapassa em muito o homem” dizia Pascal. E ele sabia disso profundamente… Aliás, todos o temos experimentado, com mais ou menos intensidade. Com que direito o homem dirá ao Homem: “daqui não passas”? Em nome de que princípio? Como pode discernir-se o que transcende a natureza, daquilo que lhe é próprio, se se começa por negar o transcendente? Se nada há de transcendente, qual o sentido (não digo já ontológico mas meramente psicológico) das tendências a que se proíbe a realização? E por que se proíbem, se não porque se consideram transcendentes ao homem?
Mas terá o homem, em boa verdade, esses anseios de ordem metafísica, para além do império dos fenómenos ou das coisas relativas? — A prova mais palpável de que tem é que fala de coisas relativas... Trata-se dum pensamento bipolar. Não se quer provar aqui que o absoluto existe, mas sim que o Homem pensa nele, o que quer dizer que o tem por objecto da sua inteligência. E, já que o Absoluto não lhe entra pelos sentidos, esse objecto é também um ideal que a inteligência procura. Logo: o Homem tende ao Absoluto; tem tendências de ordem metafísica.
E é este o lado transcendente do Humanismo: porque o Homem só se realiza plenamente quando se ultrapassa.
Ora o Cristianismo, lançando-nos uma ponte pessoal entre o Absoluto e o relativo, vem impedir o Humanismo de se precipitar num Trans-Personalismo de tipo idolátrico, ou seja: em qualquer das inúmeras formas do Paganismo. Dizia Chesterton que mais valia ao homem adorar o Sol ou um crocodilo, que adorar-se a si mesmo. Mas logo acrescentava: “A única objecção à religião natural é que, de qualquer forma, ela se torna sempre anti-natural. Um homem ama a Natureza de manhã devido à sua pureza e benignidade, e, ao cair da noite, devido à sua escuridão e crueldade. Ao despertar da manhã, lava-se nas águas claras como o Homem Sábio dos estóicos, embora, ao escurecer, se vá banhar no sangue quente dum touro, como fazia Juliano Apóstata”.
No fundo, toda a questão está no seguinte: importa que o Trans-Personalismo não seja um Anti-Personalismo. Ora o Trans-Personalismo será anti-personalista, desde que aponte para um Deus que não tenha, em grau infinito, as perfeições que a pessoa humana há-de conquistar. Quer dizer: o homem só pode adorar dignamente um Deus pessoal. — Para que a Religião seja verdadeiramente um diálogo vivo, e não a recitação das fórmulas de latria diante dum teorema ou em honra dum Céu estrelado. O teorema agrada à inteligência, abre-lhe talvez horizontes largos, encanta-a porque vai ao encontro da sua tendência para o abstracto e o genérico; o Céu estrelado agrada à vista e faz a imaginação compor mundos de maravilha. Mas nem o teorema nem o Firmamento podem amar o Homem que os adore. E, se adorar é amar em extremo, é eminentemente digno do Homem dar um extremo amor a um Deus que o ame. (Creio ser este o problema fulcral para o homem contemporâneo: saber a quem deve dar o seu amor. Porque o coração do homem moderno enlouqueceu, como Chesterton dizia que tinha acontecido às verdades cristãs espalhadas pelo mundo…)
Mas não se limita a isto a fecundidade da Síntese cristã pelo que diz respeito ao Humanismo. Pode-se dizer que qualquer outro Humanismo, que não seja cristão, ou mutila o Homem, ou nega o que está para além dele. Efectivamente, tendo escolhido um Ideal para lhe dar aquilo a que Max Scheller chamava “uma estima axiológica especial”, os humanistas têm uma preocupação única, própria, aliás, de adorador: sacrificar-Ihe tudo quanto seja sacrificável. E acontece, ao cabo de pouco tempo, que o deus assenta soberanamente sobre ruínas. Seja o Humanismo económico, ou Comunismo. Dum golpe, aceitou como dogma o Materialismo dialéctico, hipótese vestida à pressa de lei… O homem, embora dotado de vontade livre, — submetido totalmente à lei dialéctica da Matéria. A pessoa humana negada, em teoria, e, na prática, aniquilada pelo mecanismo brutal da luta de classes.
Seja o Humanismo a que podemos chamar antropológico: o que importa é que cada homem descubra, dentro de si e nos outros, todos os valores humanos. Para além de todas as diferenças de condições, de opinião, de Pátria e de Credo, muitos criaram o mito de que existe um plano superior a todos esses, e que é bom abdicar cada um do que pensa, sacudir o pó das sandálias, para entrar no grande Templo da Humanidade.
É possível, natural e justo que os homens se sintam solidários por-de-cima das condições sociais, opiniões políticas e mesmo nacionalidades. Mas já não é natural nem justo considerar mais forte que a Fé e a Caridade o simples laço de filantropia. O Humanismo Cristão reconhece esse laço natural e, como a tudo em que toca, eleva-o a um sentido superior de fraternidade. Só o que não se pode, dentro do Humanismo cristão, é inverter a ordem das coisas, atribuindo à filantropia o papel de princípio hierárquico integrador. Semelhante reconhecimento é impossível no Humanismo antropológico, uma vez que, nele, o principal lugar pertence à solidariedade natural entre os homens, e é impossível conceber o transcendente que o Cristianismo encerra, incluído num Humanismo imanentista.
Na realidade, só o Humanismo cristão é verdadeiramente hierárquico, ou seja: só ele integra numa harmonia todos os elementos dos vários planos do Homem. Colocando a suprema sede de valores no Deus criador e autónomo, seria estultícia negar ou reduzir a ruína uma parte da Criação. Toda a obra de Deus tem o selo de Deus e, por si mesma, não tem proporção com o Absoluto. Nas outras concepções, como que se temem os ciúmes do Valor supremo… Aqui, não há sombra de motivo para este receio caricato.
Que o homem actual, que tanto fala dos seus problemas e tanto apregoa o seu Humanismo, se convença de que só há um Humanismo perfeito: aquele que, recebendo de toda a parte a matéria, do Cristianismo recebe a forma.
E o Humanismo cristão, contendo todos os problemas, que soluções lhes dá? Neste ponto, é necessário que o homem moderno, que odeia as distinções escolásticas, consinta em distinguir... O Humanismo cristão, como bom Humanismo que é, encerra os três problemas fundamentais do homem; o problema religioso (no qual o Homem se relaciona com Deus), o problema político (que enlaça os homens entre si) e o problema económico (o Homem e a Terra). Ora o Humanismo cristão, por mais que o adjectivo pareça reduzi-Io ao puro âmbito do problema religioso, fez-se para resolver os três problemas. E as soluções serão necessariamente harmonizáveis umas com as outras. O que vale dizer que a solução cristã do problema religioso há-de ser o padrão em frente do qual, como dum juiz incorrupto, hão-de passar as soluções dadas aos outros problemas. Não que os princípios religiosos vão definir atitudes ou posições económicas. Os planos são distintos. Mas a pedra-de-toque do Humanismo é a harmonia hierárquica. Quer dizer: nenhum valor-político pode contrariar, dentro do Humanismo cristão, um valor-religioso. E o mesmo se diga do económico em face do religioso e do político.
Está há muito definida a solução do problema religioso, e isso por dois motivos: em primeiro lugar, porque o religioso, quando transcendente, é por si mesmo imutável; em segundo lugar, porque foi fundada uma Sociedade perfeita, com uma Hierarquia perfeita, para renovar, na História, a perfeita solução daquele.
Ao contrário, o problema político (note-se que este termo é aqui tomado numa acepção muito lata) e o problema económico não têm uma solução da qual se possa dizer: “é isto o que quer o Humanismo cristão”. Isto, pelas razões inversas das anteriores: falta-lhes a imutabilidade e falta-lhes a Hierarquia. Aquele que fundou uma Hierarquia Eclesiástica não fundou uma Hierarquia política nem uma Hierarquia económica. Pertence aos homens a solução destes problemas naturais. — Mas tendo diante dos olhos as palavras de S. Paulo: “Todo o Poder vem de Deus”; e respeitando sempre a regra essencial, a lei orgânica do Humanismo cristão: que nenhum valor político, que nenhum valor económico — vá ferir um valor religioso.
Creio que é isto o que se contém nestas passagens da Quadragesimo Anno: “Por sua parte a lei moral manda-nos perseguir tanto o fim supremo e último em todo o exercício da nossa actividade, como, nos diferentes domínios por onde ela se reparte, os fins particulares impostos pela natureza, ou, melhor, por Deus, autor da mesma, subordinando sempre estes fins àquele, como pede a boa ordem. Se seguirmos fielmente esta regra, sucederá que os fins particulares da economia, individuais ou sociais, se inserirão facilmente na ordem geral dos fins, e nós subindo por eles, como por uma escada, chegaremos ao fim último de todos os seres, que é Deus”.
Só assim, efectivamente, será possível que o mundo se povoe de Santos segundo aquele modelo que reclamava Rademacher: “tipo de homem que saiba reunir e harmonizar em si todos os diferentes lados nobres do ser humano, mas conservando-lhes a sua respectiva altura em dignidade e sabendo conciliar tudo isso com uma crença religiosa viva, um forte amor de Deus e um espontâneo e feliz espírito de integração dentro da vida da Igreja”.
Não é isolada essa voz. Antero de Quental, numa das suas admiráveis cartas, afirmava, corrigindo Renan, que não era o sábio mas o santo quem caminhava “à frente da procissão da Humanidade”.
Não sejamos injustos para com o nosso tempo, que de algum modo tem renovado, em milhares de mártires, a tradição primitiva. Mas os homens continuam a exigir Santos, como quem quer exemplos e expiadores para que o mundo se purifique.
…”Veio para o Mundo e o Mundo, embora houvesse sido criado por Ele, não O conheceu”.
É de algum modo misterioso o sentido desta palavra no Novo Testamento. Este Mundo que foi criado por Deus será o mesmo do qual disse Jesus que não era por ele que rogava ao Pai? De que nos fala S. João? Do mundo material, berço do homem? Do mundo pelo qual nem vale a pena pedir? Do mundo formado pelos homens em sociedade? — Não se vai entrar aqui no problema, embora a última pareça a melhor hipótese. O que importa é ter em vista a existência de um mundo sem remissão, a viver connosco.
A liturgia do Baptismo fala-nos de Satanás e das suas pompas. Pompas, não as tem ele no abismo. Mas há qualquer coisa... há muitas coisas junto de nós que são como que o manto luminoso que Lúcifer perdeu ao precipitar-se no Inferno. Quantas vezes sentimos a presença invisível de uma espécie de luz tenebrosa, luz geradora de trevas pela sua oposição à Luz! É o esplendor fugitivo das potências angélicas saídas da Hierarquia Celeste; esse esplendor de que Cristo disse não esperássemos ver revestido o Reino de Deus que vem ao encontro de nós[xli].
Mas, em contra-partida, S. João acaba o seu Prólogo, falando-nos de uma espécie de apoteose do Filho de Deus: “Nós vimos a Sua Glória, glória própria do Filho Unigénito do Pai, cheio de Graça e de Verdade”.
Este é o esplendor sagrado que reveste todo o Poder Sagrado, mostrando às almas a luz que elas não podem, ainda, encarar de frente.
Participando do Poder Sagrado, participemos no esplendor litúrgico da Igreja, para que assim possamos entrar em contacto quase sensível com a grande Realidade que o Cristianismo oferece no seu centro; para que vivamos o diálogo entre Pessoas que é a nossa Religião; para que aprendamos todas as verdades e vejamos todas as obras do Senhor; para que possamos “dar testemunho da Luz”.
O Homem moderno precisa do nosso testemunho.
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[i] Tomei por base, em lugar de um esquema logicamente desenrolado, um texto que a Liturgia diariamente propõe aos fiéis: texto que encerra a essência do Cristianismo, a relação deste com o Homem de sempre e o sentido dramático do Tempo; texto que nos aponta, em palavras incisivas, o dever que nesta hora temos como cristãos. Refiro-me ao Prólogo do Quarto Evangelho.
[ii] Cfr. Miranda Barbosa, A Organização Hierárquica da Sociedade Cristã.
[iii] A la Trace de Dieu, pág. 42.
[iv] Ibid. pág. 43.
[v] De Deus e do Homem, texto ed. pelo Pe. Diniz da Luz na Livr. Bertrand; págs. 192-3.
[vi] Nicolau Berdiaev, Problème du Communisme, pág. 24
[vii] S. Marcos, I, 3; S. Lucas, III, 4.
[viii] Quadragesimo Anno, In A Igreja e a Questão Social (U. Gráfica ), pág. 127 da 2ª ed.
[ix] Cf. Rerum Novarum, ib., pág. 59 id.
[x] S. Paulo, Aos Efésios VI, 5.
[xi] Cf., p. ex., Fliche-Martin, Histoire Générale de l’Église, t. 2º. pág. 417 e t. 3º, pág. 235.
[xii] S. Mateus, XXVIII, 19; S. Marcos, XVI, 15; cf. S. Lucas, XXIV, 47 e 48, e S. João, XX, 21; S. João, XXI, 15 e 16; S. João, XX,23; S. Lucas, XXII, 19.
[xiii] Cfr. S. João, I, 41 e XX, 16.
[xiv] S. Mateus, XXI, 27
[xv] S. Mateus, XVI, 23.
[xvi] Cfr. Miranda Barbosa, op. cit., pág. 117.
[xvii] Cfr. De Hierarchia Eclesiastica, sobretudo o Cap. I.
[xviii] S. Mateus, cap. XXIII, 18.
[xix] S. Lucas, X, 3; cfr. S. Mateus, X, 16
[xx] S. Mateus, X, 16.
[xxi] S. Lucas, VII. 22.
[xxii] Paul Bourget, Sociologie et Littérature, pág. 364.
[xxiii] S. Lucas, loc. cit.
[xxiv] S. Marcos, XIV, 62; cfr. S. Lucas, XXII, 70
[xxv] Op. cit., pág. 40.
[xxvi] S. Paulo, Aos Corintios.
[xxvii] S. Mateus, V, 16.
[xxviii] Aos Romanos, 2-3; cit. por S. S. Pio XII num discurso inserto in «Novidades», de 6-2-1947.
[xxix] Aos Romanos, IV, 1.
[xxx] In J. Hessen, Wertphilosophie, trad. port. – Filosofia dos Valores -por Cabral de Moncada, pág. 298.
[xxxi] S. João, XVII.
[xxxii] Cf. Aos Romanos, VI; Aos Colonossenses, II e III.
[xxxiii] Lewis; trad. port. nas Ed. GAMA, Lisboa.
[xxxiv] Mateus, V, 48.
[xxxv] Mateus, V, 48.
[xxxvi] Cit. por Leonel Franca, S. J., A psicologia da Fé, ed. Pro Domo, Lisboa, 1945, pág. 65.
[xxxvii] S. João, XIV, 6; Vi, 35 e 48.
[xxxviii] De Deus e do homem, págs. 167.175.
[xxxix] Op. cit., pág. 240.
[xl] S. S. Pio X, Encíclica Pascendi.
[xli] S. Lucas, XVII, 20.
(Conferência feita na sede da Acção Católica em Lisboa, em Fevereiro de 1947)
No Princípio, para além de todos os começos, antes do encadear dos fenómenos pelo vínculo da causalidade, era a imutável Inteligência, donde toda a Inteligibilidade dimanaria.
O Mistério não se abriu como um teorema: revelou-se como um Ser. O Verbo não era um princípio abstracto: estava em Deus. E, no seio de Deus, era Deus Ele próprio.
Desde todo o sempre, na permanência do Ser sem mistura de não-ser, o Logos era Inteligência, sede das ideias, e Pessoa, sede e fonte de valores[ii]. Essa fonte ia correr abundantemente...
Nunca nenhum homem compreenderá o tremendo mistério do acto criador. O Mistério não é um teorema: é uma realidade. «Todas as coisas foram criadas por Ele» - assim nos fala o Autor inspirado, como quem conta um caso que se passou. E efectivamente há aqui a passagem brusca das realidades substanciais: «No princípio era o Verbo» - para as realidades acidentais; do Necessário - para o Contingente; do Absoluto - para o Relativo; da Eternidade - para a História : «Nada daquilo que foi criado foi criado sem Ele». Esta é a história maravilhosa que nos conta S. JOÃO, depois do Génesis. Aí começa a nossa história. O mistério das origens é de si mesmo incompreensível ao homem, por isso que é das origens. O começo absoluto transcende todas as concepções científicas. E, no entanto, só por ele se explicam todas as concepções científicas. Aqui encontramos o gérmen de todas as coisas. Aqui descobrimos o laço causal que une o Criador à criatura. Lembrando que o profundo sentido de Poesia é Criação, digamos que este é o Poema das Origens.
Para saber donde vem o Cristianismo, temos de ler o princípio do 4º Evangelho. S. João, propondo-se contar a vida de Jesus, viu, divinamente inspirado, que devia começar pelo Verbo, que existia antes de todas as coisas. A História do Cristianismo é uma história que começa com o acto criador. Daí todo o seu carácter transcendente e todo o seu carácter imanente. O Cristianismo é a história de Cristo. Mas Cristo é Deus e Homem; é uma Pessoa em que duas naturezas se associam: a divina e a humana. À primeira, chamamos nós sobre-natureza, num critério, é bem de ver, puramente humano, pois guardamos o nome de natureza para aquela só com que nascemos.
Transcendência do Cristianismo: ele é alguma coisa de estranho em relação ao Homem; uma espécie de invasão e de conquista; uma Palavra que subitamente rompe o silêncio; uma espada que rasga a carne bem tratada; um vento impetuoso que varre a face da Terra: um convite subtilmente e instantemente murmurado para um Banquete invisível; um Modelo de perfeição que habita numa luz inacessível; um fermento que entra dentro de nós e se propõe assimilar-nos, transformando-nos.
Imanência do Cristianismo: Nada mais natural ao homem do que ele! Todo o homem nasce religioso. As mais variadas religiões o têm acompanhado, e são tantos os cultos e tantos os deuses quanto é grande a fantasia humana e forte a sugestão da Natureza. O Paganismo decadente dizia aos homens: «Adorai este homem! - é o Imperador». Só o Cristianismo lhe diz: «Adorai este Homem! - é Deus». O Paganismo punha acima do divino Imperador os deuses celestes, e acima destes o Destino. Só o Cristianismo nada sobrepõe ao Homem-Deus. «Todo o homem - segundo a palavra de Aristóteles - deseja naturalmente saber». O Cristianismo vem ao encontro deste desejo, desvendando o Desconhecido, fazendo do mistério - o Dogma.
Um cristão do nosso tempo, Jacques Rivière, pôs em singular relevo este papel gnoseológico do Cristianismo, em páginas de admirável profundeza, das quais saliento uma passagem: «. ..o mistério aparecerá como uma localização do inexplicável, espalhado e latente nas coisas. Mas, em vez de ter uma localização no princípio, como fazem a Ciência e a Filosofia, é uma localização no próprio seio das coisas, nos próprios sítios onde se encontram os pontos obscuros; é a determinação, tão exacta e literal quanto possível, da sua posição. Nada de redução, de escamoteamento por substituição, de deslocamento e de remeter à origem, como a Matemática ensina às outras ciências a fazer. Mas uma condensação que permite simplesmente ver claro ali. O desconhecido fixado: para evitar que ele espalhe o seu carácter vago sobre todo o resto, para que se saiba onde é que está a coisa que não se pode saber como as outras, e para que assim, em vez de lhe ficar a dever somente incerteza, dele provenha o poder explicativo»[iii].
Dá, por outro lado, o Cristianismo, ao conjunto de todas as verdades, um sentido humano, um valor vital, que o mesmo pensador francês expressava nestas sugestivas palavras: «Logo que se consideram em relação e coesão com todo o resto, quer dizer: desde que se mergulham de novo na experiência, eles actuam como um fermento que faz levedar toda a massa. Dão vida a tudo o que nos parecia classificado e finito»[iv]. E todo esse fermento, que dá vida ao que parecia inerte, e transforma e constrói e parece querer fundar um Reino novo, torna-se bem nosso, bem próximo dos corações dos homens, quando ouvimos a palavra do Senhor: «O Reino de Deus está dentro de VÓS».
Imanente quanto ao Homem, o Cristianismo é, pois, uma realidade terrena.
Mas que nada nos faça reduzir à imanência o carácter do Cristianismo. Se é realidade terrena, é porque é realidade entregue aos homens, revelada. Sem a Revelação é impossível compreender o Cristianismo. - «A luz resplandeceu nas trevas». - Há aqui um transpor de abismos insondáveis. Uma descida do Céu à Terra. Homens despertados por um som desconhecido começaram a ouvir vozes celestiais. O fenómeno repetiu-se inúmeras vezes no decorrer de quarenta séculos. Os homens iam registando e transmitindo. Pareciam coisas dispersas... Mas o Céu continuava a falar. Pouco a pouco, aproximando-se umas das outras, as palavras iam formando conjuntos definidos. Era (parafraseando Chesterton) uma espécie de romance da Eternidade, ou, talvez melhor, um Drama em muitos quadros, compreendendo, com o mesmo à-vontade, cenas do Passado, do Presente e do Futuro. E o ponto central que se foi destacando como um núcleo, ou como um fruto que pouco a pouco se vai avolumando, era como uma promessa de casamento. Do fundo das eras longínquas, quebrando todas as resistências, rompendo a condensação das trevas, dissolvendo a camada dos preconceitos e dos vícios, uma estranha promessa era segredada a almas de eleição, e delas ecoava, a ponto de um povo inteiro concentrar nela toda a sua razão de ser, todo o sentido da sua História. Havia a promessa formal duma Aliança perfeita: um dia, tudo quanto fora revelado à cerca do Passado, do Presente e do Futuro, tudo se condensaria numa realidade viva e actuante, num ser sensível ao coração e aos olhos dos homens: toda a Revelação se concretizaria num Homem. Essa era a estranha promessa que o Povo Escolhido foi ouvindo e guardando: a natureza divina e a natureza humana unir-se-iam em consórcio admirável. E o Cântico dos Cânticos pressente, emocionado, a maravilhosa realidade.
Por isso, o Cristianismo é transcendente e imanente: é a entrega de Deus à Humanidade. E o salto brusco, o facto irreversível, o acontecimento que para sempre exclui a hipótese cíclica do Eterno Retorno, é a Revelação, facto central da História, que a ela vai buscar o seu verdadeiro sentido. Se o Tempo é, por si mesmo, a medida do relativo, a marca do imperfeito, a Revelação o sagrou. Deus escolheu um momento, para que, como Luz, resplandecesse nas trevas. Deus entrou na História. Pode-se, desde então, falar de valores cronológicos.
Começou o extraordinário drama da Redenção do Homem, que decaíra da primitiva dignidade, como a Escritura ensina e todas as velhas tradições da Humanidade referem ou postulam. Muito se tem negado nos tempos modernos o grande dogma cristão que, para Pascal, encerrava, juntamente com a existência de Deus, todo o Cristianismo[v]. Hoje, por loucos desvios, novamente é aceite a realidade. O Comunismo, por exemplo, assenta numa concepção pessimista do estado actual do homem, como lucidamente expõe Berdiaev: «...ele contém no seu fundamento a ideia do pecado original. Um pecado original que alastra sobre a História Universal, sobre todas as classes da sociedade, que contamina todas as crenças e todas as ideologias humanas»[vi].
O Homem precisava de redenção. Passados tantos séculos de Cristianismo, o Homem precisa ainda de redenção. O Verbo podia ter-se dirigido ao homem-multidão, à Sociedade, alargando a todos os povos, como tais, o conceito de Povo Escolhido. Mas onde está uma das grandes características do Cristianismo é precisamente no facto de isso não se ter dado: o Verbo dirigiu-se a cada um, ao homem-pessoa. Ora a pessoa define-se, exactamente, por ter em suas mãos a chave do seu destino.
Por mais que filósofos e cientistas digam ao homem, em todos os tons - e, no nosso tempo, com singular teimosia -, que não é livre, ele, mesmo aceitando o esquema mental para cómodo repouso, vive como livre e é como livre que aceita o determinismo.
Foi a um ser capaz de dizer que sim e de dizer que não, a um ser que tem de comum com Deus (como ensina São Boaventura) a liberdade de escolha, que o Verbo Redentor se dirigiu. Não foi pedir ao Imperador de Roma que declarasse passar o seu Império a ser cristão: veio pedir a cada um dos súbditos do Imperador de Roma, aqueles que de rastos o serviam e de joelhos o adoravam, que aceitasse o testemunho do Seu Sangue e bebesse esse Sangue em sinal de Novo e Eterno Testamento.
Desde então, as almas foram ouvindo, ou no esplendor dos palácios, ou na majestade dos templos, ou na miséria dos ergástulos, ou na degradação dos prostíbulos, o mesmo apelo divino. E o drama da Redenção é sempre idêntico, no essencial: Deus a pedir, o homem a aceitar ou a negar. O drama da Redenção é um drama pessoal; passa-se entre personagens; não entre símbolos; não entre potências.
Mas eis que o drama se complica: perscrutando a realidade, não nos encontramos, afinal, com uma cena sempre por igual repetida: o Verbo, como Palavra de Deus, e cada alma isolada. É isto o essencial, o indispensável. Mas há, em regra, homens que intervêm. Logo o Evangelista nos conta: «Houve um homem que foi mandado por Deus, cujo nome era João, o qual veio como testemunha, para dar testemunho da Luz, afim de que, por ele, todos acreditassem.» Foi aquele que a si mesmo se definiu como uma voz, tanto a consciência da sua missão o penetrava. E a voz era esta: «Preparai os caminhos do Senhor.»[vii]
Aqui nos surge a ideia - ou melhor: o facto - de uma propedêutica ao Cristianismo. O facto é este: houve um homem encarregado de preparar a visita do Senhor a outros homens. Seria este um caso acidental? Ou manifestaria uma lei? E esta seria de tipo estatístico, ou de tipo normativo ? Por outras palavras: a propedêutica ao Cristianismo será necessária? E em que sentido se deve fazer?
O problema não é dos puramente especulativos: tem interesse prático, e actual. Um dos seus aspectos é o seguinte: Milhões de homens, dispersos pelo mundo, não contando já com a crise trazida pela guerra, vivem em nível económico inferior ao que a dignidade humana exige. Segundo as palavras claras de Pio XI: «Bem se pode dizer que tais são hoje as condições da vida social e económica, que se torna muito difícil a uma grande multidão de homens ganhar o único necessário que é a salvação eterna»[viii]. De acordo com aquilo de S. Tomás que Leão XIII recorda: o uso dos bens exteriores é reclamado para exercício da virtude.[ix]
Pergunta-se: o Pão deve ir à frente do Evangelho ? ou o Evangelho antes do Pão ? «Pregar Moral a estômagos vazios» será de todo inoperante ? Tanto vale perguntar se, na ordem cronológica, e para a classe proletária, o primado pertence ao económico, ou ao espiritual.
Foi no proletariado do Império romano que o Cristianismo encontrou melhor aceitação. E para isso não foi preciso que os Apóstolos propagassem o espírito de revolta entre os escravos. Pelo contrário : « Servos! sede submissos aos vossos senhores!»[x]. Mas é certo que, por outro lado, desde logo a Igreja nascente se preocupou com melhorar a situação económica dos pobres, encarregando os diáconos de ministrar-Ihes as esmolas recolhidas por toda a parte. Tão elevada era esta função, que, nos primeiros séculos os Bispos de Roma saíam, em geral, da ordem dos diáconos[xi].
No nosso tempo, florescem na Cristandade as admiráveis Conferências de S. Vicente de Paulo, que levam a esmola, não para resolver o problema económico das famílias visitadas, mas como pobre sinal sensível de uma Caridade toda bebida em Deus. A esmola é um símbolo; liturgicamente, diríamos: é um «sacramental».
E as encíclicas sociais constantemente insistem na necessidade de resolver o Problema Económico com espírito de Caridade e palavras de Fé e Esperança.
Ou seja: não parece que se deva falar de primazia de um desses problemas sobre o outro, na ordem cronológica da acção. O bem está na simultaneidade. Seja como for, é este apenas um caso particular na colaboração do homem com o Redentor. E essa colaboração foi manifestamente exigida por Cristo, em todas aquelas palavras, tão claras, tão definidas, que, espalhadas embora pelo Evangelho, constituem o diploma da fundação da Igreja: «lde e ensinai todas as gentes» ; «Apascenta os Meus cordeiros» ; «Aqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados» ; «Fazei isto em memória de Mim.»[xii].
O Homem foi pois associado à Redenção. Eis como o Drama se multiplica, movimentando, numa pujança de incontáveis atitudes, num alvoroço de surpresa alegre e comunicativa, o mundo das almas de boa vontade. Quando a grande Promessa se cumpriu e o Verbo feito carne entrou na cena do Mundo, a Sua presença perturbou os homens: os pastores de Belém foram acordados do seu sono; os Magos percorreram as montanhas e os desertos; Maria e José foram perseguidos; os doutores da Lei sentiram vacilar a sua dialéctica; João cansou o braço de tanto baptizar; os pescadores largaram as redes; o recebedor de impostos abandonou a banca; os mercadores foram expulsos do Templo... E ainda era apenas o princípio, o princípio de uma época em que os homens como que saem dum sonho oriental e começam a agitar-se, a ganhar novo interesse pela vida, a percorrer a Terra... Parecia, já então, que todos exclamavam - uns, com os olhos a brilhar de alegria; outros, a escorrer sombras de revolta: «Vimos o Senhor»![xiii]... Houve tempo em que o Senhor do Mundo passava pelas estradas da Galileia e entrava nas casas de Jerusalém. Então tudo se alvoroçava, como se nascesse um sol novo no horizonte. E esse alvoroço comunicativo, esse gosto tão humano de dar aos vizinhos «a última novidade», era uma forma elementar, rude mas boa, de os homens tomarem parte na Redenção.
Tudo, porém, seria efémero e tumultuoso, se Cristo não tivesse escolhido, dentre a multidão sobressaltada, doze homens para o seguirem mais de perto; se não tivesse prometido (e as Suas palavras são certas como as realidades) que seriam os apóstolos os julgadores do Mundo[xiv]; se não tivesse dito ao rude pescador que se chamou Simão :«Tu és Pedro; e sobre esta pedra edificarei a Minha Igreja»[xv].
É às pessoas que Cristo Se dirige, para as redimir uma por uma. Mas, querendo associar os homens à Sua obra, fez deles uma Sociedade nova. E é na medida em que participam dessa Sociedade, que os homens participam na acção redentora. O poder de remir é um poder sagrado. Ora «Poder Sagrado» é, exactamente, a definição etimológica de «Hierarquia». Daí a Hierarquia Eclesiástica, toda ela repassada da Majestade divina, toda ela a irradiar os esplendores celestes. E todo o homem que queira tomar parte nesta obra por excelência cultural[xvi] que é a difusão dos valores divinos - todo o homem que à missão redentora pense consagrar a vida, tem de sagrá-la, submetendo-se à Hierarquia da Igreja.
Aqui recordo a paixão e o respeito com que Dionísio Areopagita (ou quem lhe tenha usurpado o venerando nome...) se entregou à contemplação da Hierarquia Eclesiástica[xvii]. E, por contraste, dolorosamente considero o desdenhoso à-vontade com que muitos cristãos, nestes dias que vão correndo, encaram a sublime realidade que é, no mundo decaído, expressão divina que Deus empresta para expressão humana.
De certo: a Hierarquia não existe para objecto histórico, arredado da vida; e, hoje, está feito o apelo aos cristãos de boa vontade, para tomarem sobre si, conscientemente, organicamente, o Poder Sagrado que hierarquiza a Igreja. Mas a vasta organização da Acção Católica, correspondendo às profundas necessidades da Sociedade actual, exige, para ser eficaz, uma tomada de consciência, também profunda e também actual (no sentido aristotélico), da dignidade altíssima da Hierarquia, de que dimana. E não se vá confundir a «Acção Católica» com Acção Social ou Acção Cultural dos católicos, mesmo quando a esta presidam os princípios estabelecidos nas Encíclicas papais. Como membros da A. C., o que nos é dado é um mandato expresso da Hierarquia para irmos até onde ela não pode estender, por força dos males modernos, a sua acção apostólica. Mandato é direito que se atribui e é dever que se impõe. Os sucessores dos Apóstolos dizem-nos as mesmas palavras que Cristo lhes dissera: «Ide e ensinai todas as gentes...»[xviii]; «Eu vos envio como a cordeiros para meio de lobos»[xix]. E que vamos ensinar, com a mansidão do cordeiro, a prudência da serpente e a simplicidade da pomba[xx] - «Ide e contai o que vistes: os cegos vêem (...), os pobres são evangelizados»[xxi]. Tratava-se de saber se era o Messias aquele homem que os judeus cercavam, curiosos. Ainda hoje, com sinceridade ou com hipocrisia, é isso o que os homens perguntam uns aos outros. Tudo lhes serve para duvidar. Nada lhes basta para acreditar. A estes tais chamava Bourget «ces grands docteurs», sorrindo do embaraço definitivo de Renan diante de dificuldades filológicas...[xxii].«És tu aquele que há-de vir?»[xxiii]. Cristo não respondeu, como de outras vezes: «Eu o sou»[xxiv]. Respondeu, designando-os testemunhas: «contai o que vistes».
O cristão é uma testemunha. E o mundo moderno precisa de testemunhas. Andam os homens cansados de princípios vagos, de ideias mais ou menos filosóficas, de mitos disformes. O homem moderno precisa de testemunhas: contemos-lhe o que vimos.
Gosto de ler em Jacques Rivière[xxv] esta fórmula expressiva, que aliás deve tomar-se como fórmula que é: os mistérios «são factos, e não ideias». Alargando o conceito, diríamos que o Cristianismo todo consiste em realidades ontológicas, pois as ideias que levanta e defende estão, com o Verbo, em Deus. São ideias imutáveis, porque pertencem ao Imutável, como os factos que o Cristianismo narra. É por serem imutáveis que são susceptíveis de Fé. Encontramos, deste modo, duas características no nosso testemunho: prestado com Fé, acerca de realidades. Enviado para o meio de inimigos, o ideal do cristão é ser confessor da Fé. Isto, com toda a personalidade e não apenas à superfície, onde as palavras tinem como «bronze que soa»[xxvi]. A sua vida deve ter um real sentido hierárquico: «Assim brilhe a vossa luz diante dos homens: que eles vejam as vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai que está nos Céus»[xxvii].
Ainda não há muito, o Santo Padre felizmente reinante recordava, das Cartas tão pouco lidas de Santo Inácio de Antioquia, aquilo a que chamou «um pensamento capaz de fascinar até os espíritos modernos»: «0 Cristianismo, quando é objecto do ódio do mundo, - não é questão de palavras persuasivas, mas de grandeza»[xxviii]. E Pio XII comentava: «Verdadeiramente, na crise religiosa dos nossos dias - a mais grave, talvez, por que passou a Humanidade desde as origens do Cristianismo - a exposição científica e racional das verdades da fé, por muito eficaz que seja, na realidade, não basta por si só». E logo, rompendo caminho, prosseguia o Santo Padre: «nem sequer bastaria uma dose tão escassa de vida cristã, feita de costume convencional, como se vê com demasiada frequência. Hoje é necessária a grandeza dum Cristianismo vivido na sua plenitude, com constância perseverante». Assim o Papa nos indica o verdadeiro ideal dos nossos dias: viver em plenitude pessoal a plenitude do Cristianismo.
E, já agora, recordando de novo o mesmo Santo Inácio de Antioquia, que aquele seu pensamento forte nos introduza no âmago da nossa missão: vou ser triturado pelos dentes das feras... Assim me farei trigo de Jesus Cristo[xxix]. Este era o caso-extremo da regra que a todo o cristão se impõe: fazer oblação de si mesmo ao Criador, para assim se unir à obra redentora. Tanto vale dizer que a vida cristã tem um alto sentido litúrgico: é um culto. No fundo, ser cristão é viver liturgicamente; e participar na Redenção é participar, em plenitude de alma, do Santo Sacrifício. É oferecer-se a Deus como Pão consagrado. «Toda a acção feita para Deus sobe para Ele como homenagem» diz o Padre Plus. E acrescenta: “Ela constitui uma «elevação» do nosso ser para a Sua majestade suprema, um reconhecimento nem sempre expresso, mas muito real, do Seu soberano direito, o gesto filial da criatura que oferece tudo ao seu Criador e seu Pai”. Assim se pode cumprir aquele ideal que se afigura ser um limite-matemático: “permanecer sempre em oração”. O mesmo ilustre jesuíta nos recorda a palavra de S. Boaventura: “Não cessa de orar quem não cessa de bem-fazer”. E que este sentido litúrgico da vida cristã, longe de ser imposição arbitrária, profundamente se enraíza na natureza humana – é o que, entre outros, nos ensinou Alexis Carrel, com positiva certeza, no seu formosíssimo livrinho sobre A Oração. — Duas palavras, que são dois traços luminosos: «É vergonhoso orar» escrevia Nietzsche. Não é mais vergonhoso orar do que beber ou respirar. O homem tem necessidade de Deus como de água e de oxigénio”. E não apenas o homem vulgar, nivelado aos olhos do mundo: é precisamente o homem superior — nota o filósofo alemão contemporâneo Hessen — o que mais sente a necessidade da oração. Dele extraio a pérola desta oração de Miguel Ângelo: “Nada há mais miserável, nada mais vil sobre a terra do que eu próprio, quando me sinto sem Ti. Como é grande o meu anseio de Infinito e como é pequena a força de que disponho para o atingir — que se vê obrigada a implorar misericórdia. Deixa-me alcançar, Senhor, a ponta daquela cadeia que liga a Ti todos os dons do Céu: a fé, que eu apeteço e que por minha própria culpa não posso possuir inteiramente.
“Sem esse dom-dos-dons, o maior e o mais raro, não pode haver paz nem satisfação no mundo!”[xxx]. E Pierre Loti, visitando, descrente mas com profunda ansiedade, os Lugares Santos, murmurava: “On prie comme on peut, et moi je ne peux pas mieux”. O próprio Cristo se retirava para o deserto ou para a montanha, e aí orava ao Pai; e na Última Ceia rezou a longa «Oração Sacerdotal» que o Discípulo Amado nos transmite[xxxi].
Só vivendo assim, integralmente, uma vida de pleno sentido hierárquico e litúrgico, o cristão será digno do apelo da Igreja para que crie, como disse Pio XII, “uma Cristandade modelo e guia para este mundo profundamente enfermo”. Com efeito, só, se pode fazer muita Cristandade (como queria D. Sebastião) — com Cristo. E, se hão-de ser os homens a fazer Cristandade, só hão-de fazê-Ia na medida em que se fizerem, como S. Paulo, imitadores de Cristo[xxxii]. N’Ele está o único modelo perfeito, o tipo do cristão. É filho de Deus. E o Símbolo dos Apóstolos ensina-nos que é Filho Unigénito. Mas logo S. Paulo vem dizer-nos que Jesus Cristo se quis fazer «o Primogénito dentre muitos irmãos.» A Teologia esclarece: em sentido próprio, natural, só Cristo é Filho de Deus. Mas todo o homem é chamado a receber de Deus uma paternidade de adopção.
Na nossa época, há tendência para desprezar o que não se apresenta logo manifesto. Porventura parecerá falho de interesse isso de ser filho adoptivo de Deus... Ora não se trata de uma adopção puramente à maneira legal, como se Deus declarasse (e já não era pouco...) que, para todos os efeitos, tudo se passava como se nós fôssemos Seus filhos. Não conheço mais sugestiva e intensa exposição da real transformação que o Cristianismo nos propõe, que a feita por um inglês - laico e anglicano - num pequeno volume: Para além da Personalidade[xxxiii]. Nada de novo ele ensina — e é esse um dos seus méritos. O outro é usar de uma linguagem clara, sugestiva e pitoresca. Nessa linguagem, pode o homem do nosso tempo, convencido de que a teologia é. ..chinês, verificar facilmente que o Cristianismo lhe propõe o real cumprimento daquela norma evangélica: “Sede perfeitos como o vosso Pai Celeste é perfeito.”[xxxiv]
Trata-se, efectivamente, de sermos filhos de Deus. Para isso entra nas nossas almas a Graça divina; para isso contribui toda a nossa vida, se a intenção for pura e as acções perfeitas.
Foi por se ter perdido na massa dos cristãos este sentido real da palavra da Escritura “Sois deuses” [xxxv] - que o Cristianismo pareceu a alguns ser mais um cadáver sobre a face da Terra. Em 1936, Nicolau Berdiaev formulava esta acusação dolorosa:
“Deve-se acrescentar, desgraçadamente, que o período burguês da história cristã suscitou bem menos energia e espírito de sacrifício que, hoje, o Comunismo. É um longo período desprovido de heroísmo, esse que a sociedade cristã acaba de atravessar; um período de decadência, que preparou os caminhos ao êxito do Comunismo.” E ainda : “Sob a sua forma pior e mais ímpia, o Comunismo surge como o termo fatal da evolução das sociedades chamadas «cristãs»; ele encarna o juízo severo que eles não quiseram lançar sobre si mesmas mas que sobre elas pesa inevitavelmente”.
São hoje bem diferentes as circunstâncias. Para além de muita cobardia e de muita insensatez, os cristãos vão compreendendo a verdade profunda da palavra santa: “a vida do homem é uma milícia”, e vão compreendendo que foi sobretudo para eles que o escritor sagrado a escreveu. Um sopro de heroísmo percorre as almas que mais perto vivem de Deus e do próximo. Uma atitude metafísica opõe-se à atitude fenomenista que invadira o nosso campo. Como queria Platão, de novo se vai à Verdade com toda a alma[xxxvi]. E o que parecia um teorema frio, próprio para a razão especular em horas de ócio, hoje aparece com a palpitação e a fremência, o interesse e a graça dum ser-vivo.
Falar de uma verdade que salva é certamente, regra geral, loucura. Porque a verdade é qualquer coisa de formal: um acordo entre o que é e o que se pensa; ou é então, num sentido ontológico, qualquer dos seres ou dos factos que enchem o Universo. E como que se ia perdendo a certeza de que há efectivamente uma excepção àquela regra: há uma verdade que salva, precisamente porque se trata de uma Verdade viva, com inteligência e vontade e, para mais, com Carne e Sangue. Cristo é essa verdade.
Ora a Religião, para o ser, deve apresentar aos homens uma Verdade salvadora. E isso é privilégio do Cristianismo. Demonstra-me o Cristianismo — pede o racionalista ao cristão. E a melhor resposta do cristão é certamente aquela que está implícita no extraordinário livro de Chesterton — Ortodoxia —: Aqui o tens. O Cristianismo não se demonstra. Está nisso a sua grandeza. «Ecce Homo!»; “Ide e contai o que vistes”. E – a história do que nós vimos — é certo que nada a explica, mas ela explica tudo. Toda a luz reflectida e refractada se vai explicando encadeadamente. Mas há um momento em que atinge o Sol. Que outra luz o explica? — Ele é que explica a luz… (A imagem é de Rivière).
O centro do Cristianismo é a Pessoa divina de Jesus, na qual hipostaticamente se reúnem as duas naturezas. Como pode o racionalista pretender que o cristão lhe demonstre uma pessoa como se fosse um princípio? O que o cristão sabe é que o facto de o Cristianismo ser, essencialmente, a Pessoa de Jesus Cristo, lhe traz, ao lado de transcendentes vantagens, tremendas responsabilidades. Se o centro do Cristianismo fosse uma ideia platónica ou hegeliana; se fosse um princípio matemático ou uma lei da Natureza (como o Fatum dos Romanos) — nenhum inconveniente havia em o abandonar, ao menos temporariamente. É este o caso dos racionalistas modernos, que andam de deus em deus como quem se cansa de ideias-feitas ou lugares-comuns. O cristão, que procura realizar-se como sede e fonte de valores, isto é, como pessoa, sabe que o seu Deus é uma Pessoa que, no princípio, era já plenamente realizada. Olha para o seu Deus como quem tem diante de si um ser que o compreende; que lhe ouve as orações, que o chama quando ele se distrai demasiado a olhar a paisagem, que lhe faz promessas de extraordinário encanto, que o ameaça com a perda dos talentos se não os fizer render, que ele sabe que está sempre pronto a aturar-lhe as criancices e, até, a perdoar-lhe os maiores crimes; e, sobretudo, que lhe dá um amor total e em troca lhe pede um amor total. Viu-O chorar com ele e alegrar-Se com ele. E percebeu que foi também à sua alma que foi feita a estranha promessa de casamento que o Antigo Testamento estava constantemente a renovar. (O Cristianismo é, com efeito, uma espécie de Matrimónio; ou o Matrimónio uma espécie de Cristianismo...) Assim unida à Pessoa Divina, a pessoa humana (ou melhor: o Homem) sente-se como o aventureiro no País da Autoridade, de que nos falou Chesterton: “O homem não pode esperar quaisquer aventuras na terra da anarquia, mas pode esperar toda a sorte de aventuras quando viaja no país da autoridade”. O cristão encontra-se, efectivamente, sujeito a uma autoridade; e a uma autoridade divina. E o mais importante é que essa autoridade não se limita a ser divina: faz leis também divinas. E o homem, que, procurando ser humano, constantemente se sente fraco demais para si próprio (todos poderíamos dizer: “não sou homem para mim...”), o homem, solicitado, seduzido pela terra e a carne, ao procurar as leis que a autoridade terá feito para o ajudar a ser homem, soletra sem compreender: “Sois deuses”; “Sede perfeitos como o Pai Celeste”. E um clarão de Eternidade cega-lhe os olhos que queriam ver. (Foi assim que aconteceu a Paulo, com a agravante de que ele não ia pedir a lei para ser melhor, mas perseguir os que procuravam sê-lo). Estranho significado, o do Cristianismo!
O Homem, num primeiro movimento, cai desiludido. Mas a essência do Cristianismo não é uma Ideia, é uma Pessoa. E, da pessoa, tudo se pode esperar quanto esteja dentro duma harmonia fecunda. A Pessoa que está no centro do Cristianismo, depois de ter dado a lei, olhou penetrantemente para os olhos do homem, e disse-lhe: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida”; “Ninguém pode ir ao Pai senão por Mim”; “Eu sou o Pão da Vida”[xxxvii].
Acreditar ou não acreditar nestas palavras, e agir em conformidade — é o problema cuja gravidade infinita faz o sentido trágico da vida. Para o que acreditar, a solução está dada, embora toda a vida neste mundo haja de ser, em grande parte, " um perpétuo reafirmar e um perpétuo recomeçar. Que, para o descrente, a solução lógica não é o afastamento e a indiferença, foi o que Pascal, depois de outros, demonstrou no célebre argumento da Aposta[xxxviii]. Bem sabemos que são poucos os que seguem a conclusão pragmática do filósofo.
Mas a Pessoa de Cristo é que nem por isso deixa de iluminar “todo o homem que vem a este mundo”. Ilumina o descrente como luz a incidir sobre os olhos de alguém adormecido: graça de Deus sempre à espera do homem transviado. Mas ilumina-o também, segundo, ao menos, a interpretação de Santo Agostinho, na medida em que, como Verbo que tudo criou, o faz participar na Inteligência de tudo o que foi criado. Mesmo não aceitando esta teoria, vemos a Luz verdadeira, que todas as outras exclui como falsas, dar aos cristãos uma Teoria do Homem, ou seja um Humanismo, que em muito ultrapassa as outras concepções. Por isso se pode afirmar que o homem não se basta sem o Verbo iluminador. Porque: não se hasta sem Religião; as únicas Religiões que lhe podem explicar a aspiração ao Absoluto, o arrependimento, todo o vínculo moral — são as transcendentes; as únicas adequadas às suas qualidades sensíveis e ao próprio sentido interior do seu destino natural — são as imanentes; e, entre todas as Religiões, só o Cristianismo consegue, pela união hipostática das duas naturezas na Pessoa do Verbo, conciliar, harmonizar e afinal aperfeiçoar os dois princípios de transcendência e de imanência que o perfeito Humanismo deve conter.
“Achamo-nos colocados — escreve Von Hildehrand — num mundo que, a cada passo, nos aponta mais para além dele. A solene majestade de um glorioso pôr do sol, tanto como a beleza moral dum acto de perdão ou dum amor puro e sem limites, falam-nos claramente dum mundo diferente e superior, de que eles são o reflexo. Eles reflectem, de facto, uma luz que, em si mesma, está mais para além dos nossos olhos — luz que não é deste mundo, mas pela qual ele é iluminado”. Aqui, o transcendente.
“Há horas de contemplação silenciosa — diz-nos Hessen — em que nos sentimos mais perto da essência da realidade e em que o mistério do seu profundo sentido se nos revela mais claro do que no meio do tumultuar das horas vulgares da existência. E então escutaremos aí uma voz que nos diz:
“sê e faze-te a ti mesmo o que tu és”; procura ser homem e realizar todas as aspirações generosas do bem e da virtude que se albergam no teu peito[xxxix] — Eis o imanente.
Mas é Schopenhauer que nos diz: “a bondade da alma é uma qualidade Transcendente, e pertence a uma ordem de coisas mais para além desta vida, que é incomensurável com todas as outras perfeições que nela encontramos”. E, nestas palavras do filósofo do pessimismo, podemos reconhecer um esboço de síntese, que nos faz ver como o imanente e o transcendente devem entrelaçar-se no Humanismo.
Tanto assim é, que as correntes filosóficas, nascidas da concepção dos valores, quando não culminam na visão teológica própria do Cristianismo, tomam na mão a lanterna de Diógenes e percorrem os espaços à procura dum Absoluto. O imanente em busca do transcendente...
Tanto assim é, que as correntes racionalistas que floresceram no chamado Deísmo, à míngua de doutrina viva, humana, que almas entendessem, que tivesse alguma coisa que ver com os homens — vieram a entronizar uma mulher no Altar de Deus. O transcendente em busca do imanente...
Neste capítulo, creio bem que o vício do nosso tempo é o Imanentismo. “O Reino de Deus está dentro de vós” — disse o Senhor. E Santo Agostinho, contando o drama da sua vida, representa-se a percorrer todas as estradas, a bater a todas as portas, interrogar todos os sinais, e tendo dentro de si aquele Deus a quem buscava. Atrás da palavra do Senhor e do exemplo do seu Bispo, formou-se afinal o cortejo dos medíocres, dos que estão sempre à espera de uma ocasião para se instalarem comodamente no meio fofo dos seus próprios erros, com o ar de quem — graças a Deus! ... — encontrou maneira de os justificar a todos. E o imanentismo, próprio das épocas de decadência, é o fundo da heresia modernista, que Roma condenou[xl]. “De todas as religiões horríveis — exclamava Chesterton —, a mais horrível é a adoração do deus interior. Bem sabemos quais são os resultados dessa adoração. O facto de João dever adorar a Deus que tem dentro de si passou ultimamente a significar que João deve adorar João».
Deus está, sem dúvida, dentro de nós: primeiro, porque está em toda a parte como Criador, que mantém os seres na existência; segundo, porque nos fez “à sua imagem e semelhança”. Mas, como Deus não se substitui à personalidade humana, a “voz da consciência” não é, directamente, a voz de Deus, mas sim a voz de Deus interpretada por nós.
Há muito a reformar, neste sentido, inclusivamente em concepções literárias.
Por detrás do erro imanentista, o Cristianismo continua a sustentar o princípio do imanente. Mas associa-o com o transcendente.
Daí deriva a sua extraordinária fecundidade pelo que diz respeito ao Humanismo. Porque nenhum humanismo, como é evidente; pode dispensar-se de encarar o destino do Homem, e também nenhum pode furtar-se a afirmar que o destino primário do Homem é realizar-se plenamente como tal. (Até aqui, o imanente). Mas intervêm agora duas ordens de factos: por um lado, a Sociedade embaraça o livre desenvolvimento do indivíduo, e este não poderá resultar pessoa humana, antes que um critério valorativo independente pronuncie esta sentença que nada tem de espontâneo e fácil: “a Sociedade é menor em dignidade que cada um dos seus membros como sujeito de direitos e, deveres eternos”. Podia-se dizer que este juízo é que estava a inverter a realidade; mas então, se o homem a realizar plenamente fosse a Sociedade, que sentido teriam as aspirações de cada homem a libertar-se em parte do vínculo social? E como se compreenderia que só as consciências individuais exprimissem a “consciência colectiva”?
Isto por um lado. Por outro lado, as tendências do Homem não são apenas para se realizar: são para se ultrapassar. “O Homem ultrapassa em muito o homem” dizia Pascal. E ele sabia disso profundamente… Aliás, todos o temos experimentado, com mais ou menos intensidade. Com que direito o homem dirá ao Homem: “daqui não passas”? Em nome de que princípio? Como pode discernir-se o que transcende a natureza, daquilo que lhe é próprio, se se começa por negar o transcendente? Se nada há de transcendente, qual o sentido (não digo já ontológico mas meramente psicológico) das tendências a que se proíbe a realização? E por que se proíbem, se não porque se consideram transcendentes ao homem?
Mas terá o homem, em boa verdade, esses anseios de ordem metafísica, para além do império dos fenómenos ou das coisas relativas? — A prova mais palpável de que tem é que fala de coisas relativas... Trata-se dum pensamento bipolar. Não se quer provar aqui que o absoluto existe, mas sim que o Homem pensa nele, o que quer dizer que o tem por objecto da sua inteligência. E, já que o Absoluto não lhe entra pelos sentidos, esse objecto é também um ideal que a inteligência procura. Logo: o Homem tende ao Absoluto; tem tendências de ordem metafísica.
E é este o lado transcendente do Humanismo: porque o Homem só se realiza plenamente quando se ultrapassa.
Ora o Cristianismo, lançando-nos uma ponte pessoal entre o Absoluto e o relativo, vem impedir o Humanismo de se precipitar num Trans-Personalismo de tipo idolátrico, ou seja: em qualquer das inúmeras formas do Paganismo. Dizia Chesterton que mais valia ao homem adorar o Sol ou um crocodilo, que adorar-se a si mesmo. Mas logo acrescentava: “A única objecção à religião natural é que, de qualquer forma, ela se torna sempre anti-natural. Um homem ama a Natureza de manhã devido à sua pureza e benignidade, e, ao cair da noite, devido à sua escuridão e crueldade. Ao despertar da manhã, lava-se nas águas claras como o Homem Sábio dos estóicos, embora, ao escurecer, se vá banhar no sangue quente dum touro, como fazia Juliano Apóstata”.
No fundo, toda a questão está no seguinte: importa que o Trans-Personalismo não seja um Anti-Personalismo. Ora o Trans-Personalismo será anti-personalista, desde que aponte para um Deus que não tenha, em grau infinito, as perfeições que a pessoa humana há-de conquistar. Quer dizer: o homem só pode adorar dignamente um Deus pessoal. — Para que a Religião seja verdadeiramente um diálogo vivo, e não a recitação das fórmulas de latria diante dum teorema ou em honra dum Céu estrelado. O teorema agrada à inteligência, abre-lhe talvez horizontes largos, encanta-a porque vai ao encontro da sua tendência para o abstracto e o genérico; o Céu estrelado agrada à vista e faz a imaginação compor mundos de maravilha. Mas nem o teorema nem o Firmamento podem amar o Homem que os adore. E, se adorar é amar em extremo, é eminentemente digno do Homem dar um extremo amor a um Deus que o ame. (Creio ser este o problema fulcral para o homem contemporâneo: saber a quem deve dar o seu amor. Porque o coração do homem moderno enlouqueceu, como Chesterton dizia que tinha acontecido às verdades cristãs espalhadas pelo mundo…)
Mas não se limita a isto a fecundidade da Síntese cristã pelo que diz respeito ao Humanismo. Pode-se dizer que qualquer outro Humanismo, que não seja cristão, ou mutila o Homem, ou nega o que está para além dele. Efectivamente, tendo escolhido um Ideal para lhe dar aquilo a que Max Scheller chamava “uma estima axiológica especial”, os humanistas têm uma preocupação única, própria, aliás, de adorador: sacrificar-Ihe tudo quanto seja sacrificável. E acontece, ao cabo de pouco tempo, que o deus assenta soberanamente sobre ruínas. Seja o Humanismo económico, ou Comunismo. Dum golpe, aceitou como dogma o Materialismo dialéctico, hipótese vestida à pressa de lei… O homem, embora dotado de vontade livre, — submetido totalmente à lei dialéctica da Matéria. A pessoa humana negada, em teoria, e, na prática, aniquilada pelo mecanismo brutal da luta de classes.
Seja o Humanismo a que podemos chamar antropológico: o que importa é que cada homem descubra, dentro de si e nos outros, todos os valores humanos. Para além de todas as diferenças de condições, de opinião, de Pátria e de Credo, muitos criaram o mito de que existe um plano superior a todos esses, e que é bom abdicar cada um do que pensa, sacudir o pó das sandálias, para entrar no grande Templo da Humanidade.
É possível, natural e justo que os homens se sintam solidários por-de-cima das condições sociais, opiniões políticas e mesmo nacionalidades. Mas já não é natural nem justo considerar mais forte que a Fé e a Caridade o simples laço de filantropia. O Humanismo Cristão reconhece esse laço natural e, como a tudo em que toca, eleva-o a um sentido superior de fraternidade. Só o que não se pode, dentro do Humanismo cristão, é inverter a ordem das coisas, atribuindo à filantropia o papel de princípio hierárquico integrador. Semelhante reconhecimento é impossível no Humanismo antropológico, uma vez que, nele, o principal lugar pertence à solidariedade natural entre os homens, e é impossível conceber o transcendente que o Cristianismo encerra, incluído num Humanismo imanentista.
Na realidade, só o Humanismo cristão é verdadeiramente hierárquico, ou seja: só ele integra numa harmonia todos os elementos dos vários planos do Homem. Colocando a suprema sede de valores no Deus criador e autónomo, seria estultícia negar ou reduzir a ruína uma parte da Criação. Toda a obra de Deus tem o selo de Deus e, por si mesma, não tem proporção com o Absoluto. Nas outras concepções, como que se temem os ciúmes do Valor supremo… Aqui, não há sombra de motivo para este receio caricato.
Que o homem actual, que tanto fala dos seus problemas e tanto apregoa o seu Humanismo, se convença de que só há um Humanismo perfeito: aquele que, recebendo de toda a parte a matéria, do Cristianismo recebe a forma.
E o Humanismo cristão, contendo todos os problemas, que soluções lhes dá? Neste ponto, é necessário que o homem moderno, que odeia as distinções escolásticas, consinta em distinguir... O Humanismo cristão, como bom Humanismo que é, encerra os três problemas fundamentais do homem; o problema religioso (no qual o Homem se relaciona com Deus), o problema político (que enlaça os homens entre si) e o problema económico (o Homem e a Terra). Ora o Humanismo cristão, por mais que o adjectivo pareça reduzi-Io ao puro âmbito do problema religioso, fez-se para resolver os três problemas. E as soluções serão necessariamente harmonizáveis umas com as outras. O que vale dizer que a solução cristã do problema religioso há-de ser o padrão em frente do qual, como dum juiz incorrupto, hão-de passar as soluções dadas aos outros problemas. Não que os princípios religiosos vão definir atitudes ou posições económicas. Os planos são distintos. Mas a pedra-de-toque do Humanismo é a harmonia hierárquica. Quer dizer: nenhum valor-político pode contrariar, dentro do Humanismo cristão, um valor-religioso. E o mesmo se diga do económico em face do religioso e do político.
Está há muito definida a solução do problema religioso, e isso por dois motivos: em primeiro lugar, porque o religioso, quando transcendente, é por si mesmo imutável; em segundo lugar, porque foi fundada uma Sociedade perfeita, com uma Hierarquia perfeita, para renovar, na História, a perfeita solução daquele.
Ao contrário, o problema político (note-se que este termo é aqui tomado numa acepção muito lata) e o problema económico não têm uma solução da qual se possa dizer: “é isto o que quer o Humanismo cristão”. Isto, pelas razões inversas das anteriores: falta-lhes a imutabilidade e falta-lhes a Hierarquia. Aquele que fundou uma Hierarquia Eclesiástica não fundou uma Hierarquia política nem uma Hierarquia económica. Pertence aos homens a solução destes problemas naturais. — Mas tendo diante dos olhos as palavras de S. Paulo: “Todo o Poder vem de Deus”; e respeitando sempre a regra essencial, a lei orgânica do Humanismo cristão: que nenhum valor político, que nenhum valor económico — vá ferir um valor religioso.
Creio que é isto o que se contém nestas passagens da Quadragesimo Anno: “Por sua parte a lei moral manda-nos perseguir tanto o fim supremo e último em todo o exercício da nossa actividade, como, nos diferentes domínios por onde ela se reparte, os fins particulares impostos pela natureza, ou, melhor, por Deus, autor da mesma, subordinando sempre estes fins àquele, como pede a boa ordem. Se seguirmos fielmente esta regra, sucederá que os fins particulares da economia, individuais ou sociais, se inserirão facilmente na ordem geral dos fins, e nós subindo por eles, como por uma escada, chegaremos ao fim último de todos os seres, que é Deus”.
Só assim, efectivamente, será possível que o mundo se povoe de Santos segundo aquele modelo que reclamava Rademacher: “tipo de homem que saiba reunir e harmonizar em si todos os diferentes lados nobres do ser humano, mas conservando-lhes a sua respectiva altura em dignidade e sabendo conciliar tudo isso com uma crença religiosa viva, um forte amor de Deus e um espontâneo e feliz espírito de integração dentro da vida da Igreja”.
Não é isolada essa voz. Antero de Quental, numa das suas admiráveis cartas, afirmava, corrigindo Renan, que não era o sábio mas o santo quem caminhava “à frente da procissão da Humanidade”.
Não sejamos injustos para com o nosso tempo, que de algum modo tem renovado, em milhares de mártires, a tradição primitiva. Mas os homens continuam a exigir Santos, como quem quer exemplos e expiadores para que o mundo se purifique.
…”Veio para o Mundo e o Mundo, embora houvesse sido criado por Ele, não O conheceu”.
É de algum modo misterioso o sentido desta palavra no Novo Testamento. Este Mundo que foi criado por Deus será o mesmo do qual disse Jesus que não era por ele que rogava ao Pai? De que nos fala S. João? Do mundo material, berço do homem? Do mundo pelo qual nem vale a pena pedir? Do mundo formado pelos homens em sociedade? — Não se vai entrar aqui no problema, embora a última pareça a melhor hipótese. O que importa é ter em vista a existência de um mundo sem remissão, a viver connosco.
A liturgia do Baptismo fala-nos de Satanás e das suas pompas. Pompas, não as tem ele no abismo. Mas há qualquer coisa... há muitas coisas junto de nós que são como que o manto luminoso que Lúcifer perdeu ao precipitar-se no Inferno. Quantas vezes sentimos a presença invisível de uma espécie de luz tenebrosa, luz geradora de trevas pela sua oposição à Luz! É o esplendor fugitivo das potências angélicas saídas da Hierarquia Celeste; esse esplendor de que Cristo disse não esperássemos ver revestido o Reino de Deus que vem ao encontro de nós[xli].
Mas, em contra-partida, S. João acaba o seu Prólogo, falando-nos de uma espécie de apoteose do Filho de Deus: “Nós vimos a Sua Glória, glória própria do Filho Unigénito do Pai, cheio de Graça e de Verdade”.
Este é o esplendor sagrado que reveste todo o Poder Sagrado, mostrando às almas a luz que elas não podem, ainda, encarar de frente.
Participando do Poder Sagrado, participemos no esplendor litúrgico da Igreja, para que assim possamos entrar em contacto quase sensível com a grande Realidade que o Cristianismo oferece no seu centro; para que vivamos o diálogo entre Pessoas que é a nossa Religião; para que aprendamos todas as verdades e vejamos todas as obras do Senhor; para que possamos “dar testemunho da Luz”.
O Homem moderno precisa do nosso testemunho.
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[i] Tomei por base, em lugar de um esquema logicamente desenrolado, um texto que a Liturgia diariamente propõe aos fiéis: texto que encerra a essência do Cristianismo, a relação deste com o Homem de sempre e o sentido dramático do Tempo; texto que nos aponta, em palavras incisivas, o dever que nesta hora temos como cristãos. Refiro-me ao Prólogo do Quarto Evangelho.
[ii] Cfr. Miranda Barbosa, A Organização Hierárquica da Sociedade Cristã.
[iii] A la Trace de Dieu, pág. 42.
[iv] Ibid. pág. 43.
[v] De Deus e do Homem, texto ed. pelo Pe. Diniz da Luz na Livr. Bertrand; págs. 192-3.
[vi] Nicolau Berdiaev, Problème du Communisme, pág. 24
[vii] S. Marcos, I, 3; S. Lucas, III, 4.
[viii] Quadragesimo Anno, In A Igreja e a Questão Social (U. Gráfica ), pág. 127 da 2ª ed.
[ix] Cf. Rerum Novarum, ib., pág. 59 id.
[x] S. Paulo, Aos Efésios VI, 5.
[xi] Cf., p. ex., Fliche-Martin, Histoire Générale de l’Église, t. 2º. pág. 417 e t. 3º, pág. 235.
[xii] S. Mateus, XXVIII, 19; S. Marcos, XVI, 15; cf. S. Lucas, XXIV, 47 e 48, e S. João, XX, 21; S. João, XXI, 15 e 16; S. João, XX,23; S. Lucas, XXII, 19.
[xiii] Cfr. S. João, I, 41 e XX, 16.
[xiv] S. Mateus, XXI, 27
[xv] S. Mateus, XVI, 23.
[xvi] Cfr. Miranda Barbosa, op. cit., pág. 117.
[xvii] Cfr. De Hierarchia Eclesiastica, sobretudo o Cap. I.
[xviii] S. Mateus, cap. XXIII, 18.
[xix] S. Lucas, X, 3; cfr. S. Mateus, X, 16
[xx] S. Mateus, X, 16.
[xxi] S. Lucas, VII. 22.
[xxii] Paul Bourget, Sociologie et Littérature, pág. 364.
[xxiii] S. Lucas, loc. cit.
[xxiv] S. Marcos, XIV, 62; cfr. S. Lucas, XXII, 70
[xxv] Op. cit., pág. 40.
[xxvi] S. Paulo, Aos Corintios.
[xxvii] S. Mateus, V, 16.
[xxviii] Aos Romanos, 2-3; cit. por S. S. Pio XII num discurso inserto in «Novidades», de 6-2-1947.
[xxix] Aos Romanos, IV, 1.
[xxx] In J. Hessen, Wertphilosophie, trad. port. – Filosofia dos Valores -por Cabral de Moncada, pág. 298.
[xxxi] S. João, XVII.
[xxxii] Cf. Aos Romanos, VI; Aos Colonossenses, II e III.
[xxxiii] Lewis; trad. port. nas Ed. GAMA, Lisboa.
[xxxiv] Mateus, V, 48.
[xxxv] Mateus, V, 48.
[xxxvi] Cit. por Leonel Franca, S. J., A psicologia da Fé, ed. Pro Domo, Lisboa, 1945, pág. 65.
[xxxvii] S. João, XIV, 6; Vi, 35 e 48.
[xxxviii] De Deus e do homem, págs. 167.175.
[xxxix] Op. cit., pág. 240.
[xl] S. S. Pio X, Encíclica Pascendi.
[xli] S. Lucas, XVII, 20.
(Conferência feita na sede da Acção Católica em Lisboa, em Fevereiro de 1947)
domingo, outubro 16, 2005
Carta a Garrett
Caro Almeida Garrett,
Perdoe-me tão directa interpelação, mas creia que não o incomodaria por pouca coisa. Conhece bem o drama de partir, e de partir cedo. De partir cedo demais. Sei, por isso, que entenderá o que tenho para dizer.
O seu nome e a sua obra são ainda venerados nesta sua terra, embora um pouco da mesma forma que os monumentos o costumam ser. Reverenciados, mas na verdade esquecidos, ignorados, e vandalizados. Nada de novo, como muito bem sabe.
Imagine que se descobriram os manuscritos inéditos do seu Romanceiro misturados com outros papéis que estavam em casa de Venâncio Deslandes, na época director da Imprensa Nacional. Podemos talvez imaginar as razões pelas quais o Senhor Deslandes poderá ter levado os manuscritos para casa, mas provavelmente nunca saberemos ao certo a razão de lá terem ficado até a Cristina Futscher Pereira os ter descoberto.
Mas o achado constituiu também um encontro.
A partir desse momento o destino de Cristina Futscher Pereira passou a estar ligado ao destino desses papéis, e Você, meu caro Garrett, passou a estar no centro do seu entusiasmo. Ela pressagiava que aqueles manuscritos eram um sinal da sua boa estrela, e até construiu este pequeno templo, de onde agora lhe escrevo, para nele partilhar as boas novas com todos os interessados.
Mas (quase) ninguém estava verdadeiramente interessado. Bem, houve alguns lampejos de interesse pelos papéis, noblesse oblige, embora frouxos e breves. Não sei, talvez estejamos cansados de ser um País, de ter uma História tão pesada e de tão incerto saldo.
Além do mais, o romanceiro é uma coisa tão out, tão old fashioned - you know what I mean? -, é coisa de um mundo que já não existe, e que por isso já não nos interessa. Claro, é bom que se preserve, alguém que se encarregue de guardar essas coisas. Pode ser que um dia façam falta, sei lá.
Apesar de tudo, o meu Amigo nem tem muito de que se queixar. Apesar do infortúnio pedagógico das Viagens, ainda faz parte do cânone, ninguém lhe impugna o episódio do Mindelo, ainda lhe dão palco nos teatros, o fraque verde, a gravata de cor e o chapéu branco ainda causam um simulacro de furor entre as senhoras. Da sua poesia sobraram as Folhas Caídas (cujo pathos aumenta se se souber da história com a viscondessa da Luz), e a sua eloquência ainda ecoa vagamente no Parlamento. Outros não se podem gabar de tanto.
Mas na verdade pouca gente o lê e, hélas!, cada vez menos gente fala a mesma língua em que Você escreveu páginas tão marcantes.
Adiante. Eu conheci a Cristina por sua causa. Digamos que foi o ilustre Autor que propiciou o nosso encontro. Assim que lhe ouvi os planos, logo a alertei para esperar muito pouco ou nada. Mas o meu cepticismo foi cedendo à sua energia e vontade de suscitar um interesse renovado pela sua figura e pela sua obra, caro Garrett. E a isso eu não me poderia negar.
O resultado dessa colaboração está aqui nestas páginas escritas no éter (o meu caro Amigo perdoará não me atrever sequer a tentar explicar-lhe o que isto é...), mas está também nas muitas cartas que trocámos, através das quais o nosso relacionamento atingiu a patente de amizade.
Caro Almeida Garrett, a Cristina Futscher Pereira morreu.
Partiu cedo demais, como também aconteceu consigo. Com a morte dela, morre também este espaço que ela lhe dedicou, no qual tive a honra e o gosto de participar.
Ele aí - aí? aqui? - fica, como testemunho de como lhe pulsou o coração ao longo do seu último ano de vida. A Cristina fez o que pôde, até já não poder fazer mais. Mas fica também o exemplo, e, quem sabe?, talvez ele frutifique, talvez possa ser retomado. Não é verdade que todos lhe devemos isso?
Cumprido este dever de que voluntariamente me incumbi, despeço-me com a estima e a admiração de sempre.
Jorge Colaço
Post-Scriptum - Se os mortos e os tempos conviverem e se misturarem como acontece na Torre de Barbela de Ruben A., estou certo de que há-de vir a conhecer a Cristina. Peço-lhe que a trate como a uma boa e dedicada Amiga.
(in http://odivino.blogs.sapo.pt/)
Perdoe-me tão directa interpelação, mas creia que não o incomodaria por pouca coisa. Conhece bem o drama de partir, e de partir cedo. De partir cedo demais. Sei, por isso, que entenderá o que tenho para dizer.
O seu nome e a sua obra são ainda venerados nesta sua terra, embora um pouco da mesma forma que os monumentos o costumam ser. Reverenciados, mas na verdade esquecidos, ignorados, e vandalizados. Nada de novo, como muito bem sabe.
Imagine que se descobriram os manuscritos inéditos do seu Romanceiro misturados com outros papéis que estavam em casa de Venâncio Deslandes, na época director da Imprensa Nacional. Podemos talvez imaginar as razões pelas quais o Senhor Deslandes poderá ter levado os manuscritos para casa, mas provavelmente nunca saberemos ao certo a razão de lá terem ficado até a Cristina Futscher Pereira os ter descoberto.
Mas o achado constituiu também um encontro.
A partir desse momento o destino de Cristina Futscher Pereira passou a estar ligado ao destino desses papéis, e Você, meu caro Garrett, passou a estar no centro do seu entusiasmo. Ela pressagiava que aqueles manuscritos eram um sinal da sua boa estrela, e até construiu este pequeno templo, de onde agora lhe escrevo, para nele partilhar as boas novas com todos os interessados.
Mas (quase) ninguém estava verdadeiramente interessado. Bem, houve alguns lampejos de interesse pelos papéis, noblesse oblige, embora frouxos e breves. Não sei, talvez estejamos cansados de ser um País, de ter uma História tão pesada e de tão incerto saldo.
Além do mais, o romanceiro é uma coisa tão out, tão old fashioned - you know what I mean? -, é coisa de um mundo que já não existe, e que por isso já não nos interessa. Claro, é bom que se preserve, alguém que se encarregue de guardar essas coisas. Pode ser que um dia façam falta, sei lá.
Apesar de tudo, o meu Amigo nem tem muito de que se queixar. Apesar do infortúnio pedagógico das Viagens, ainda faz parte do cânone, ninguém lhe impugna o episódio do Mindelo, ainda lhe dão palco nos teatros, o fraque verde, a gravata de cor e o chapéu branco ainda causam um simulacro de furor entre as senhoras. Da sua poesia sobraram as Folhas Caídas (cujo pathos aumenta se se souber da história com a viscondessa da Luz), e a sua eloquência ainda ecoa vagamente no Parlamento. Outros não se podem gabar de tanto.
Mas na verdade pouca gente o lê e, hélas!, cada vez menos gente fala a mesma língua em que Você escreveu páginas tão marcantes.
Adiante. Eu conheci a Cristina por sua causa. Digamos que foi o ilustre Autor que propiciou o nosso encontro. Assim que lhe ouvi os planos, logo a alertei para esperar muito pouco ou nada. Mas o meu cepticismo foi cedendo à sua energia e vontade de suscitar um interesse renovado pela sua figura e pela sua obra, caro Garrett. E a isso eu não me poderia negar.
O resultado dessa colaboração está aqui nestas páginas escritas no éter (o meu caro Amigo perdoará não me atrever sequer a tentar explicar-lhe o que isto é...), mas está também nas muitas cartas que trocámos, através das quais o nosso relacionamento atingiu a patente de amizade.
Caro Almeida Garrett, a Cristina Futscher Pereira morreu.
Partiu cedo demais, como também aconteceu consigo. Com a morte dela, morre também este espaço que ela lhe dedicou, no qual tive a honra e o gosto de participar.
Ele aí - aí? aqui? - fica, como testemunho de como lhe pulsou o coração ao longo do seu último ano de vida. A Cristina fez o que pôde, até já não poder fazer mais. Mas fica também o exemplo, e, quem sabe?, talvez ele frutifique, talvez possa ser retomado. Não é verdade que todos lhe devemos isso?
Cumprido este dever de que voluntariamente me incumbi, despeço-me com a estima e a admiração de sempre.
Jorge Colaço
Post-Scriptum - Se os mortos e os tempos conviverem e se misturarem como acontece na Torre de Barbela de Ruben A., estou certo de que há-de vir a conhecer a Cristina. Peço-lhe que a trate como a uma boa e dedicada Amiga.
(in http://odivino.blogs.sapo.pt/)
quarta-feira, outubro 05, 2005
UM PROFETA DA REPÚBLICA
por Luís de Almeida Braga
CONTAM os jornais do Porto que naquela cidade se realizaram imponentes festejos ao ser inaugurada a nova sede do Grupo republicano recreativo Antero de Quental.
Nada, na verdade, mais recreativo do que pôr sob o patrocínio deste altíssimo nome um centro republicano! Eu tenho a vaga desconfiança de que os ilustres membros desta preclara agremiação não fazem ideia muito perfeita das obras e do pensamento de Antero de Quental. Homens de ilustração rudimentar, mal [133 – 134] soletrando alguns as primeiras letras, não venham dizer-me que serão esses os melhores devotos dos Sonetos ou os mais aproveitados leitores do ensaio sobre as Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX.
Se me fosse permitido remover o sentido comum de uma palavra, para dentro dela despertar a antiga significação obliterada, eu diria que Antero foi um matemático, tal como na Grécia se entendeu este vocábulo.
Toda a sua preocupação consiste em apreender as relações entre o homem e a vida. É o enigma da vida que, acima de tudo, o preocupa. Assim a sua poesia traz sempre consigo, como uma chaga sangrenta, a marca abrasada da inquietação espiritual que o consome.
Antero não é grande poeta senão quando tenta ser grande filósofo. E se do filósofo teve todas as qualidades, não lhe faltaram também todos os defeitos. A sua poesia é abstrusa, difícil, deixando as mais das vezes profundamente oculto o seu [134 – 135] sentido íntimo. Não é leitura de agrado para multidões iletradas.
O que em Antero nos interessa, comove e alenta a nossa admiração, não é a palavra encantada, a graça da imagem ou a estrofe colorida. A beleza dos Sonetos consiste na angústia moral em que se queimou a alma do poeta. Antero soube como ninguém explicar o coração de todos nós, mas não pode conseguir, quase nunca, que ele, enternecido, batesse mais apressado dentro do nosso peito. A sua imaginação era viva, mas de asas tão curtas que, voando alto, era estreito o voo.
De si mesmo fugia, como se fosse um fantasma. Levado pelo vento de mil desejos impossíveis, não acertava consigo. Turbava-lhe a tristeza a consciência. E a dúvida de todas as coisas, o cansaço de tudo, deixavam-no agonizante nas encruzilhadas do pensamento...
Este lugar é uma trincheira de guerra, áspera e rude, e não se estendem por aqui as sombras sossegadas do jardim de [135 – 136] Academus, onde é gostoso divagar parolando sobre as quimeras da literatura. Desviemos, pois, os olhos para outro lado. E porque não se entende que versos como esses se aprendam para cantar nas tabernas, nem para acompanhar o fado pelas vielas, às latas horas da noite, seria para ver se as intenções políticas e sociais do poeta permitem fazer dele orago em capela republicana, se não viesse o número 29 do ano VIII da Revista de História (publicação louvada pelo Ministério da Instrução Pública em portaria de 9 de Dezembro de 1914) dar à estampa uma carta de Antero de Quental que, desapiedadamente, deita abaixo todas as ilusões sobre o seu republicanismo.
Ofereço-a à leitura da digníssima direcção do Grupo republicano recreativo Antero de Quental, e creio que não lhe será precisa longa meditação para em assembleia geral explicar aos seus veneráveis consócios que é necessário modificar o nome da associação, porque Antero de Quental era um descarado reaccionário!
[ 136 – 137] Por tal modo se preparou a República, que os melhores espíritos, os mais nobres e os mais livres, logo a temeram e detestaram. Eça de Queirós dizia apavorado, negando que Ramalho fosse republicano: “Em política tem-se dito que Ramalho Ortigão é republicano. Nada menos exacto. Ramalho, creio, teme a república, tal qual é tramada nos Clubs amadores de Lisboa e Porto. A república em verdade, feita primeiro pelos partidos constitucionais dissidentes, e refeita depois pelos partidos jacobinos, que tendo vivido fora do poder e do seu maquinismo, a tomam como uma carreira, seria em Portugal uma balbúrdia sanguinolenta” (A Renascença); e João de Deus, ferido já o terno coração, escreveu: “Nas obras do Arcebispo de Paris, assassinado por uns carrascos, que não podem pertencer a partido nenhum, e a quem por isso não chamo comunistas, respira-se um ar puríssimo de liberdade, e até diria republicano, se a república, como aí se está apregoando, não nos [137 – 138] estivesse prometendo o mais tremendo despotismo” (A Cruz do Operário).
Antero de Quental deixou ferretado em muitos lugares o seu horror pela “fantasia republicana”, como lhe chamava na carta em que a Oliveira Martins anunciou o aziago folheto sobre a posição de Portugal perante a revolução de Espanha.
Tão inquieto sempre, sempre tão agitado por contrários sentimentos e ideais contrários, era nele constante o empenho de combater os nossos republicanos, - “raça pérfida”, no seu expressivo dizer – e tanto que por certo centro republicano foi oficialmente declarado traidor, e nos jornais do bando, O Trinta, A República Federal, Emancipação, que Teófilo Braga inspirava, grosseiros insultos lhe cobriam o nome.
“O pior que nos podia acontecer é sermos amanhã república” – anunciava em Julho de 73 ao seu dilecto confidente, o mago evocador da História da República Romana. E acrescentando, com justo conhecimento do comum sentir, [138 – 139] que Portugal não era republicano, advertia que “não o serão os declamadores e os pulhas que actualmente constituem a quase totalidade do grupo republicano quem logre converter o velho desconfiado que se chama o povo português” (Cartas Inéditas de Antero de Quental a Oliveira Martins, pág. 152).
Não se enganou o poeta. As armas afiadas “no laboratório merdoso do Teófilo”, conforme a enojada expressão anteriana, não podiam atingir a alma da nossa gente. A República, imposta por traiçoeiro tumulto, matem-se contra o geral querer, trazendo a nação amordaçada e agrilhoada. O povo repele o regime que lhe esconde o Céu e toma por crimes as suas virtudes.
A ajuntar ao que sabíamos, ei-la, a prometida carta de Antero, dirigida a João Lobo de Moura, íntimo amigo do poeta:
Meu caro Lobo – Pensei que me ia anunciar a sua estada em Lisboa e eis que me diz não saber ainda quando nem se será transferido. Gosto da resposta do [139 – 140] Barjona: tem um merecimento aquele rapaz, que o distingue no meio dos seus sodales; é a franqueza no cinismo; creio que por isso ficará na história do constitucionalismo português como uma espécie de M. de Calonne, sabe, aquele último e cinicamente espirituoso ministro de Luís XVI, que o Michelet nos descreve empurrando alegremente para o abismo a velha monarquia.
A independência de ordem jurídica no actual regime é uma coisa engraçadíssima. Mas quê, meu caro, o regime que está para vir, com a gente que o prepara, ainda nos há-de mostrar coisas mais bonitas. V. Faz lá a ideia dos republicanos portugueses! Tive ocasião de os tratar de perto este ano, e declaro-lhe que quase lhes fiquei preferindo o próprio Barros e Cunha, o próprio Melício, o próprio Santos Silva! Sabe V. Quem é que está hoje sendo um dos grandes repúblicos em Lisboa? Adivinhe... o Teófilo Braga! Redige um jornal intitulado O Rebate (traduza Le Rappel) em cujos artigos de fundo desenvolve o homem todos os recursos do estilo colhido nas antigas leituras do Piolho Viajante. Fala nesta choldra e outras amenidades de linguagem, e propõe-se enforcar toda a gente, começando desde já por enforcar a gramática, o senso comum e a decência. É uma espécie de Marat de soalheiro, que faz rir mas enoja, e enoja tanto mais quanto é lido, o que nos dá a medida da capacidade intelectual e moral do público republicano. Creio que teremos a República em Portugal, mais ano, menos ano; mas, francamente, não o desejo, a não ser num ponto de vista todo pessoal, como espectáculo e ensino. Falam de Espanha com desdém – e há de quê – mas eles, os briosos portugueses, estão destinados a dar ao mundo um espectáculo republicano ainda mais curioso; se a república espanhola é de doidos, a nossa será de garotos.
A grande revolução, meu caro, só pode ser uma revolução moral, e essa não se faz dum dia para o outro, nem se decreta nas espeluncas fumosas das conspirações, e sobretudo não se prepara com publicações rancorosas de espírito estreitíssimo e ermas da menos ideia prática. Quando nós virmos o Peniche e o Valadares, e o Teófilo e o Bonança ministros duma revolução compreenderemos tudo isto...
Mas alto! Isto não é artigo de fundo!....
...........................................
do c.
Antero
São suficientemente claros os termos desta carta, e até tão vivos por vezes, que juntar-lhe comentários seria apenas demorar a sua lição.
Quem procurou esmiuçar os escritos de Antero de Quental ou leu o exaustivo estudo crítico de António Sardinha, conhece a influência que sobre o espírito do poeta exerceram as doutrinas de Proudhon, a ponto de, escrevendo a Oliveira Martins, se chamar “arcade proudhoniano”.
[142 – 143] Ao terminar a carta, da qual apenas transcrevi a parte política, Antero declara ter relido ultimamente o famoso capítulo de Proudhon sobre a morte e que ele lhe fizera acudir ideias bastantes para compor com elas uma Filosofia da Morte, no gosto dos tratados de Séneca e de Cícero, mas com mais profundidade.
Confessando assim, incidentalmente, as repetidas leituras de Proudhon, Antero de Quental enchia de luz as linhas da sua carta. Ao dizer que a grande revolução necessária só pode ser uma revolução moral, Antero reconhecia que governar não é lisonjear as paixões do povo – é acordar as suas virtudes, fortalece-las e apoiar-se nelas.
Antero, cujo individualismo extreme podia ser servido para o encerrar na orgulhosa solidão dos ultra-românticos, tornou-se, debaixo do magistério de Proudhon, duro inimigo das ideias e dos sentimentos que deram alma e corpo à Revolução Francesa.
Quando se cuidava que as doutrinas de Rousseau eram um dogma intangível, [143 – 144] Proudhon, arredando de si as sugestões do tempo, escrevia contra elas a mais mordaz e penetrante crítica que o século XIX produziu. É sob a invocação de Proudhon que, para estudar os problemas da economia moderna e da filosofia da história, se juntam hoje, em França, na mesma sala, os escritores monárquicos e os doutrinadores sindicalistas. Os seus métodos de exame e os seus argumentos variam segundo a origem intelectual dos que ali se reúnem, mas idêntico pensamento os prende a todos: a crítica e o combate è democracia.
Admiravelmente descreveu Proudhon a grosseira máquina democrática dizendo que ela era “un système politique, invente tout exprès pour le triomphe de la médiocrité parlière, du pédantisme intrigailleur, du journalisme subventionné, exploitant la réclame et le chantage; où les transactions de conscience, la vulgarité des ambitions, la pauvreté des idées, de même que le lieu commun oratoire et la faconde académique, sont des moyens assurés de succès; ou la contradiction et l’incon- [144 – 145] séquence, le manque de francise et d’audace, érigés en prudence et modération, sont perpétuellement à l’ordre du jour; un pareil système se refuse à la réfutation; il suffit de le peindre. L’analyser ce serait le grandir et quoi que fit le critique, en donner une fausse idée” (Contradictions politiques, pág. 222).
Como Proudhon, Antero de Quental é um mestre da contra-revolução sempre que se mostra liberto dos encantamentos de Michelet. Manter o seu nome na tabuleta dum centro republicano, é vergonhoso testemunho da mais rotunda e pedantesca ignorância.
Se querem, porém, conservar o título glorioso de Antero de Quental lá nessa “fumosa espelunca” do Porto, como ele chamava a semelhantes casas, não esqueçam então de escrever, à laia de divisa, no salão de festas, por cima da cadeira da presidência, aquelas palavras proféticas da sua carta: - “A nossa república é de garotos”.
(Luís de Almeida Braga in Sob o Pendão Real, Lisboa, Edições Gama, 1942, pp. 133-145.)
CONTAM os jornais do Porto que naquela cidade se realizaram imponentes festejos ao ser inaugurada a nova sede do Grupo republicano recreativo Antero de Quental.
Nada, na verdade, mais recreativo do que pôr sob o patrocínio deste altíssimo nome um centro republicano! Eu tenho a vaga desconfiança de que os ilustres membros desta preclara agremiação não fazem ideia muito perfeita das obras e do pensamento de Antero de Quental. Homens de ilustração rudimentar, mal [133 – 134] soletrando alguns as primeiras letras, não venham dizer-me que serão esses os melhores devotos dos Sonetos ou os mais aproveitados leitores do ensaio sobre as Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX.
Se me fosse permitido remover o sentido comum de uma palavra, para dentro dela despertar a antiga significação obliterada, eu diria que Antero foi um matemático, tal como na Grécia se entendeu este vocábulo.
Toda a sua preocupação consiste em apreender as relações entre o homem e a vida. É o enigma da vida que, acima de tudo, o preocupa. Assim a sua poesia traz sempre consigo, como uma chaga sangrenta, a marca abrasada da inquietação espiritual que o consome.
Antero não é grande poeta senão quando tenta ser grande filósofo. E se do filósofo teve todas as qualidades, não lhe faltaram também todos os defeitos. A sua poesia é abstrusa, difícil, deixando as mais das vezes profundamente oculto o seu [134 – 135] sentido íntimo. Não é leitura de agrado para multidões iletradas.
O que em Antero nos interessa, comove e alenta a nossa admiração, não é a palavra encantada, a graça da imagem ou a estrofe colorida. A beleza dos Sonetos consiste na angústia moral em que se queimou a alma do poeta. Antero soube como ninguém explicar o coração de todos nós, mas não pode conseguir, quase nunca, que ele, enternecido, batesse mais apressado dentro do nosso peito. A sua imaginação era viva, mas de asas tão curtas que, voando alto, era estreito o voo.
De si mesmo fugia, como se fosse um fantasma. Levado pelo vento de mil desejos impossíveis, não acertava consigo. Turbava-lhe a tristeza a consciência. E a dúvida de todas as coisas, o cansaço de tudo, deixavam-no agonizante nas encruzilhadas do pensamento...
Este lugar é uma trincheira de guerra, áspera e rude, e não se estendem por aqui as sombras sossegadas do jardim de [135 – 136] Academus, onde é gostoso divagar parolando sobre as quimeras da literatura. Desviemos, pois, os olhos para outro lado. E porque não se entende que versos como esses se aprendam para cantar nas tabernas, nem para acompanhar o fado pelas vielas, às latas horas da noite, seria para ver se as intenções políticas e sociais do poeta permitem fazer dele orago em capela republicana, se não viesse o número 29 do ano VIII da Revista de História (publicação louvada pelo Ministério da Instrução Pública em portaria de 9 de Dezembro de 1914) dar à estampa uma carta de Antero de Quental que, desapiedadamente, deita abaixo todas as ilusões sobre o seu republicanismo.
Ofereço-a à leitura da digníssima direcção do Grupo republicano recreativo Antero de Quental, e creio que não lhe será precisa longa meditação para em assembleia geral explicar aos seus veneráveis consócios que é necessário modificar o nome da associação, porque Antero de Quental era um descarado reaccionário!
[ 136 – 137] Por tal modo se preparou a República, que os melhores espíritos, os mais nobres e os mais livres, logo a temeram e detestaram. Eça de Queirós dizia apavorado, negando que Ramalho fosse republicano: “Em política tem-se dito que Ramalho Ortigão é republicano. Nada menos exacto. Ramalho, creio, teme a república, tal qual é tramada nos Clubs amadores de Lisboa e Porto. A república em verdade, feita primeiro pelos partidos constitucionais dissidentes, e refeita depois pelos partidos jacobinos, que tendo vivido fora do poder e do seu maquinismo, a tomam como uma carreira, seria em Portugal uma balbúrdia sanguinolenta” (A Renascença); e João de Deus, ferido já o terno coração, escreveu: “Nas obras do Arcebispo de Paris, assassinado por uns carrascos, que não podem pertencer a partido nenhum, e a quem por isso não chamo comunistas, respira-se um ar puríssimo de liberdade, e até diria republicano, se a república, como aí se está apregoando, não nos [137 – 138] estivesse prometendo o mais tremendo despotismo” (A Cruz do Operário).
Antero de Quental deixou ferretado em muitos lugares o seu horror pela “fantasia republicana”, como lhe chamava na carta em que a Oliveira Martins anunciou o aziago folheto sobre a posição de Portugal perante a revolução de Espanha.
Tão inquieto sempre, sempre tão agitado por contrários sentimentos e ideais contrários, era nele constante o empenho de combater os nossos republicanos, - “raça pérfida”, no seu expressivo dizer – e tanto que por certo centro republicano foi oficialmente declarado traidor, e nos jornais do bando, O Trinta, A República Federal, Emancipação, que Teófilo Braga inspirava, grosseiros insultos lhe cobriam o nome.
“O pior que nos podia acontecer é sermos amanhã república” – anunciava em Julho de 73 ao seu dilecto confidente, o mago evocador da História da República Romana. E acrescentando, com justo conhecimento do comum sentir, [138 – 139] que Portugal não era republicano, advertia que “não o serão os declamadores e os pulhas que actualmente constituem a quase totalidade do grupo republicano quem logre converter o velho desconfiado que se chama o povo português” (Cartas Inéditas de Antero de Quental a Oliveira Martins, pág. 152).
Não se enganou o poeta. As armas afiadas “no laboratório merdoso do Teófilo”, conforme a enojada expressão anteriana, não podiam atingir a alma da nossa gente. A República, imposta por traiçoeiro tumulto, matem-se contra o geral querer, trazendo a nação amordaçada e agrilhoada. O povo repele o regime que lhe esconde o Céu e toma por crimes as suas virtudes.
A ajuntar ao que sabíamos, ei-la, a prometida carta de Antero, dirigida a João Lobo de Moura, íntimo amigo do poeta:
Meu caro Lobo – Pensei que me ia anunciar a sua estada em Lisboa e eis que me diz não saber ainda quando nem se será transferido. Gosto da resposta do [139 – 140] Barjona: tem um merecimento aquele rapaz, que o distingue no meio dos seus sodales; é a franqueza no cinismo; creio que por isso ficará na história do constitucionalismo português como uma espécie de M. de Calonne, sabe, aquele último e cinicamente espirituoso ministro de Luís XVI, que o Michelet nos descreve empurrando alegremente para o abismo a velha monarquia.
A independência de ordem jurídica no actual regime é uma coisa engraçadíssima. Mas quê, meu caro, o regime que está para vir, com a gente que o prepara, ainda nos há-de mostrar coisas mais bonitas. V. Faz lá a ideia dos republicanos portugueses! Tive ocasião de os tratar de perto este ano, e declaro-lhe que quase lhes fiquei preferindo o próprio Barros e Cunha, o próprio Melício, o próprio Santos Silva! Sabe V. Quem é que está hoje sendo um dos grandes repúblicos em Lisboa? Adivinhe... o Teófilo Braga! Redige um jornal intitulado O Rebate (traduza Le Rappel) em cujos artigos de fundo desenvolve o homem todos os recursos do estilo colhido nas antigas leituras do Piolho Viajante. Fala nesta choldra e outras amenidades de linguagem, e propõe-se enforcar toda a gente, começando desde já por enforcar a gramática, o senso comum e a decência. É uma espécie de Marat de soalheiro, que faz rir mas enoja, e enoja tanto mais quanto é lido, o que nos dá a medida da capacidade intelectual e moral do público republicano. Creio que teremos a República em Portugal, mais ano, menos ano; mas, francamente, não o desejo, a não ser num ponto de vista todo pessoal, como espectáculo e ensino. Falam de Espanha com desdém – e há de quê – mas eles, os briosos portugueses, estão destinados a dar ao mundo um espectáculo republicano ainda mais curioso; se a república espanhola é de doidos, a nossa será de garotos.
A grande revolução, meu caro, só pode ser uma revolução moral, e essa não se faz dum dia para o outro, nem se decreta nas espeluncas fumosas das conspirações, e sobretudo não se prepara com publicações rancorosas de espírito estreitíssimo e ermas da menos ideia prática. Quando nós virmos o Peniche e o Valadares, e o Teófilo e o Bonança ministros duma revolução compreenderemos tudo isto...
Mas alto! Isto não é artigo de fundo!....
...........................................
do c.
Antero
São suficientemente claros os termos desta carta, e até tão vivos por vezes, que juntar-lhe comentários seria apenas demorar a sua lição.
Quem procurou esmiuçar os escritos de Antero de Quental ou leu o exaustivo estudo crítico de António Sardinha, conhece a influência que sobre o espírito do poeta exerceram as doutrinas de Proudhon, a ponto de, escrevendo a Oliveira Martins, se chamar “arcade proudhoniano”.
[142 – 143] Ao terminar a carta, da qual apenas transcrevi a parte política, Antero declara ter relido ultimamente o famoso capítulo de Proudhon sobre a morte e que ele lhe fizera acudir ideias bastantes para compor com elas uma Filosofia da Morte, no gosto dos tratados de Séneca e de Cícero, mas com mais profundidade.
Confessando assim, incidentalmente, as repetidas leituras de Proudhon, Antero de Quental enchia de luz as linhas da sua carta. Ao dizer que a grande revolução necessária só pode ser uma revolução moral, Antero reconhecia que governar não é lisonjear as paixões do povo – é acordar as suas virtudes, fortalece-las e apoiar-se nelas.
Antero, cujo individualismo extreme podia ser servido para o encerrar na orgulhosa solidão dos ultra-românticos, tornou-se, debaixo do magistério de Proudhon, duro inimigo das ideias e dos sentimentos que deram alma e corpo à Revolução Francesa.
Quando se cuidava que as doutrinas de Rousseau eram um dogma intangível, [143 – 144] Proudhon, arredando de si as sugestões do tempo, escrevia contra elas a mais mordaz e penetrante crítica que o século XIX produziu. É sob a invocação de Proudhon que, para estudar os problemas da economia moderna e da filosofia da história, se juntam hoje, em França, na mesma sala, os escritores monárquicos e os doutrinadores sindicalistas. Os seus métodos de exame e os seus argumentos variam segundo a origem intelectual dos que ali se reúnem, mas idêntico pensamento os prende a todos: a crítica e o combate è democracia.
Admiravelmente descreveu Proudhon a grosseira máquina democrática dizendo que ela era “un système politique, invente tout exprès pour le triomphe de la médiocrité parlière, du pédantisme intrigailleur, du journalisme subventionné, exploitant la réclame et le chantage; où les transactions de conscience, la vulgarité des ambitions, la pauvreté des idées, de même que le lieu commun oratoire et la faconde académique, sont des moyens assurés de succès; ou la contradiction et l’incon- [144 – 145] séquence, le manque de francise et d’audace, érigés en prudence et modération, sont perpétuellement à l’ordre du jour; un pareil système se refuse à la réfutation; il suffit de le peindre. L’analyser ce serait le grandir et quoi que fit le critique, en donner une fausse idée” (Contradictions politiques, pág. 222).
Como Proudhon, Antero de Quental é um mestre da contra-revolução sempre que se mostra liberto dos encantamentos de Michelet. Manter o seu nome na tabuleta dum centro republicano, é vergonhoso testemunho da mais rotunda e pedantesca ignorância.
Se querem, porém, conservar o título glorioso de Antero de Quental lá nessa “fumosa espelunca” do Porto, como ele chamava a semelhantes casas, não esqueçam então de escrever, à laia de divisa, no salão de festas, por cima da cadeira da presidência, aquelas palavras proféticas da sua carta: - “A nossa república é de garotos”.
(Luís de Almeida Braga in Sob o Pendão Real, Lisboa, Edições Gama, 1942, pp. 133-145.)
sábado, outubro 01, 2005
A CONDIÇÃO MILITAR
NO PRINCÍPIO da década de 80, o general Soares Carneiro, então chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, declarou publicamente que não era chefe de nenhum sindicato dos militares. Este foi o primeiro sintoma de que algo de substancial mudara na secular instituição Forças Armadas.
Desde há séculos que o chefe militar, além do direito de comandar, tem o dever de propiciar às suas tropas não só a satisfação das necessidades operacionais, mas também a dignidade que a sua nobre missão exige.
Ora, os militares são homens como os outros, que comem e se vestem e têm filhos na escola. Todos nos lembramos de que a tropa foi sempre «a miséria dourada», mas há situações de injustiça que convém não deixar extremar. Em 1980, um coronel tinha o mesmo vencimento que um juiz de círculo, que um professor universitário, que um chefe de serviço ou um director de serviço. Durante os últimos 25 anos, porque todas as outras profissões têm as suas organizações sindicais, e os seus lóbis de pressão esta situação alterou-se drasticamente; hoje o coronel tem um salário de 50% do juiz de círculo, de 65% do professor, de 70% do chefe de serviço e de 90% do director de serviço. Estas percentagens podem medir-se e confirmar-se no que toca ao vencimento dos outros postos das Forças Armadas.
Uma primeira conclusão deve, pois, ser tirada: os vencimentos dos militares têm-se desvalorizado muito em relação aos profissionais pagos com dinheiros públicos sem que tenham sido diminuídas as suas responsabilidades, donde que os militares têm razão para estar descontentes.
A falta de autoridade dos chefes militares para exercerem como deviam o «poder sindical», e assim interceder para que se reponha a justiça e não apareçam situações de ruptura, foi criada por Fernando Nogueira, à data ministro da Defesa, quando alterou as regras de escolha dos chefes militares.
Antes disso, era o corpo de generais que seleccionava três dos seus pares para, em seguida, o poder político eleger um deles. Desde então é o poder político que escolhe um general para chefiar um dado ramo das Forças Armadas, sem que os critérios tenham necessariamente a ver com o saber militar ou o prestígio dentro do ramo. Com este método, o general escolhido pode não ser o preferido pelos militares do ramo e, por outro lado, vai ficar sempre agradecido ao poder político, já que só dele dependeu a sua escolha. Desta forma, terá tendência a «fazer o jogo» do ministro da tutela e esquecer um pouco (ou muito) as suas responsabilidades na defesa das aspirações justas dos seus homens.
Por esta razão apareceram as Associações de Militares, no preenchimento do vácuo deixado em aberto pelos chefes militares. E os militares, abandonados que têm sido, viram nelas uma solução «sindical» para obstar a mais uma agressão do poder político que, depois da continuada desvalorização dos seus soldos, resolveu diminuir, ainda, algumas contrapartidas sociais. Foi a gota de água que, em vez de insípida, tem sabor a humilhação.
Mas é preciso reconhecer que as Associações Militares jamais poderão (ou deverão) ter estatuto de verdadeiro sindicato. Em primeiro lugar, porque sendo os militares detentores de armas poderiam usar uma força desproporcionada para resolver os seus problemas; em segundo lugar, porque não existe aqui uma relação patrão-empregado. Por muito que custe aos pragmáticos modernos, a relação do militar é com a Pátria e só a ela faz o seu juramento de fidelidade. Nesta ordem de ideias, a solução única, até para que os problemas de manutenção da disciplina não ecludam, é dar a César o que é de César. Há que voltar a centrar nas chefias militares a capacidade e a independência bastantes para que exerçam em plenitude a defesa «sindical» dos seus homens. Isto acontecendo, os militares voltarão a pensar que «têm chefe» e a disciplina passará a ser muito mais empática e consentida.
E qual o papel reservado para as Associações?
É claro que, a meu ver, não será a luta para-sindical; os militares têm razão e não vão perdê-la na rua a gritar descabeladamente. Os militares não são trabalhadores da guerra, mas perseguidores da paz e defensores da Pátria. Não esperam ser tratados com privilégios, embora esperem ver reconhecida a sua nobre função. E querem ver na hierarquia formal uma linha ascendente de exigência, mas também a defensora intransigente da dignidade da função.
Quero acreditar, portanto, que constituídas que são por portugueses de todas as idades com um capital de sabedoria acumulado, poderão as Associações ser órgãos de reflexão sobre os mais diversos problemas da Defesa Nacional (não só os especificamente militares), fazendo o levantamento de áreas sensíveis de possível conflito e alertando e ajudando as chefias no prosseguimento das suas tarefas.
Saiba o poder político diminuir o nível de soberba com que (não) dialoga com a instituição Forças Armadas, passe a ter por elas a consideração que merecem, e todas estas questiúnculas deixarão de se somar aos tantos e tão graves problemas que Portugal neste momento enfrenta. Não é despiciendo que o poeta tenha dito que Portugal é obra de soldados.
Luís Morais Pequeno
Tenente-coronel da Força Aérea
In «Expresso», 1 de Outubro de 2005.
Desde há séculos que o chefe militar, além do direito de comandar, tem o dever de propiciar às suas tropas não só a satisfação das necessidades operacionais, mas também a dignidade que a sua nobre missão exige.
Ora, os militares são homens como os outros, que comem e se vestem e têm filhos na escola. Todos nos lembramos de que a tropa foi sempre «a miséria dourada», mas há situações de injustiça que convém não deixar extremar. Em 1980, um coronel tinha o mesmo vencimento que um juiz de círculo, que um professor universitário, que um chefe de serviço ou um director de serviço. Durante os últimos 25 anos, porque todas as outras profissões têm as suas organizações sindicais, e os seus lóbis de pressão esta situação alterou-se drasticamente; hoje o coronel tem um salário de 50% do juiz de círculo, de 65% do professor, de 70% do chefe de serviço e de 90% do director de serviço. Estas percentagens podem medir-se e confirmar-se no que toca ao vencimento dos outros postos das Forças Armadas.
Uma primeira conclusão deve, pois, ser tirada: os vencimentos dos militares têm-se desvalorizado muito em relação aos profissionais pagos com dinheiros públicos sem que tenham sido diminuídas as suas responsabilidades, donde que os militares têm razão para estar descontentes.
A falta de autoridade dos chefes militares para exercerem como deviam o «poder sindical», e assim interceder para que se reponha a justiça e não apareçam situações de ruptura, foi criada por Fernando Nogueira, à data ministro da Defesa, quando alterou as regras de escolha dos chefes militares.
Antes disso, era o corpo de generais que seleccionava três dos seus pares para, em seguida, o poder político eleger um deles. Desde então é o poder político que escolhe um general para chefiar um dado ramo das Forças Armadas, sem que os critérios tenham necessariamente a ver com o saber militar ou o prestígio dentro do ramo. Com este método, o general escolhido pode não ser o preferido pelos militares do ramo e, por outro lado, vai ficar sempre agradecido ao poder político, já que só dele dependeu a sua escolha. Desta forma, terá tendência a «fazer o jogo» do ministro da tutela e esquecer um pouco (ou muito) as suas responsabilidades na defesa das aspirações justas dos seus homens.
Por esta razão apareceram as Associações de Militares, no preenchimento do vácuo deixado em aberto pelos chefes militares. E os militares, abandonados que têm sido, viram nelas uma solução «sindical» para obstar a mais uma agressão do poder político que, depois da continuada desvalorização dos seus soldos, resolveu diminuir, ainda, algumas contrapartidas sociais. Foi a gota de água que, em vez de insípida, tem sabor a humilhação.
Mas é preciso reconhecer que as Associações Militares jamais poderão (ou deverão) ter estatuto de verdadeiro sindicato. Em primeiro lugar, porque sendo os militares detentores de armas poderiam usar uma força desproporcionada para resolver os seus problemas; em segundo lugar, porque não existe aqui uma relação patrão-empregado. Por muito que custe aos pragmáticos modernos, a relação do militar é com a Pátria e só a ela faz o seu juramento de fidelidade. Nesta ordem de ideias, a solução única, até para que os problemas de manutenção da disciplina não ecludam, é dar a César o que é de César. Há que voltar a centrar nas chefias militares a capacidade e a independência bastantes para que exerçam em plenitude a defesa «sindical» dos seus homens. Isto acontecendo, os militares voltarão a pensar que «têm chefe» e a disciplina passará a ser muito mais empática e consentida.
E qual o papel reservado para as Associações?
É claro que, a meu ver, não será a luta para-sindical; os militares têm razão e não vão perdê-la na rua a gritar descabeladamente. Os militares não são trabalhadores da guerra, mas perseguidores da paz e defensores da Pátria. Não esperam ser tratados com privilégios, embora esperem ver reconhecida a sua nobre função. E querem ver na hierarquia formal uma linha ascendente de exigência, mas também a defensora intransigente da dignidade da função.
Quero acreditar, portanto, que constituídas que são por portugueses de todas as idades com um capital de sabedoria acumulado, poderão as Associações ser órgãos de reflexão sobre os mais diversos problemas da Defesa Nacional (não só os especificamente militares), fazendo o levantamento de áreas sensíveis de possível conflito e alertando e ajudando as chefias no prosseguimento das suas tarefas.
Saiba o poder político diminuir o nível de soberba com que (não) dialoga com a instituição Forças Armadas, passe a ter por elas a consideração que merecem, e todas estas questiúnculas deixarão de se somar aos tantos e tão graves problemas que Portugal neste momento enfrenta. Não é despiciendo que o poeta tenha dito que Portugal é obra de soldados.
Luís Morais Pequeno
Tenente-coronel da Força Aérea
In «Expresso», 1 de Outubro de 2005.
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