Apresentação de «Os Pilares da Democracia» por José Manuel Quintas
Mário Saraiva, Os Pilares da Democracia, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1949 (2ª edição, Livro Aberto, 2005).
Este livro tem em fundo a Velha Europa em agonia militar. Enquanto ia sendo escrito, entre 1944 e 1948, deu-se o avanço soviético na Polónia e na Crimeia, na Finlândia, Estónia, Roménia e Hungria; os aliados entraram em Roma, desembarcaram na Normandia, e tomaram Paris e Bruxelas; deu-se o encontro de Ialta entre Estaline, Churchill e Roosevelt; os soviéticos tomaram Berlim e os americanos Nuremberga; os alemães renderam-se incondicionalmente em Reims e os japoneses na Baia de Tóquio, depois dos americanos lançarem bombas atómicas sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki. Em 1949, quando por fim surgiu a 1ª edição de Os Pilares da Democracia, a Europa ocidental estava já sob a protecção de uns EUA que executavam o «Plano Marshall» e aceitavam integrar a Aliança Atlântica. Foi por essa altura que Mário Saraiva (1910-1998) ousou perguntar, no prólogo: "Será a Democracia o regime do próximo futuro?"
A sua resposta revela que não se deixou perturbar pela agonia europeia, pela ameaça atómica ou pelos planos de Marshall: também no fim da guerra de 1914-18, o tratado de Versalhes assinalara "a vitória das democracias", e, no entanto…
Mas eis o cerne do pensamento de Mário Saraiva a este respeito:
"uma coisa é a vitória pela força das armas e outra o triunfo das ideias. Estas não se esmagam com o peso da metralha, antes se reduzem à impotência pela razão serena do argumento".
"Se o desfecho de uma luta ideológica pode marcar um rumo à eterna massa ondulante dos oportunistas e dos aderentes, o que é verdade é que ele não altera em nada a posição primacial da contenda das ideias, pois não é a sorte de uma guerra que põe ou tira razões a uma doutrina política".
Na sua juventude, Mário Saraiva recusara-se a alinhar com a República autocrática de Oliveira Salazar, seguindo o exemplo dos mestres integralistas lusitanos - Hipólito Raposo, Luís de Almeida Braga, Alberto de Monsaraz, Pequito Rebelo, Rolão Preto. Recusava-se agora também a alinhar com a "massa ondulante dos oportunistas e aderentes" da novel Democracia. Imperturbável face ao desfecho da guerra, confiando no poder das conclusões da inteligência, entendia que aquela hora era propícia para reafirmar os princípios do ideário monárquico integralista que bem cedo adoptara.
Mas, e no seu ponto de vista, assistia-se a uma verdadeira vitória da Democracia?
As interrogativas que alinhou dissipam qualquer dúvida acerca do sentido da sua resposta:
"E não vimos nós Mussolini e Hitler reivindicarem para os seus regimes o título de democráticos, invocando razões nas maiorias que os levaram ao poder e nos plebiscitos que os apoiaram?"
"E não vemos nós também Estaline, o ditador totalitário de todas as Rússias, denominar de democracia autêntica o seu sistema soviético?"
"E o que diremos do "fascista" Péron, vitorioso democraticamente na República Argentina?"
Ao aludir assim a algumas das mais recentes prostituições da palavra "Democracia", Mário Saraiva iluminava perante o leitor um velho jogo de simulações e de ludíbrios: no século XX, tanto eram democratas os fiéis aos princípios da Revolução Francesa de 1789, como os partidários da Revolução de 1917; e eram-no igualmente os jacobinos totalitários, Hitler e Mussolini.
Mário Saraiva começa na verdade por uma clara identificação do seu objecto, arredando expressamente o presidencialismo dos Estados Unidos da América, as Democracias do Reino Unido e do Norte da Europa ou a Democracia da republicana Suíça. Nas suas palavras, este livro tem por assunto a Democracia "que tem na França a sua terra natal"; a Democracia do monopólio da representação política por intermédio de partidos ideológicos.
Em 1949, Portugal surgia ao lado dos subscritores do Tratado do Atlântico Norte, o "Tratado das Democracias". Deixava Mário Saraiva passar incólume a Democracia de Oliveira Salazar? Obviamente que não. No seu entendimento, a 2ª República não deixou de se inspirar no referido modelo francês, ao menos num ponto crucial: "O partido único é ainda a solução partidária. É um regime de partidos em que um só domina todos os outros".
Ao pensar num regime político que em Portugal viesse substituir o «Estado Novo», todavia, o mais certo, o mais provável, seria voltarmos ao pluripartidarismo experimentado durante a 1ª República e no período final da Monarquia. Não se enganou.
Mário Saraiva diz-nos que tem por objectivo principal revelar a debilidade doutrinária do parlamentarismo. Uma simples olhadela ao índice deste livro, assinalando temas como "Igualdade", "Eleições", "Parlamentos", "Soberania Popular", "Liberdade" e "Política Partidária", revela-nos o propósito de um minucioso exame aos seus argumentos fundamentais, desde o conceito-base da igualdade dos cidadãos até ao corolário da representação por intermédio de partidos ideológicos. Todavia, começando por contrariar a igualdade abstracta do sufrágio universal através da defesa da igualdade concreta dos cidadãos organizados nos corpos intermédios, bem cedo o seu articulado de razões se dirige à apresentação de uma alternativa democrática, assente no sufrágio orgânico e na representação nacional através dos municípios e dos sindicatos.
A sua primeira citação é sintomaticamente retirada da rádio Mensagem do Natal de 1944 pelo Papa Pio XII, na qual se denuncia o Estado deixado ao exclusivo arbítrio e à nivelação mecânica das massas. Em reforço das suas ideias, Mário Saraiva não deixa de recorrer também aos clássicos do anti-parlamentarismo português - Alexandre Herculano, Antero de Quental, Oliveira Martins, Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão, Fialho de Almeida. Cita-os extensa e abundantemente, em páginas de antologia demolidora, mas sem pessimismo ou desencanto, antes com o intuito de servir a solução que preconiza: ao regime da centralização demo-liberal por intermédio de partidos ideológicos opõe o regime descentralizador dos municípios e sindicatos. Fazendo jus ao pensamento integralista, também para ele o regime perfeito será o «regime misto» de São Tomás de Aquino, no qual seja conjugada a Democracia, a Aristocracia e a Monarquia.
Mas este livro de Mário Saraiva apresenta um especial interesse por outra razão: o de nos fornecer alguns traços salientes de uma heterodoxa interpretação do processo histórico de implantação do Parlamentarismo em Portugal. O assunto é lançado ao tratar a "soberania popular" e vale bem a pena resumir as suas linhas de força.
Os adeptos do demo-liberalismo – partidocratas ou não – dizem que são pelo "governo do povo pelo povo". Uma pergunta se impõe: "pode, ao mesmo tempo, o Povo ser sujeito e objecto de soberania?".
A dificuldade lógica é superada, dizendo-se que, afinal, o povo não governa, mas escolhe quem governa segundo a sua vontade. Mas será verdade que os políticos governam segundo a vontade do povo? Talvez assim seja em democracia directa, mas sê-lo-á nos regimes de partidos?
Em regime de partidos, o povo é governado por uma minoria segundo a indicação das maiorias. Não é a maioria que governa. Quem governa é o grupo de políticos directores do partido ou partidos vencedores.
"Ora – argumenta Mário Saraiva - os partidos não se formam de baixo para cima, mas ao contrário, como empresa de um grupo que institui o partido, o qual fabrica uma maioria e depois governa em nome da maioria que fabricou. Aí está precisamente a burla. Proclama-se que o povo é soberano quando na verdade, por intermédio do voto, a soberania é entregue a outrém. O regime de partidos outra coisa não é que a centralização do poder nas mãos de uns poucos, os poucos que pertencem aos directórios partidários."
Chegado a este ponto, Mário Saraiva começa então a expor a história portuguesa da conquista do poder pelos profissionais da política, que não foi uma invenção ou imposição dos chamados "republicanos", antes uma "invenção de letrados para proveito próprio e de quem lhes adiantou o capital".
Tal como noutros lugares, os candidatos a profissionais da política começaram por se fazer passar por aliados e protectores do povo, seduzindo-o com a malícia de fórmulas vagas mas sonoras – "liberdade", "soberania popular". Uma importante lição importa no entanto retirar do estudo da nossa década de 30 do século XIX: "O povo deixou-se cair no logro e certos reis (os reis filósofos) também". Isto é, em Portugal, os profissionais da política instalaram-se sob o manto da Instituição Real.
Ao ler os capítulos finais deste livro, vem-nos forçosamente à memória o célebre grupo financeiro criado por Juan Mendizabal para servir o imperador do Brasil contra a Monarquia legítima de D. Miguel. Como esquecer o papel desempenhado por esse grupo financeiro, pouco depois apoiado pela Inglaterra, pela França e pela Espanha da Quádrupla Aliança? Mário Saraiva conclui serenamente: "a partidocracia foi implantada entre nós à força de ideias e de armas estrangeiras".
Mas há uma data e um decreto que Mário Saraiva não deixa de referir, retirando lição. Foi em 7 de Maio de 1834 que se dissolveram os órgãos do Estado que davam ao braço popular um efectiva e forte interferência na governação pública. Foi nessa data que se acabou com os lugares de Juiz e Procuradores do Povo, a Casa dos Vinte e Quatro e os Grémios dos diferentes Ofícios. O Ministro que assim decretava, pouco depois – lembra também Mário Saraiva – acolheu "com viva satisfação" a fundação da Associação Mercantil Lisbonense. Ou seja: proibiam-se as organizações operárias mas aprovavam-se com viva satisfação as organizações capitalistas. Não admira. Também em França, no período da Revolução, foi em nome da Liberdade que se suprimiram as Corporações do Trabalho (Lei «Le Chapelier») e, sempre em nome da Liberdade, que se decretou a pena de morte para aqueles que as pretendessem reconstituir.
Tal como em França, também entre nós as primeiras vítimas da classe política foram as organizações operárias. Mas a segunda vítima haveria de ser a pessoa do Rei e, pouco depois, a própria Instituição Real. Para que a apropriação do Estado pelos profissionais da política fosse completa - o povo fora já expropriado dos seus órgãos privativos, dos seus municípios e das suas corporações de ofícios – bastava apear o Rei e colocar no seu lugar um Presidente. Foi o que se fez em 5 de Outubro de 1910. O último escolho, a última dificuldade a vencer pela classe política na via do domínio total do Estado, haveria de ser o próprio Rei.
- Não estão aí uns sugestivos pilares onde assentar uma revisão do processo histórico que introduziu o Parlamentarismo em Portugal?
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