NO PRINCÍPIO da década de 80, o general Soares Carneiro, então chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, declarou publicamente que não era chefe de nenhum sindicato dos militares. Este foi o primeiro sintoma de que algo de substancial mudara na secular instituição Forças Armadas.
Desde há séculos que o chefe militar, além do direito de comandar, tem o dever de propiciar às suas tropas não só a satisfação das necessidades operacionais, mas também a dignidade que a sua nobre missão exige.
Ora, os militares são homens como os outros, que comem e se vestem e têm filhos na escola. Todos nos lembramos de que a tropa foi sempre «a miséria dourada», mas há situações de injustiça que convém não deixar extremar. Em 1980, um coronel tinha o mesmo vencimento que um juiz de círculo, que um professor universitário, que um chefe de serviço ou um director de serviço. Durante os últimos 25 anos, porque todas as outras profissões têm as suas organizações sindicais, e os seus lóbis de pressão esta situação alterou-se drasticamente; hoje o coronel tem um salário de 50% do juiz de círculo, de 65% do professor, de 70% do chefe de serviço e de 90% do director de serviço. Estas percentagens podem medir-se e confirmar-se no que toca ao vencimento dos outros postos das Forças Armadas.
Uma primeira conclusão deve, pois, ser tirada: os vencimentos dos militares têm-se desvalorizado muito em relação aos profissionais pagos com dinheiros públicos sem que tenham sido diminuídas as suas responsabilidades, donde que os militares têm razão para estar descontentes.
A falta de autoridade dos chefes militares para exercerem como deviam o «poder sindical», e assim interceder para que se reponha a justiça e não apareçam situações de ruptura, foi criada por Fernando Nogueira, à data ministro da Defesa, quando alterou as regras de escolha dos chefes militares.
Antes disso, era o corpo de generais que seleccionava três dos seus pares para, em seguida, o poder político eleger um deles. Desde então é o poder político que escolhe um general para chefiar um dado ramo das Forças Armadas, sem que os critérios tenham necessariamente a ver com o saber militar ou o prestígio dentro do ramo. Com este método, o general escolhido pode não ser o preferido pelos militares do ramo e, por outro lado, vai ficar sempre agradecido ao poder político, já que só dele dependeu a sua escolha. Desta forma, terá tendência a «fazer o jogo» do ministro da tutela e esquecer um pouco (ou muito) as suas responsabilidades na defesa das aspirações justas dos seus homens.
Por esta razão apareceram as Associações de Militares, no preenchimento do vácuo deixado em aberto pelos chefes militares. E os militares, abandonados que têm sido, viram nelas uma solução «sindical» para obstar a mais uma agressão do poder político que, depois da continuada desvalorização dos seus soldos, resolveu diminuir, ainda, algumas contrapartidas sociais. Foi a gota de água que, em vez de insípida, tem sabor a humilhação.
Mas é preciso reconhecer que as Associações Militares jamais poderão (ou deverão) ter estatuto de verdadeiro sindicato. Em primeiro lugar, porque sendo os militares detentores de armas poderiam usar uma força desproporcionada para resolver os seus problemas; em segundo lugar, porque não existe aqui uma relação patrão-empregado. Por muito que custe aos pragmáticos modernos, a relação do militar é com a Pátria e só a ela faz o seu juramento de fidelidade. Nesta ordem de ideias, a solução única, até para que os problemas de manutenção da disciplina não ecludam, é dar a César o que é de César. Há que voltar a centrar nas chefias militares a capacidade e a independência bastantes para que exerçam em plenitude a defesa «sindical» dos seus homens. Isto acontecendo, os militares voltarão a pensar que «têm chefe» e a disciplina passará a ser muito mais empática e consentida.
E qual o papel reservado para as Associações?
É claro que, a meu ver, não será a luta para-sindical; os militares têm razão e não vão perdê-la na rua a gritar descabeladamente. Os militares não são trabalhadores da guerra, mas perseguidores da paz e defensores da Pátria. Não esperam ser tratados com privilégios, embora esperem ver reconhecida a sua nobre função. E querem ver na hierarquia formal uma linha ascendente de exigência, mas também a defensora intransigente da dignidade da função.
Quero acreditar, portanto, que constituídas que são por portugueses de todas as idades com um capital de sabedoria acumulado, poderão as Associações ser órgãos de reflexão sobre os mais diversos problemas da Defesa Nacional (não só os especificamente militares), fazendo o levantamento de áreas sensíveis de possível conflito e alertando e ajudando as chefias no prosseguimento das suas tarefas.
Saiba o poder político diminuir o nível de soberba com que (não) dialoga com a instituição Forças Armadas, passe a ter por elas a consideração que merecem, e todas estas questiúnculas deixarão de se somar aos tantos e tão graves problemas que Portugal neste momento enfrenta. Não é despiciendo que o poeta tenha dito que Portugal é obra de soldados.
Luís Morais Pequeno
Tenente-coronel da Força Aérea
In «Expresso», 1 de Outubro de 2005.
Sem comentários:
Enviar um comentário