quarta-feira, outubro 05, 2005

UM PROFETA DA REPÚBLICA

por Luís de Almeida Braga

CONTAM os jornais do Porto que naquela cidade se realizaram imponentes festejos ao ser inaugurada a nova sede do Grupo republicano recreativo Antero de Quental.

Nada, na verdade, mais recreativo do que pôr sob o patrocínio deste altíssimo nome um centro republicano! Eu tenho a vaga desconfiança de que os ilustres membros desta preclara agremiação não fazem ideia muito perfeita das obras e do pensamento de Antero de Quental. Homens de ilustração rudimentar, mal [133 – 134] soletrando alguns as primeiras letras, não venham dizer-me que serão esses os melhores devotos dos Sonetos ou os mais aproveitados leitores do ensaio sobre as Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX.

Se me fosse permitido remover o sentido comum de uma palavra, para dentro dela despertar a antiga significação obliterada, eu diria que Antero foi um matemático, tal como na Grécia se entendeu este vocábulo.

Toda a sua preocupação consiste em apreender as relações entre o homem e a vida. É o enigma da vida que, acima de tudo, o preocupa. Assim a sua poesia traz sempre consigo, como uma chaga sangrenta, a marca abrasada da inquietação espiritual que o consome.

Antero não é grande poeta senão quando tenta ser grande filósofo. E se do filósofo teve todas as qualidades, não lhe faltaram também todos os defeitos. A sua poesia é abstrusa, difícil, deixando as mais das vezes profundamente oculto o seu [134 – 135] sentido íntimo. Não é leitura de agrado para multidões iletradas.

O que em Antero nos interessa, comove e alenta a nossa admiração, não é a palavra encantada, a graça da imagem ou a estrofe colorida. A beleza dos Sonetos consiste na angústia moral em que se queimou a alma do poeta. Antero soube como ninguém explicar o coração de todos nós, mas não pode conseguir, quase nunca, que ele, enternecido, batesse mais apressado dentro do nosso peito. A sua imaginação era viva, mas de asas tão curtas que, voando alto, era estreito o voo.

De si mesmo fugia, como se fosse um fantasma. Levado pelo vento de mil desejos impossíveis, não acertava consigo. Turbava-lhe a tristeza a consciência. E a dúvida de todas as coisas, o cansaço de tudo, deixavam-no agonizante nas encruzilhadas do pensamento...

Este lugar é uma trincheira de guerra, áspera e rude, e não se estendem por aqui as sombras sossegadas do jardim de [135 – 136] Academus, onde é gostoso divagar parolando sobre as quimeras da literatura. Desviemos, pois, os olhos para outro lado. E porque não se entende que versos como esses se aprendam para cantar nas tabernas, nem para acompanhar o fado pelas vielas, às latas horas da noite, seria para ver se as intenções políticas e sociais do poeta permitem fazer dele orago em capela republicana, se não viesse o número 29 do ano VIII da Revista de História (publicação louvada pelo Ministério da Instrução Pública em portaria de 9 de Dezembro de 1914) dar à estampa uma carta de Antero de Quental que, desapiedadamente, deita abaixo todas as ilusões sobre o seu republicanismo.

Ofereço-a à leitura da digníssima direcção do Grupo republicano recreativo Antero de Quental, e creio que não lhe será precisa longa meditação para em assembleia geral explicar aos seus veneráveis consócios que é necessário modificar o nome da associação, porque Antero de Quental era um descarado reaccionário!

[ 136 – 137] Por tal modo se preparou a República, que os melhores espíritos, os mais nobres e os mais livres, logo a temeram e detestaram. Eça de Queirós dizia apavorado, negando que Ramalho fosse republicano: “Em política tem-se dito que Ramalho Ortigão é republicano. Nada menos exacto. Ramalho, creio, teme a república, tal qual é tramada nos Clubs amadores de Lisboa e Porto. A república em verdade, feita primeiro pelos partidos constitucionais dissidentes, e refeita depois pelos partidos jacobinos, que tendo vivido fora do poder e do seu maquinismo, a tomam como uma carreira, seria em Portugal uma balbúrdia sanguinolenta” (A Renascença); e João de Deus, ferido já o terno coração, escreveu: “Nas obras do Arcebispo de Paris, assassinado por uns carrascos, que não podem pertencer a partido nenhum, e a quem por isso não chamo comunistas, respira-se um ar puríssimo de liberdade, e até diria republicano, se a república, como aí se está apregoando, não nos [137 – 138] estivesse prometendo o mais tremendo despotismo” (A Cruz do Operário).

Antero de Quental deixou ferretado em muitos lugares o seu horror pela “fantasia republicana”, como lhe chamava na carta em que a Oliveira Martins anunciou o aziago folheto sobre a posição de Portugal perante a revolução de Espanha.

Tão inquieto sempre, sempre tão agitado por contrários sentimentos e ideais contrários, era nele constante o empenho de combater os nossos republicanos, - “raça pérfida”, no seu expressivo dizer – e tanto que por certo centro republicano foi oficialmente declarado traidor, e nos jornais do bando, O Trinta, A República Federal, Emancipação, que Teófilo Braga inspirava, grosseiros insultos lhe cobriam o nome.

“O pior que nos podia acontecer é sermos amanhã república” – anunciava em Julho de 73 ao seu dilecto confidente, o mago evocador da História da República Romana. E acrescentando, com justo conhecimento do comum sentir, [138 – 139] que Portugal não era republicano, advertia que “não o serão os declamadores e os pulhas que actualmente constituem a quase totalidade do grupo republicano quem logre converter o velho desconfiado que se chama o povo português” (Cartas Inéditas de Antero de Quental a Oliveira Martins, pág. 152).

Não se enganou o poeta. As armas afiadas “no laboratório merdoso do Teófilo”, conforme a enojada expressão anteriana, não podiam atingir a alma da nossa gente. A República, imposta por traiçoeiro tumulto, matem-se contra o geral querer, trazendo a nação amordaçada e agrilhoada. O povo repele o regime que lhe esconde o Céu e toma por crimes as suas virtudes.

A ajuntar ao que sabíamos, ei-la, a prometida carta de Antero, dirigida a João Lobo de Moura, íntimo amigo do poeta:

Meu caro Lobo – Pensei que me ia anunciar a sua estada em Lisboa e eis que me diz não saber ainda quando nem se será transferido. Gosto da resposta do [139 – 140] Barjona: tem um merecimento aquele rapaz, que o distingue no meio dos seus sodales; é a franqueza no cinismo; creio que por isso ficará na história do constitucionalismo português como uma espécie de M. de Calonne, sabe, aquele último e cinicamente espirituoso ministro de Luís XVI, que o Michelet nos descreve empurrando alegremente para o abismo a velha monarquia.
A independência de ordem jurídica no actual regime é uma coisa engraçadíssima. Mas quê, meu caro, o regime que está para vir, com a gente que o prepara, ainda nos há-de mostrar coisas mais bonitas. V. Faz lá a ideia dos republicanos portugueses! Tive ocasião de os tratar de perto este ano, e declaro-lhe que quase lhes fiquei preferindo o próprio Barros e Cunha, o próprio Melício, o próprio Santos Silva! Sabe V. Quem é que está hoje sendo um dos grandes repúblicos em Lisboa? Adivinhe... o Teófilo Braga! Redige um jornal intitulado O Rebate (traduza Le Rappel) em cujos artigos de fundo desenvolve o homem todos os recursos do estilo colhido nas antigas leituras do Piolho Viajante. Fala nesta choldra e outras amenidades de linguagem, e propõe-se enforcar toda a gente, começando desde já por enforcar a gramática, o senso comum e a decência. É uma espécie de Marat de soalheiro, que faz rir mas enoja, e enoja tanto mais quanto é lido, o que nos dá a medida da capacidade intelectual e moral do público republicano. Creio que teremos a República em Portugal, mais ano, menos ano; mas, francamente, não o desejo, a não ser num ponto de vista todo pessoal, como espectáculo e ensino. Falam de Espanha com desdém – e há de quê – mas eles, os briosos portugueses, estão destinados a dar ao mundo um espectáculo republicano ainda mais curioso; se a república espanhola é de doidos, a nossa será de garotos.
A grande revolução, meu caro, só pode ser uma revolução moral, e essa não se faz dum dia para o outro, nem se decreta nas espeluncas fumosas das conspirações, e sobretudo não se prepara com publicações rancorosas de espírito estreitíssimo e ermas da menos ideia prática. Quando nós virmos o Peniche e o Valadares, e o Teófilo e o Bonança ministros duma revolução compreenderemos tudo isto...
Mas alto! Isto não é artigo de fundo!....
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do c.
Antero

São suficientemente claros os termos desta carta, e até tão vivos por vezes, que juntar-lhe comentários seria apenas demorar a sua lição.

Quem procurou esmiuçar os escritos de Antero de Quental ou leu o exaustivo estudo crítico de António Sardinha, conhece a influência que sobre o espírito do poeta exerceram as doutrinas de Proudhon, a ponto de, escrevendo a Oliveira Martins, se chamar “arcade proudhoniano”.

[142 – 143] Ao terminar a carta, da qual apenas transcrevi a parte política, Antero declara ter relido ultimamente o famoso capítulo de Proudhon sobre a morte e que ele lhe fizera acudir ideias bastantes para compor com elas uma Filosofia da Morte, no gosto dos tratados de Séneca e de Cícero, mas com mais profundidade.

Confessando assim, incidentalmente, as repetidas leituras de Proudhon, Antero de Quental enchia de luz as linhas da sua carta. Ao dizer que a grande revolução necessária só pode ser uma revolução moral, Antero reconhecia que governar não é lisonjear as paixões do povo – é acordar as suas virtudes, fortalece-las e apoiar-se nelas.

Antero, cujo individualismo extreme podia ser servido para o encerrar na orgulhosa solidão dos ultra-românticos, tornou-se, debaixo do magistério de Proudhon, duro inimigo das ideias e dos sentimentos que deram alma e corpo à Revolução Francesa.

Quando se cuidava que as doutrinas de Rousseau eram um dogma intangível, [143 – 144] Proudhon, arredando de si as sugestões do tempo, escrevia contra elas a mais mordaz e penetrante crítica que o século XIX produziu. É sob a invocação de Proudhon que, para estudar os problemas da economia moderna e da filosofia da história, se juntam hoje, em França, na mesma sala, os escritores monárquicos e os doutrinadores sindicalistas. Os seus métodos de exame e os seus argumentos variam segundo a origem intelectual dos que ali se reúnem, mas idêntico pensamento os prende a todos: a crítica e o combate è democracia.

Admiravelmente descreveu Proudhon a grosseira máquina democrática dizendo que ela era “un système politique, invente tout exprès pour le triomphe de la médiocrité parlière, du pédantisme intrigailleur, du journalisme subventionné, exploitant la réclame et le chantage; où les transactions de conscience, la vulgarité des ambitions, la pauvreté des idées, de même que le lieu commun oratoire et la faconde académique, sont des moyens assurés de succès; ou la contradiction et l’incon- [144 – 145] séquence, le manque de francise et d’audace, érigés en prudence et modération, sont perpétuellement à l’ordre du jour; un pareil système se refuse à la réfutation; il suffit de le peindre. L’analyser ce serait le grandir et quoi que fit le critique, en donner une fausse idée” (Contradictions politiques, pág. 222).

Como Proudhon, Antero de Quental é um mestre da contra-revolução sempre que se mostra liberto dos encantamentos de Michelet. Manter o seu nome na tabuleta dum centro republicano, é vergonhoso testemunho da mais rotunda e pedantesca ignorância.

Se querem, porém, conservar o título glorioso de Antero de Quental lá nessa “fumosa espelunca” do Porto, como ele chamava a semelhantes casas, não esqueçam então de escrever, à laia de divisa, no salão de festas, por cima da cadeira da presidência, aquelas palavras proféticas da sua carta: - “A nossa república é de garotos”.


(Luís de Almeida Braga in Sob o Pendão Real, Lisboa, Edições Gama, 1942, pp. 133-145.)

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