quinta-feira, março 17, 2005

O PACOTE

CARTA DO CANADÁ

por Fernanda Leitão

Envelhecer trouxe-me algumas coisas menos boas fisicamente, mas algumas muito boas no que diz respeito ao espírito. Uma delas foi ficar com a certeza de que se aprende muito ouvindo com atenção as pessoas simples, os desconhecidos de acaso, aqueles que nos prestam serviços e a quem nós não sei se servimos para alguma coisa.
Gosto de conversar com o porteiro do prédio em que vivo, uma unidade cooperativa no centro histórico de Toronto em que habitam mais de 200 pessoas, de várias idades e estados, entre as quais 15 crianças, algumas já aqui nascidas entre nós. É uma comunidade em que cada qual goza a absoluta privacidade do seu apartamento e o respeito da organização para a qual contribuímos através de grupos de trabalho, que vão desde o apoio a pessoas doentes até ao (belíssimo) jardim que temos no terraço sobre o Lago Ontário, passando pela organização de festas e um jornal (de que fiz parte até há pouco tempo). Trabalha-se bastante e ganha-se muito mais do que dinheiro, porque é a satisfação e a harmonia que recolhemos connosco. Os prémios anuais dados pela federação são um suplemento agradável, mas não um objectivo.
Sou a única portuguesa no prédio de 14 andares e 140 apartamentos. Sabe-me bem conversar em espanhol com o Luiz, assim se chama o porteiro, que é um exilado chileno desde que Allende foi morto e Pinochet subiu ao poder. Temos pontos em comum, para além do sange latino e da fala meridional. Não somos comunistas, abominamos ditaduras de qualquer cor, temos pena que o mundo não seja melhor, gostamos de rir, de boas piadas, de sangria e duns petiscos à nossa maneira, e em geral não temos pressa que a terra dê a volta. Aconteceu-nos vir parar a este país, que tão bem nos tem tratado, aceitamos a situação com realismo. Mas Pátria é Pátria, tal como Mãe é Mãe. Só há uma.
Como o leitor calcula, o Luiz e eu falamos muito de política. Contamos um ao outro factos passados, sonhos desfeitos dos nossos povos, façanhas de políticos. Sobretudo antes ou depois de eleições, sejam elas do Canadá ou dos nossos países, dá-nos para uns balanços sofridos. Criticamos esquerdas e direitas naquilo que parece ter passado a ser um denominador comum mundial: a corrupção, o laxismo, a irresponsabilidade.
Esta manhã o Luiz disse-me:
- Sabe, o problema com isto das eleições é que não podemos votar por parcelas. Temos de comprar o pacote todo. Vem de tudo e tudo misturado. El problema, señora, es el pacote.
Tenho pacote, ou lição, sem esperar. Surpreendo-me ao pensar que os povos, embora de forma difusa e remota, parecem sentir a nostalgia das democracias directas, das cortes em que, de facto, o povo tinha voz, lado a lado com as outras classes. E por isso formavam um todo, uma unidade, uma força. Quando luzia um ideal, todos se empolgavam. Quando surgia o inimigo, todos à uma o escorraçavam.
Era assim quando Portugal batia o pé à Espanha.
País de partidos divididos entre si e dentro de si, país partido, em que independentistas espanhóis já vêm ao beija-mão do patriarca das entregas sem consulta, enquanto os usurários e outros salafrários invadem a economia, aflitos com um dia a dia cada vez mais de circo e menos de pão, os portugueses precisam de um Ideal. Tanto quanto de chuva. Assim o Céu oiça.

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