Jornais Assaltados e “Empastelados”
Os assaltos a jornais constituíram uma novidade introduzida na vida política portuguesa assim que se proclamou a república. Entre Outubro de 1910 e Maio de 1911 foram destruídos todos os sobreviventes da imprensa monárquica. Depois a fúria assaltante dirigiu-se para a imprensa católica. Alguns dos jornais assaltados voltaram a publicar-se e foram de novo assaltados, sofrendo o material tipográfico o “empastelamento”. Este novo conceito que entrou no vocabulário político da república, o “empastelamento”, consistia em espalhar ou amontoar no chão os caracteres tipográficos, o que impedia o trabalho de composição dos textos por vários dias.
Os directores e colaboradores dos jornais assaltados eram conduzidos ao governo civil ou ao quartel da polícia, onde recebiam, umas vezes ordem de suspensão do jornal, outras vezes ordem de expulsão da cidade ou do país. A prática dos assaltos a jornais vulgarizou-se e estendeu-se aos conflitos entre facções republicanas, que também se assaltavam mutuamente. Esta forma de violência semi-oficial, em que se misturavam bandos de cadastrados e agentes da autoridade, teve desde meados de 1911 a concorrência de outra forma de repressão. Uma rectificação à lei da imprensa permitiu a apreensão de jornais, pondo nas mãos do governo e das autoridades locais o encargo de suprimir publicações incómodas. Mas apesar de se terem multiplicado as apreensões, estas não bastaram para acalmar o zelo das hordas radicais, que continuaram a assaltar jornais até 1927, com a participação cúmplice de forças da polícia. Vejamos um panorama do que foi a atribulada vida de alguns dos órgãos de imprensa mais afectados pelos assaltos:
O Liberal – Dirigido por António Cabral, antigo Ministro da Marinha e deputado do Partido Progressista. Foi assaltado na primeira semana de vida da República Portuguesa, em 10 de Outubro de 1910. O conselheiro António Cabral e todos os jornalistas que se encontravam na redacção do jornal foram conduzidos ao quartel-general, onde ficaram detidos por 30 horas. Em 31 de Outubro de 1910 voltou a publicar-se. No dia 8 de Janeiro de 1911 sofreu novo assalto, desta vez por dois bandos armados de machados, que destruíram todo o material tipográfico. O director do jornal foi então intimado a sair de Lisboa, o que o levou a ausentar-se da capital por um ano. Só em Novembro de 1916 recomeçou a publicação de “O Liberal”, que se apresentava então como “Monárquico Tradicionalista”. Um ano mais tarde, em Novembro de 1917, a publicação do jornal foi suspensa por ordem do governo, e os seus principais redactores foram detidos a bordo do navio “Pedro Nunes”, sendo expulsos do país dois deles, poucos dias depois (Mário Matos e Lemos, Jornais Diários Portugueses do Século XX. Um Dicionário). Num dos livros de memórias políticas de António Cabral, intitulado “Em Plena República”, conta-se em pormenor o que foram os assaltos de 10 de Outubro e 8 de Janeiro.
O Correio da Manhã – Fundado em 1885 por Manuel Pinheiro Chagas, publicou-se até 1897. Em Março de 1910 volta a publicar-se, tornando-se o órgão do Partido Regenerador-Liberal (franquista), sob a direcção de Álvaro Pinheiro Chagas. De 4 a 26 de Outubro de 1910 esteve suspensa a sua publicação. Desde 27 de Outubro volta a publicar-se, reafirmando-se monárquico.
No dia 8 de Janeiro de 1911 “um dos batalhões de voluntários republicanos, tendo à sua frente um official do exercito, assaltou a redacção do jornal, destruindo o mobiliario e o material typographico, façanha esta ainda hoje impune, e que foi coroada pela prohibição por parte das auctoridades de que se continuasse publicando a folha” (Álvaro Pinheiro Chagas, O Movimento Monarchico – O Correio da Manhã). Quatro dias depois o director do “Correio da Manhã”, Álvaro Pinheiro Chagas, acompanhado de Joaquim Leitão e Aníbal Soares, redactores do mesmo jornal, abandona o país. Regressa no princípio de Fevereiro, preparando-se para publicar de novo o “Correio da Manhã”. Espalhando-se a notícia da sua chegada a Lisboa, é chamado ao Governo Civil, onde recebe ordem de saída do território português, nestes termos: “Governo Civil do districto de Lisboa – Na qualidade de delegado do Governo da Republica Portuguesa, determino ao Sr. Alvaro Pinheiro Chagas que haja de sair do territorio da Republica no prazo de tres dias a contar de amanhã desenove do corrente. – Lisboa 18 de Fevereiro de 1911. – O governador Civil. Eusebio Leão”.
Diário Ilustrado – órgão do partido regenerador-liberal. Interrompeu a publicação em 5 de outubro de 1910. Em Dezembro desse ano volta a publicar-se, afirmando-se “arreigada e convictamente monárquico”. Foi assaltado no dia 8 de Janeiro de 1911 e destruídas as suas instalações, terminando por isso a publicação.
O Dia – fundado em 1887 pelo jornalista e dramaturgo António Enes, que foi mais tarde Ministro da Marinha e Ultramar e Comissário Régio em Moçambique. Nos últimos anos da monarquia tornou-se o órgão oficial do Partido Progressista. Depois de 5 de Outubro de 1910 manteve-se em publicação com algumas interrupções, declarando-se monárquico. Em 30 de Maio de 1911 foi vítima de um assalto, no qual ficou ferido o director, Moreira de Almeida (Mário Matos e Lemos, Jornais Diários Portugueses do Século XX. Um Dicionário). Em 21 de Outubro de 1913 foi, mais uma vez, assaltado e destruído, tal como “A Nação”. Em Maio de 1915 sofreu novo assalto.
A Nação – Órgão do Partido Legitimista, publicava-se desde 1847, sendo o decano da imprensa diária em Lisboa. Assaltado na manhá de 21 de outubro de 1913, e destruído todo o seu material, na mesma ocasião em que foi assaltado “O Dia” e o desenhador de “O Thalassa”, Jorge Colaço, foi obrigado a pernoitar na prisão. Poucos jornais se atreveram a condenar este assalto. “Os Ridículos” e “O Thalassa” foram dos poucos que mostraram a sua indignação com a violência usada contra a imprensa monárquica. “O Thalassa” publicava o seguinte comentário:
“À “Nação” e ao “Dia”
Sabem bem estes nossos prezados collegas quanto sentimos a violencia de que foram victimas, para que seja necessario dizer-lh´o. Mas isso não impede que publicamente lhes testemunhemos a nossa magoa com os protestos da nossa insignificante mas sempre leal camaradagem.
A correcção usada sempre por esses dois jornaes devia tel-os posto ao abrigo de eventualidades tão tristes como as da manhã de 21 d´outubro, mas infelizmente assim não aconteceu.
Poderiamos mostrar aos republicanos exaltados o que foi a campanha dos seus jornaes no tempo da monarchia (tão differente!) e lembrar-lhes que quando tentaram revoluções contra o regimen, nunca as suas redacções foram assaltadas. Mas não vale a pena, porque estamos certos que intimamente se hão-de ter lembrado de tudo isso.
Nem ao menos os cabelos brancos d´avózinha e os seus 67 annos de vida modelar d´abnegação e fidelidade por uma causa, fez parar os assaltantes!
Mas ha uma coisa que ainda mais compunge do que propriamente o escavaqueamento material: é o escavacamento moral do Sagrado Tribunal da Imprensa, assistindo impassivel, excepção feita ao ridiculos, sem um protesto, sem uma palavra de magoa, à destruição violenta de dois collegas, sendo um d´elles o decano da imprensa portuguesa!
Não, decididamente não podemos tomar esta vida a serio…”
A Palavra – Jornal católico, fundado em 1872. Logo em 6 de Outubro de 1910 sofreu uma tentativa de assalto. Em Fevereiro de 1911 foi assaltado. Em 30 de Dezembro de 1912 foi proibida a circulação deste jornal, “por motivo de ordem pública”. Voltou a publicar-se em 1922, como jornal monárquico. Assaltado e parcialmente destruído em 6 de Outubro de 1922.
Em 20 de Setembro de 1914, pouco depois das 10 horas da noite, um bando de “dedicados defensores” da república inicia uma série de assaltos às instalações dos jornais monárquicos “A Nação”, “O Dia”, “Jornal da Noite” e “A Restauração”, e às dos jornais humorísticos “Os Ridículos” e “O Thalassa”, destruindo tudo o que encontram. As autoridades desinteressam-se dos assaltos, mas prendem os jornalistas de “A Restauração” por se tentarem defender. São impunemente agredidos os directores de “A Nação” e “Jornal da Noite”.
Em 26 de Setembro reuniu-se a Associação dos Distribuidores de Jornais para tratar da crise provocada pelos assaltos à imprensa. Diversos associados protestaram contra o vandalismo.
No dia seguinte reuniu a classe dos compositores tipográficos para apreciar a situação em que ficavam os companheiros dos quadros dos jornais assaltados, condenando os assaltos, a destruição das tipografias, e as violências e prejuizos de que são vítimas os tipógrafos, alheios à política dos jornais em que trabalhavam.
Em Abril de 1915, depois de longos meses de encarceramento, foram julgados os monárquicos presos na redacção de “A Restauração” quando se defendiam dos salteadores republicanos. O advogado de defesa pronunciou um “vehemente discurso”, em que denunciava a cumplicidade das forças de segurança no assalto ao jornal:
“Cada um tem direito de se defender a si proprio e à sua propriedade: constituição nº 15 do art. 3º, Cod. Civil art. 2354 e Cod. Penal artigos 44 a 46.
Não tinham bombas nem armamento porque se o tivessem certamente dele se teriam servido porque momentos houve em que se julgaram impotentes para dominar os milhares de facinoras que enfurecidos procuravam assaltar a redacção do jornal para roubarem tudo o que lá existisse de valor.
Não se podia recorrer à força publica, porque esta apareceu na rua da Emenda não para proteger os assaltados mas sim os assaltantes.
O tenente que comandava uma força da guarda republicana responsabilizou-se perante os defensores da casa por tudo o que lá existia; pois foi o primeiro a facultar a entrada aos “patriotas” que em seguida destruiram tudo o que não puderam levar para casa ou reduzir a dinheiro.
As buscas feitas pelo agente Murtinheira não passaram de uma tratantada como V. Ex.as tiveram ocasião de verificar pelo depoimento das testemunhas (…)
Os accusados não estavam armados como já provámos, mas mesmo que o estivessem?! Não absolveu o ano passado o snr. Dr. Pedro de Castro um formiga que usava arma sem a competente licença? Absolveu-o porque usava arma em defesa da Republica. Pois ha alguma coisa de bem mais sagrado que a defesa da Republica, que é a defesa da propria vida. Numa cidade como a de Lisboa ninguém pode deixar de andar armado, porque nas artérias mais concorridas da cidade, no nariz das autoridades, insulta-se, agride-se e mata-se qualquer pessoa que não pertença à seita”.
Carlos Bobone
fonte: Centenário da República
Sem comentários:
Enviar um comentário