ELOGIO DO DR. JORDÃO DE FREITAS
pelo Académico de Número, ANTÓNIO DA SILVA REGO, publicado em Lisboa, pela Academia Portuguesa da História, 1956, separata.
CONFESSO-ME sinceramente embaraçado para cumprir o gratíssimo dever de, perante esta douta Academia, proferir o elogio do meu ilustre antecessor na cadeira que hoje imerecidamente ocupo. Este embaraço nasce, sobretudo, do facto de não ter tido o prazer de o conhecer. Educado em Macau, e tendo trabalhado lá fora, só em 1942 é que me fixei em Portugal e, nesta altura, já o Dr. Jordão Apolinário de Freitas se encontrava aposentado, havia oito anos. É verdade que há muito o admirava, por causa sobretudo dos seus artigos sobre a possível presença de Camões em Macau. Foi ele, aliás o primeiro a salientar que já em 1555 havia Portugueses na península de Amacao, respondendo assim à asserção de que era completamente fantasiosa a hipótese de Camões haver estado em Macau, visto Macau não existir ainda ao tempo.
Esta minha longínqua admiração por um dos sócios fundadores da nossa Academia foi-se radicando cada vez mais, ao longo das vicissitudes e dos anos. E assim se foi formando, no meu espírito, o retrato intelectual dum escritor, terno cultor da História, dotado de raras qualidades de investigador, tendo às suas ordens a riquíssima Biblioteca da Ajuda, de tendências afirmadamente universalistas, fugindo quiçá a qualquer trabalho de especialização, mas amorosamente debruçado sobre todos os problemas suscitados quer na imprensa, quer na bibliografia de Portugal e até do Estrangeiro.
O Dr. Jordão de Freitas conhecia a Biblioteca Real da Ajuda como ninguém. Para lá entrou em 1902. Em 1927 os seus relevantes serviços foram publicamente reconhecidos, com a sua nomeação para seu director, e de lá saiu em 1936, atingido pela implacável lei do limite de idade. Os que têm frequentado a Biblioteca da Ajuda, típico exemplo de biblioteca erudita, lamentam a falta de inventários, índices e roteiros, tais como a moderna Biblioteconomia os exige. Convém, contudo, acentuar, que nos inícios do presente século, Portugal se deixou nitidamente ultrapassar, na matéria, pelas outras nações cultas. O Governo relegou para segundo plano a organização das bibliotecas e arquivos. Os seus directores, quais solitários e desarmadas sentinelas, viram-se a braços com o mais poderoso dos inimigos: o desalento, o desânimo, a impotência. Sem pessoal especializado e sem meios, que haviam de fazer? Uns sossobraram na vulgaridade, outros, como o Dr. Jordão de Freitas, lutaram, lutaram sempre, a fim de legarem ao País, pelo menos, o resultado – por vezes ingente – dos seus esforços. A obra de Jordão de Freitas é, verdadeiramente assombrosa, como em breve teremos ocasião de ver. Mas, o que não teria sido ela, se ele, em 1902, quando foi para a Ajuda, servido já por inegáveis dotes de cultura, pesquisa e vivacidade, encontrasse índices e inventários, catálogos e roteiros, a desvendar-lhe, após algumas horas de leitura, os principais segredos e escaninhos dessa esplêndida biblioteca?
Assim, perante o desconhecido, o Dr. Jordão de Freitas fez o que lhe pareceu mais oportuno e mais útil. Percorreu ele mesmo as principais colecções, debruçou-se sobre os assuntos históricos mais debatidos no seu tempo, não só em revistas, mas até na imprensa diária e foi construindo assim, pouco a pouco, paciente mas persistentemente uma obra a todos os títulos notável. Durante muitos anos, o Dr. Jordão de Freitas identificou-se com a sua biblioteca: a Biblioteca da Ajuda, sem ele, era um corpo sem alma. E de um seu amigo ouvi eu esta confissão: quando ele, por doença ou qualquer outro motivo, não ia à Biblioteca, era inútil ao estudioso e ao leitor dar-se ao trabalho de ir até lá.
Se faço referência a este condicionalismo, é apenas para tentar explicar até certo ponto a génese da sua obra histórica e literária, colocando o homem no seu ambiente e na sua época. Mas, devemos confessar também que Jordão de Freitas soube combater e vencer em si mesmo a geral tendência para a fácil e corredia síntese histórica, sem base documental, fruto apenas de superficiais leituras, à procura de efeitos literários, políticos e sociais. Jordão de Freitas deve ter sentido, certamente, essa aliciadora tentação, perante a qual sucumbiram tantos espíritos da sua época. Mais a mais, não havia ainda o exemplo duma Academia como a nossa, a inclinar os espíritos para a análise, para o documento, para a monografia em profundidade, para a seriedade enfim. O seu espírito superior ciciou-lhe que mais valia sacrificar a síntese brilhante e superficial do que enjeitar a análise custosa e árdua, mas certa e verdadeira. Nisto, Jordão de Freitas, é modelo acabado do investigador probo e honesto, que, cingindo-se aos documentos, deles se não deixa afastar nem um ápice. Não cultivou a sintese histórica, talvez por estar convencido de que, no estado em que se encontravam as nossas bibliotecas e arquivos, difícil seria atingir nível elevado naquele género histórico. É possível também que a sua formatura de médico-cirurgião pela Escola Médica do Funchal, o dispusesse para a análise documental, a dissecação dos factos, análise enfim. Seja como for, a imensa obra que nos legou confirma-o como um dos mais brilhantes e metódicos cultores da análise histórica.
O Dr. Jordão Apolinário de Freitas, nasceu na freguesia de S. Pedro, do Funchal, em 23 de Julho de 1866. Era filho de Luís de Freitas e de D. Ana Fortunata de Sousa e Freitas. Como acontecia a muitos jovens madeirenses, cedo ingressou no seminário diocesano local. E tudo parecia indicar uma sólida vocação sacerdotal, pois chegou a concluir o curso teológico. Sabe-se que os seminários portugueses foram sempre, e são ainda hoje, um dos mais avançados redutos do humanísmo greco-latino.
As ciências exactas podem ser cultivadas bastante apressadamente, mas as letras, essas penetram no âmago dos jovens seminaristas que, desde tenra idade, se habituam a lidar com autores gregos e latinos, a decorar frases dos velhos poetas, a fazer ensaios sobre os eternos problemas do homem. Em Jordão de Freitas sente-se nitidamente esta influência humanística, esta preferência pela harmonia e pela antiguidade, pelo culto do belo e do verdadeiro.
Jordão de Freitas, porém, não se sentiu por fim inclinado para a vida eclesiástica e, aos 24 anos, em 1890, abandonou o seminário, embora lá tivesse leccionado Latim, de 1890 a 1891. De 1891 a 1892 tirou o curso completo dos liceus, nas duas secções Letras e Ciências. Pouco tempo depois, a fim de melhor se preparar para a luta pela vida, sacrificando talvez as suas preferências humanísticas ingressou na Escola Médica do Funchal, donde saiu em 1899, com o curso de médico-cirurgião. Parecia que o novo médico, na idade madura dos seus 33 anos, se iria dedicar de alma e coração, à sua clínica, embora fosse natural que, ocasionalmente continuasse a cultivar as letras. A sua ânsia de saber, o seu anseio de cada vez mais e melhor, trouxe-o até Lisboa, onde se matriculou na Escola Politécnica, a fim de também se graduar pela Escola Médica de Lisboa.
A sua vocação de homem de letras, porém, impôs-se-lhe de forma definitiva. Não o atraíam os doentes, a clínica, os rendosos proventos de médico dedicado e hábil cirurgião. O Humanismo, o velho humanismo dos seus tempos de seminário, a espraiar-se pelos mais vastos horizontes das Letras, da História, da Literatura, da investigação, acenava-lhe, sorria-lhe, fascinava-o. E assim, de 1900 a 1902 vemos o Dr. Jordão de Freitas ocupar o aparentemente modesto lugar de oficial-bibliógrafo da biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa. Estes dois anos foram verdadeiramente decisivos na sua vida, pois o contacto com os grandes problemas do Ultramar contagiou-o, e daí em diante, Jordão de Freitas havia de dedicar-se preferentemente aos estudos ultramarinos portugueses. Para eles iriam sempre o seu melhor esforço, o seu carinho, a sua dedicação.
Em 1902 transitou para a Biblioteca Real da Ajuda. Aqui teve ocasião de lidar, com certa intimidade, com as rainhas D. Maria Pia e D. Amélia, assim como com D. Carlos e os Príncipes. O Dr. Jordão de Freitas comprazia-se, mais em lembrar aos seus amigos essas horas de convívio, de amizade e de apreço.
Em 1918, foi nomeado director dessa Biblioteca e é curioso que, segundo afirmações dos seus amigos, o Dr. Jordão de Freitas continuava a considerá-la sempre como 'real', como a sua Biblioteca Real da Ajuda. É que as sombras dos reis, a quem ele tinha servido, não se podiam despegar tão facilmente daqueles salões, daquelas paredes, daquele já amadurecido coração madeirense.
Em 1936, o Dr. Jordão de Freitas, coberto de glória, enriquecido por já numerosa e notável bibliografia, foi atingido pelo limite de idade. Retirou-se da direcção da Biblioteca, mas não se retirou das lides do trabalho. Continuou, como antes, a escrever, a ler, a investigar. Intensificou ainda, tal como o Doutor Queirós Veloso, o ritmo do seu esforço. Que exemplos os destes dois ilustres académicos, a quem a idade soergueu em vez de abater!
Foi justamente neste ano, em 1936, quando se avizinhava já o limite de idade, que em 19 de Maio, se fundou a nossa Academia; o Dr. Jordão de Freitas foi, por direito próprio, conquistado ao longo de tantos anos de labor, um dos seus fundadores. Os que de perto lidaram com ele ainda hoje recordam o entusiasmo com que saudou o nascimento da Academia Portuguesa de História, augurando-lhe larga existência, inteiramente devotada ao serviço da Cultura.
Os últimos anos da sua vida decorreram sempre no mesmo ambiente de estudo e de amor à verdade. Não lhe permitia a sua formação analítica permanecer mudo e quedo perante erros, inexactidões ou até opiniões contrárias às que os seus documentos lhe pareciam inculcar. E por isso, tomou parte em varias polémicas. A opinião do Dr. Jordão de Freitas era respeitada, e os escritores descuidados sabiam que tinham nele um possível crítico literário que não hesitaria em corrigir uma data, em grafar diferentemente um nome, em chamar a atenção para um livro, por ele reputado essencial, e que o autor esquecera na sua bibliografia, em denunciar enfim qualquer deslise. Era esta uma das facetas mais interessantes do carácter do Dr. Jordão de Freitas. Confessemos que actualmente, no apressado ritmo da vida presente, há que lamentar a ausência de pessoas cultas, como o Dr. Jordão de Freitas, dispostas a corrigir, a repor a verdade no seu lugar, a chamar constantemente a atenção para a necessidade da exactidão histórica.
Um relance, finalmente, sobre a notável bibliografia do Dr. Jordão de Freitas. Parece, à primeira vista, que seria impossível compilar a lista completa dos seus estudos, sabendo-se de antemão que ficou esparsa por jornais e revistas. Felizmente, porém, para todos nós, o Dr. Jordão de Freitas teve o cuidado de fazer ele mesmo a sua bibliografia, desde 1897 (quando cursava ainda a Escola Médico-Cirúrgica do Funchal) até 1939. Intitula-se esta bibliografia 'Os meus escritos' (1897-1939) e foi por ele mesmo oferecida ao nosso prezado consócio Frazão de Vasconcelos, a quem agradeço muito sinceramente o favor de a poder consultar e citar. Publicar-se-á na íntegra, em apenso a estas despretenciosas palavras.
Esta bibliografia contém 143 entradas. Intitula-se a primeira Escola Médico-Cirúrgica do Funchal. Relação de todos os facultativos habilitados nesta Escola desde a sua instituição até I897. 'Diário de Notícias do Funchal', Outubro de 1897. E a última: O Cabo de Bojador. Origem desta denominação. Importância da ultrapassagem deste Cabo por Gil Eanes. Comunicação feita no Instituto Português de Arqueologia, História e Etnografia. Publicado na revista 'Etnos', volume II.
Não é difícil, apoiando-nos ainda nesta preciosa bibliografia, entrar no âmago das preocupações literárias ou históricas do autor, de 1897 a I939. Temos assim vários períodos:
1) de 1897 a 1903, ocupa-o o passado da Escola Médico-Cirúrgica do Funchal, comparando-a com a de Goa;
2) de 1904 a 1907, é sobretudo o Extremo-Oriente, o Japão, a China, Luís de Camões em Macau, Fernão Mendes, a embaixada dos príncipes japoneses à Europa em 1584, etc. etc., que ressaltam dos seus estudos;
3) de 1907 a 1910, o Dr. Jordão de Freitas, temporariamente esquecido da história ultramarina, ocupa-se de temas metropolitanos, literários, históricos, como por exemplo o Marquês de Pombal, a Inquisição (ver O Marquez de Pombal – a Lenda e a História, 1910) Crisfal, etc.;
de 1910 em diante, Jordão de Freitas continua ecléctico, distribuindo a sua atenção por assuntos literários e históricos, tanto metropolitanos, como ultramarinos. Camões foi por ele estudado em vários artigos. A figura do Marquês de Pombal, do infante D. Henrique, os Descobrimentos, o Japão. S. Francisco Xavier e outros ainda, são matérias sobre as quais ele volta a cada passo. Para quê alongar as citações? Apenas duas, pelo especial interesse que apresentam:
I) N.° 88: O cavalheiro de Oliveira. Apontamentos bibliographicos. 1921-1922. 'A Epoca', de 25 e 27 de Novembro de 1921, 7 e 15 de Dezembro do mesmo ano; 7 de Janeiro, 8 de Fevereiro, 29 de Novembro e 13 de Dezembro de 1922.
2) N.° 103. Cartas que dirigi ao Diário de Notícias nos dias 14 e 23 de Janeiro de 1925 (mas que não foram publicadas), referentes à Cultura Estrangeira – Cultura Portuguesa, do Dr. Alfredo Pimenta, publicadas nestes dois dias. 1925.
Quando em 1946, com 80 anos de idade, o Dr. Jordão de Freitas exalou o seu último suspiro, desapareceu uma das mais notáveis figuras de investigadores do nosso século. Tenho a impressão de que podia morrer tranquilo: a historiografia portuguesa enveredara por caminho certos, da análise para a síntese, do particular para o universal, do documento para a monografia, da verdade parcial para verdade total. Tinha sido esse o seu ideal, desde os seus primeiros ensaios. Por ele se batera. Por ele, ajudara a fundar esta Academia.
É nosso dever continuarmos neste caminho – o certo, o verdadeiro caminho. Deus queira que eu, humilde cabouqueiro de documentos, possa inspirar-me, animar-me, entusiasmar-me com o seu exemplo.
A S. Ex.ª o Dr. Laranjo Coelho, meu ilustre Amigo, a quem há muitos anos admiro, os meus mais sinceros agradecimentos, pela sua gentil companhia nesta ocasião em que, por deferência inesquecível do Conselho desta Academia, a quem rendo igualmente as minhas homenagens, ocupo a cadeira que pertenceu ao saudoso Dr. Jordão Apolinário de Freitas.
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Relembrar hoje Jordão de Freitas (1866-1950) é relembrar o combate que é preciso prosseguir contra as falsificações da História de que se alimentou a implantação do chamado "regime republicano" em Portugal.
Entre essas falsificações, não é de somenos a que foi produzida a respeito do marquês de Pombal. Carlos Bobone resumiu bem a importância da investigação de Jordão de Freitas, ao escrever e citar a propósito de O Marquez de Pombal – a Lenda e a História (Guarda, 1910):
Ali se "dedica particular atenção à “erronea affirmativa de que o marquez de Pombal aboliu entre nós o Tribunal do Santo Officio ou da Inquisição”, que naquela época era uma “muito repetida e bastante frequente asserção”. Depois de lembrar que a extinção do Santo Ofício data de 31 de Março de 1821, Jordão de Freitas aponta vários actos do Marquês que demonstram o grande empenho com que reforçou, aumentou as dignidades e pôs ao serviço da sua política o temido tribunal. Filho e neto de Familiares do Santo Ofício, Pombal estreitou os laços da sua família com a inquisição, fazendo-se também familiar e promovendo o seu irmão, Paulo de Carvalho e Mendonça, a inquisidor-geral. “Sebastião José de Carvalho e Mello, bem longe de acabar com aquella instituição, … equiparou-a aos outros tribunais regios, ordenando que fosse tratada por Magestade (alvará de 20 de Maio de 1769) e deu-lhe um novo Regimento”. Denunciou ao Santo Ofício o padre Gabriel Malagrida, que fez garrotar e queimar no Rocio em 1761. Num edital de 12 de dezembro de 1769, Sebastião José mandou recolher e inutilizar todos os livros que se haviam publicado contra este “Tribunal util e necessario”, dizendo que não ha “entre todos os estabelecimentos humanos estabelecimento algum que tanto possa contribuir, e tenha effectivamente contribuido para defender e conservar illibado, em toda a sua pureza, o sagrado deposito da Fé e da Moral que Christo nosso Redemptor confiou à sua Egreja, como tem sido e é o Santo Officio da Inquisição, principalmente depois do seculo XIII”.
(http://www.centenariodarepublica.org/centenario/2009/07/23/falsificacoes-da-historia-1/)
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A estátua do marquês na Rotunda, continua a simbolizar bem essa "união nacional republicana" que passa da 1ª para a 2ª República (Estado Novo), e que importa continuar a denunciar - ver O Pombal da Rotunda
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