sexta-feira, agosto 21, 2009

Bandeiras & Bandeiras

CARTA DO CANADÁ
Fernanda Leitão


Achei graça àquela rapaziada do 31 da Armada que, pela noite, foi à varanda da Câmara Municipal de Lisboa tirar o pendão da cidade e hastear uma bandeira nacional, a monárquica, mais velha do que a republicana. E achei pilhas a terem ido entregar o pendão, devidamente lavado e engomado, o que pressupõe que estava sujo e maltratado, o que não me admira mesmo nada. Os republicanos são desleixados com a sua bandeira: não a mandaram com as tropas portuguesas a combater nas trincheiras da guerra de 1914-18, tendo um conde residente em Paris de pagar do seu bolso as bandeiras que haveriam de cobrir os caixões por lhe parecer ser o mínimo de dignidade a conferir a um soldado que tomba pela Pátria, houve quem a pisasse nas ruas de Londres a pretexto de não gostar da presença de Marcello Caetano (e o nome inteiro do artista foi segredo que levou para a cova o general Galvão de Melo, que apanhou uma fotografia da façanha quando presidiu à extinção da PIDE), e até houve militares que arrastaram a bandeira verde-rubra pelo chão, alguns deles em cuecas, na pressa da descolonização a que um cómico chamou exemplar. Dá que pensar a falta de respeito que alguns republicanos têm demonstrado pela sua bandeira, sem que a polícia os tenha prendido com aquele alarido que convém a quem quer dar exemplos. E ainda dá mais que pensar o nunca ter havido nenhum monárquico que fizesse o mesmo à bandeira dos republicanos.
A única vez que vi um monárquico a afrontar a bandeira verde-rubra foi há uns anos bem puxados. Um amigo meu, monárquico dos quatro costados, que tinha a bandeira branca com as quinas e a coroa hasteada dia e noite na frontaria da sua casa, regressou do exílio no Brasil para onde o mandaram as ameaças de morte duns comunistas que, feitas as contas, apenas queriam palmar-lhe o próspero negócio de que dispunha em Lisboa. Deram com os burros na água, como aliás em tudo quanto essa gente roubou sem saber o que era trabalho e gestão. Ora, quando o meu amigo chegou de novo a sua casa, o povo daquele lugar quis festejar em grande, com banda de música, foguetes, uma grande multidão e à frente a bandeira verde-rubra. Quando tal viu, o meu amigo, a rilhar a boquilha, berrou do alto da escada: “Vocês entram, mas a porca não entra!”. Pronto, foi ali um desassossego, cada qual a procurar o bicho, e nada. E gritaram: “Oh senhor, mas onde é que a porca se meteu?”. E o regressado a explicar: “Essa bandeira! Foi à sombra dela que se perdeu o império e se desgraçou Portugal”. O povo chamou a polícia? Houve tareia e cabeças partidas? Qual quê! Enrolaram a bandeira, deixaram-na encostada fora do portão, e foram-se dali abraçar o amigo de sempre, comeram, beberam, cantaram, foi uma festa em grande. Em tantos anos que já levo de vida, apenas vi este gesto de afronta. Mas, valha a verdade, aquele povo era livre de dar uma sova ao meu amigo, e não o fez, foi livre de escolher e escolheu. Quem sabe se é por sentir que o povo tem lá no fundo “qualquer coisa”, que o actual regime não quer ouvir falar em referendo.
Como se pode imaginar, ainda consegui achar mais graça a isso de terem chamado a PJ e de esta, com fama de lenta, ter aparecido logo e levado os rapazes a perguntas, tendo constituído um arguido. Muito nervoso anda o regime para perder a cabeça por uma rapaziada... Os monárquicos agradecem.
Ainda por cima polémica, a bandeira republicana. Apercebi-me disso quando um velho e honrado bombeiro de Tomar, o Jorge Godinho, me ofereceu a bandeira com que a cidade festejou a chegada da República. Uma bandeira estranha, azul e branca, com uma risca vermelha e a palavra Liberdade por cima das quinas. Feita à pressa, segundo as indicações que o Jorge tinha colhido em Lisboa. Ao tempo rapaz novo, de sangue guelra e atrevido, a gostar de cocar tudo, e daí ter ficado com a alcunha do Jorge Cocão, era ele o mensageiro escolhido pelos republicanos de Tomar para, sem dar nas vistas, ir a Lisboa buscar notícias junto dos maioriais da revolução a vir. Da últina vez que veio de Lisboa, reuniram-se num casebre para os lados do cemitério velho, à luz de candeias. Pequenote, o Jorge subiu a uma mesa, rubro de entusiasmo, abriu a camisa e comunicou: “A revolução está quase a rebentar! E eu dou o meu peito às balas!” Foi nessa altura que rebentaram uns petardos à porta da casa, malandrice dos talassas. E foi um vê se te avias de republicanos a deitarem-se no chão e a meterem-de debaixo da mesa. Depois de serenados, o Jorge contou que tinha visto a bandeira republicana e relatou-a em pormenor. Quando a República foi imposta ao país pelo telégrafo, em Tomar fez-se uma manifestação na que é hoje a Praça da República, e lá estava a bandeira que hoje deve estar entre os meus parcos haveres em Portugal. Uma mulher assomou à varanda da câmara, torceu e vergou uma pena de prata e gritou: “Acabou a Monarquia!”. É o que se chama ficar tudo ela por ela.
Mas eu fiquei sempre muito desconfiada. E apertei com o bombeiro:
- Oh Zorze (eu e Chico Porto chamávamos-lhe assim), mas onde raio é que fizeram a bandeira, os de Lisboa?
- Oh menina, eu cá o que me disseram em Lisboa é que ela tinha sido feita numa loja maçónica em Espanha .
- Pode lá ser, Zorze!.
- Ai não, que não pode, capazes disso e muito mais eram eles. Basta ver o que fizeram a seguir, foram 16 anos de miséria e vergonha. E estes de agora vão pelo mesmo. Sabe que mais, menina? Tudo uma corja!
E realmente isto é tudo mau demais. Tão mau que até o Saragago se esqueceu que tem telhados de vidro. Anda à pedrada e um dia destes fazem-lhe a biografia. Isto é que vai um ano!

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