terça-feira, junho 20, 2006

Aos Estudantes de Lisboa

Por Hipólito Raposo

Os bons intentos deste centenário não devem reduzir-se ao mérito das representações, nem dissolver-se em ecos de sessões comemorativas, jubilosas ou quási funerárias, em honra de um defunto glorioso que Deus tenha em glória...
Se Gil Vicente estivesse morto, de pouco nos valeria evocar para as consagrações efémeras dos discursos e do palco, um antepassado do melhor espírito português, que fazia rir a côrte e a gente popular, o palácio real e as casas pardas, mas que, findos estes deveres de piedade literária, teria de regressar àquele injusto esquecimento de que alguns beneméritos o começaram a libertar, reabilitando-o pela crítica ou remoçando-o à luz da cena.
Mas, graças ao poder do seu génio e ao sortilégio da sua arte, Gil Vicente permanece vivo, competindo-nos o desígnio de o revelar e impor, agora e sempre, como um dos mais assinalados valores universais com que Portugal, pelo espírito e pela acção, soube afirmar a sua individualidade no mundo, enumerando-o na grande constelação de almas em que brilham Santo António, D. Dinis, Fernão Lopes, Pedro Nunes, Damião de Goes, Camões, Fernão Mendes, o Padre António Vieira, ao lado dos reis conquistadores, dos heróis e dos navegadores, filhos espirituais do Infante D. Henrique.
Dentro do seu lusismo de sabor medieval aqui e além penetrado de influxos renascentistas, couberam temas humanos de alto sentido crítico e moralizador que se registam como títulos de nobreza da inteligência; sobem orações e salmos de tão inspirada fé e esperança que a lira sacra os deverá recolher entre as melhores flores de linguagem do seu hinário; desprendem-se e agitam-se os conceitos que ainda hoje servem de base ao problema do destino do homem na difícil harmonia moral dos planos da vida e da morte.
E à primeira luz crítica do Renascimento, ressurgem com todo o vigor os motivos literários da Antiguidade greco-romana, a fama, a glória cívica e militar, a apologia do esfôrço individual e colectivo, celebrados e cantados com sinceridade e fervor ainda góticos.
Vindo ao mundo entre duas idades do mundo, ele pôde dar expressão sincera à conciliação do antigo com o moderno, realizar a síntese dos ideais mais puros e criadores da civilização: a justiça, a verdade, a beleza, a honra, a santidade, o heroísmo ao serviço da Pátria.
Neste complexo de aspirações morais, ele subordinaria a intuitos discursivos ou apologéticos as próprias figurações do Paganismo, deuses e deusas, fadas e sibilas, tentando a acomodação da mitologia aos efeitos literários e simbólicos, dentro da esfera triunfal em que fulgurava a verdade cristã e portuguesa da era das navegações.
Gil Vicente, por seu e nosso bem, não foi doutor, não andou como peregrino das letras sagradas ou profanas, pelas cidades cultas da Europa, nem talvez se aproveitasse do ensino que a Universidade de Lisboa lhe podia oferecer, enquanto os bolseiros de El-Rei D. Manuel se preparavam para lhe dar o brilho e renome que depois, em Coimbra, viria a ter.
Se fosse doutor ou tivesse nascido quarenta anos mais tarde, outro seria o seu destino literário e menos preciosa se nos mostraria agora a sua herança: Gil Vicente teria sido mais dramaturgo do que poeta cómico e lirico, e perder-se-iam nas exigências formais e estruturais do drama clássico, a espontaneidade, a graça popular, o documentário português e humano em que a alma do nosso povo se retrata e brilha, como nos mil fragmentos de um espelho.
Autodidata que fosse em certa medida, ou, noviço de alguma comunidade religiosa, que, pelos abusos observados, se lhe gerasse a sanha anti-monástica que, de página em página, teimosamente nele se acende, Gil Vicente adquiriu o saber necessário para a sua função de poeta dos reis e do povo, a capacidade de um teólogo-vulgarizador para a todos ensinar o que um cristão pode saber dos mistérios divinos, as fraquezas e pecados, da carne e do espírito, o louvor da virtude, o horror da hipocrisia.
Da leitura das suas obras, recolhe-se um ideário de perfeita vida religiosa, moral e cívica, que em todos os tempos fará de Gil Vicente, um mestre insigne de lusitanidade.
Podemos segui-lo como guia de doutrina cristã no Auto da Alma e na melhor parte das obras de devoção; devemos admirá-lo como fiel depositário de riqueza etnográfica e folclórica, e aceitá-lo para exemplo de independência de carácter, de liberdade de espírito no Auto da Feira e nas cenas das Barcas, essas três audiências em juízos de processo sumário, de que já nem para Deus há recurso…
E se nele buscarmos inspirações de exaltação patriótica, logo nos lembramos da Exortação da Guerra, para ouvir rufar os roucos tambores que há cinco séculos vão marcando o andamento dos soldados que passam para a África; podemos acordar o frémito português do Auto da Fama, de cuja sonoridade, a rodear a Esfera Terrestre em círculo máximo, se ergue o sarcasmo à refulgente metrópole do Adriático, ameaçada de ruína pelas nossas naus do Oriente:

Preguntai ora a Veneza
Como lhe vai de seu jôgo:
Eu vos ensinarei logo
De que se fez sua grandeza.

Depois, nessa fala da Fama Portuguesa, hino heróico em redondilha, antecipa-se a fúria grande e sonorosa do Épico, o canto vai correndo da Guiné ao Brasil, a Mombaça, a Aden, a Ormuz, a Goa, a Cochim e Malaca, e nesta amplitude reboante de orgulho, sente-se que, se Deus criou a Terra, os Portugueses por continentes e mares, lhe descobriram e lhe mediram a redondeza, para o destino de ensinar às gentes bárbaras a unidade moral do género humano nos estreitos caminhos do céu, e às gentes cultas da Europa a arte de navegar pelas rotas oceânicas. Enfim, pelo conjunto da sua actividade, Gil Vicente foi o que hoje chamaríamos um escritor de alta expressão moral e nacional, e talvez para que a sua autoridade não se diminuísse, nem se moderasse o vigor requeimante do seu verbo em nosso conceito de hoje, pela velha contradição de frei Tomás, quis o destino que a sua biografia ficasse embrenhada em genealogias e confusões, a maior das quais é a questão da identidade ou dualidade pessoal do seu nome. Poeta-ourives ou ourives-poeta que ele tenha sido, a rimar o primeiro poema da fé e do império na Custódia de Belém, ou a lavrar autos no ouro ainda em barra da nossa língua, bem parece o mesmo génio que vence o tempo, este irmão mais velho e risonho de Camões. Mas, se a Custódia não fosse dele, teria havido então um ourives que também foi poeta e que neste primor de cinzeladura haveria deixado a parte central de um verdadeiro auto sacramental, em que os serafins, os apóstolos e os outros adoradores precedem o povo português, que não se vê, mas ali se pressente a cantar em coro o Tantum ergo ou o nosso Bem dito, em honra e louvor do corpo de Deus consagrado. Já que aqui vim, por encargo quási protocolar, para vos repetir mal o que os vossos diligentes mestres vos têm ensinado, desejaria que de todo não fôsse inútil para vós o sacrifício de escutar palavras minhas, quando um pouco retardo o aparecimento de Gil Vicente: estando ele à espera de nos falar, a todos rende a obrigação de ficar calados, para o gosto de o ouvir. Mas, se por efémera ficção, aqui fui proposto para vosso professor, quero aproveitá-la para exercer o dever mais grave, sem o qual a nossa missão se destitue do carácter de paternidade intelectual que dignifica o interesse do ensino. Em nome desse zêlo docente, daqui ouso dirigir-me ao senhor Ministro da Educação Nacional, a quem as escolas e o povo ficam devendo este banquete de teatro espiritual, para lhe requerer e rogar que, a par de uma edição erudita, mande organizar sem demora a Selecta de Gil Vicente, com as composições e os trechos de maior interesse nas obras do fundador do Teatro Português. Assim, poderá ele mais facilmente entrar nas famílias, ser lido e estimado por toda a gente e vivificar de espiritualidade, de graça e de saúde moral a alma aberta da juventude. Esse livro, ao lado dos Lusíadas, ficaria nas estantes mais modestas, andaria nos papéis dos portugueses que não queiram desnaturalizar as almas, acompanhando por toda a terra lusitana e estranjeira, para regalo do gosto e mezinha do tédio, os vossos passos de soldados, de juízes, de negociantes, de médicos ou de artistas. Entrando no convívio de toda a gente, desde os pastores de gado aos arcebispos, dos trabalhadores manuais aos dirigentes da Nação, o grande Poeta deixaria de ser, sem ironia, um ilustre desconhecido, para alcançar na consciência nacional o lugar de estima e preço que tem na inteligência do mundo culto.
E agora que estamos em signo de Gil Vicente, completando e ampliando o voto deste memorial, seria necessário que se retomasse o sonho de Garrett, atribuindo ao teatro valor social. (...)
Teatro-escola de língua portuguesa, em que a arte domine a indústria, teatro-livro para os que não sabem ler, teatro vivo para crítica de costumes, para perpetuar as nossas glórias e exaltar as esperanças de grandeza colectiva.
Entre os problemas do espírito em Portugal, devia impor-se a um Poder Público esclarecido, para a encarar de frente, a restauração do teatro nacional, sustando a sua miseranda agonia, dentro do propósito sistemático de prestigiar as letras e dignificar os artistas, para evitar que os comediantes e os músicos aviltem a profissão e que outros, a sonhar paraísos de beleza, se esqueçam de que estão a morrer de fome. Mas nesse intento, como em toda a obra afirmativa, não deveria perder-se de vista que na cura das nações toda a ofensa à continuidade é mutilação, e que o conceito de uma hereditariedade moral deve dominar sempre o impulso das mais profundas transformações.
A árvore da vida espiritual da grei não se nutre de enfeites de papel pintado, nem viceja à claridade de balões venezianos que nela vão acender os melhores cuidados de a aformosear e engrandecer: as flores e os frutos do espírito português criam-se com a seiva de raízes que se alimentam do sangue do sacrifício, oculto na cinza dos mortos.
Com o pasmo de quem admirasse alheias gentes, vimos há três dias passar, cantar e bailar na alegria da sua pobreza, o povo de Portugal, Portugal-português, Portugal gil-vicentino de pastores, cavadores e pescadores, erguendo-se em aparições inesperadas de vivos que pareciam a ressurreição de mortos de todos os séculos e lugares da Nação.
Estes nos ensinam a manter a solidariedade das ideas e dos sentimentos por cima da dispersão do barro humano, porque os vivos são sombras fugidias e só os mortos triunfam da sucessão da vida. Meditando hoje nos exemplos que nos deixaram os crentes e idealistas da linhagem de Gil Vicente, sentimos que o passado em nós se prolonga, em demanda do futuro; e fortalecemo-nos na certeza jocunda de que assim alcançamos a plenitude da consciência da nação, emquanto outros, infiéis da Pátria, negadores e insultadores da história, não partilham da nossa comunidade moral, e verdadeiramente não vivem, apenas subsistem, para mastigar o seu rancor anti-português e deshumano.
E aceitando para inspiração da vossa conduta e reclamando para as realizações colectivas o influxo dos que nos altos céus da Pátria são os nossos tutelares e nos deixaram a herança da terra que temos e da formosa língua que falamos, esteja sempre vigilante o nosso instinto de defesa, certo de que, quando os nossos mortos não falarem através dos vivos, já mandarão nos portugueses os estranjeiros.
Com a crença em tais votos, seja esta a lembrança que de mim vos fique no breve (ou longo) recado que vos dou, por justiça ao Poeta, por amor da mocidade e por honra e louvor de Portugal !



(Palavras proferidas na récita escolar no Teatro Nacional Almeida Garrett, em Lisboa, aos 2 de Junho de 1937.)

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