quarta-feira, fevereiro 22, 2006

QUE REGIME É ESTE?

CARTA DO CANADÁ

por Fernanda Leitão


No princípio foi um golpe militar que, em pouco tempo, ficou na posse de um grupo de políticos civis. Estes, despudorados e enlouquecidos pelo poder, instalaram uma ditadura dos partidos. Foi assim que o país entrou numa guerra mundial que ceifou milhares de jovens portugueses, que deixou estropiados e gaseados outros milhares. O pão escasseava na mesa do povo. O desemprego era em massa. Os governos instalavam-se e caíam num rodopio. Padres e religiosos foram presos, enxovalhados, expulsos. Os bens da Igreja eram transformados em negócios de meia dúzia (dali a pouco tempo os bolchevistas haviam de fazer o mesmo na Rússia). Os opositores eram mortos ou partiam para o degredo. Os barcos levavam milhares de homens para a emigração, já que camponeses e operários estavam reduzidos à miséria. A liberdade de expressão existia para insultos, calúnias e outras perfídias, por parte dos jornais seguidistas dos governos, ao passo que os independentes eram atacados à bomba. Havia revoltas e tiros todos os dias. A dívida pública era medonha. O descrédito internacional do país, era um facto. O ultramar, semi-abandonado, era inundado por “professores laicos”, de garantido servilismo ao regime, enquanto que eram expulsos os missionários e destruída a sua obra de muitas dezenas de anos.
Outro golpe militar destronou o anterior. Em pouco tempo, transformou-se numa ditadura civil de direita, ao gosto do que se passava na Itália, Alemanha e Espanha. Ditadura respaldada por forças armadas despromovidas por um pretorianismo funesto, por uma hierarquia católica de vistas curtas, por uma élite empresarial sem rasgo e avessa ao risco, por uma polícia política boçal e poderosa. Respaldada, até, a ditadura, por uma oposição que levou anos a escrever cartas e manifestos, ao mesmo tempo que tomava o poder na área da cultura, com o que fez uma ditadura paralela à governamental, uma oposição burguesa, instalada, na maior parte dos casos orquestrada pelos interesses internacionais. Por ausência de diálogo e de planificação progressista, os cofres públicos encheram-se, o ultramar tornou-se vulnerável, a economia era coutada de meia dúzia de famílias, no ensino era a paz podre, a guerra colonial aconteceu, a emigração em massa foi um facto. Quando a ditadura apanhou com um ramo de cravos pela cara, caíu de costas, desamparada, já que tinha contra si a esmagadora maioria da população.
Novo golpe militar tomou o poder para logo, por inépcia, dar origem a uma curta mas inesquecível ditadura pró-comunista. Inesquecível pela brutalidade, pela incompetência, pelo abuso, pelo desrespeito aos direitos do homem, pela sanha persecutória e até pela mais alarve falta de educação. Durou o tempo necessário e suficiente para se entregar o ultramar inteiro a grupos que garantissem, mano a mano, a fidelidade à então União Soviética e às multinacionais de rapina. Cerca de um milhão de pessoas, desmunidas de tudo, rumou ao exílio. Centenas de milhar de mortos empaparam de sangue as antigas colónias, trazendo para o terreno a fome crónica, as doenças já erradicadas, o tribalismo cego e desenfreado. Ao mesmo tempo, procedeu-se à nacionalização de tudo quando parecia aos novos senhores luzir de opulência. A emigração voltou a ser um facto. O ensino ficou de rastos, graças a aventureiros que dele fizeram trampolim político, um ano atrás do outro, até se chegar ao pormenor de tirar as cruzes das escolas, enquanto que, no tão falado império da Língua Portuguesa, se trabalhava em faz de conta, promovendo compinchas incompetentes, proporcionando a muitos reformas escandalosamente fraudulentas, espezinhando ou ignorando aqueles que, em silenciosa coragem, tudo faziam para salvar do naufrágio, nas comunidades, a língua de Camões.
De inépcia em inépcia, de compadrio em compadrio, o desemprego tornou-se crónico, a produtividade quase nula, a habitação uma agonia para quem tem os bancos à perna por dezenas de anos, a saúde um total descalabro. Ganhou-se em corrupção e roubalheira o que se perdeu em moral e dignidade colectivas. A emigração voltou a acelerar. O descrédito da coisa pública é completo, indo de alto a baixo na hierarquia do regime, para o que muito tem contribuído uma justiça que nem ao de leve incomoda os criminosos. A completa desmoralizção do povo é um facto, graças a uma política de constante circo, ampliada pelas facécias dos cómicos do regime, mancomunados com os fregueses das revistas do chamado jet set. Ninguém acredita em nada.
Que regime é este? É aquele que saíu inteirinho do crime cobarde cometido, na rua do Arsebal, nas pessoas do Rei e do Príncipe herdeiro. Aquele a que Eça de Queiroz chamava “balbúrdia sanguinolenta”, aquele que a essa dívida de sangue juntou as dívidas de todos os crimes posteriormente cometidos. É a República Portuguesa. Ou à portuguesa.

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