sábado, fevereiro 04, 2006

GRAÇAS SEM GRAÇA

CARTA DO CANADÁ
Fernanda Leitão

A propósito da celeuma internacional em que acabou a publicação de caricaturas jocosas de Maomé por jornais diários de vários países ocidentais, ocorrem-me episódios comigo passados.
Foi num Setembro soalheiro e ameno, em Cernache do Bonjardim. Eu era uma adolescente e estava de férias em casa da minha avó Maria, que era pequenina, magra e rija, de olhos azuis e nariz arrebitado, com uma linha de queixo que não deixava margem a dúvidas quanto ao seu voluntarismo. Já não me lembro porquê, eu disse uma parvoeira qualquer que metia Deus, à hora do jantar. Minha avó pousou o talher, encarou-me de frente e disparou secamente: “Minha menina, graças a Deus, muitas; graças com Deus, nenhumas!”.
Senti-me um pequeno grão de ervilha diante de um velho e enorme carvalho. Nunca mais pude esquecer.
Há uns bons pares de anos, sentava-se a meu lado, numa escola canadiana, uma jovem mãe do Iraque, de véu e embiocada num tchador negro, o corpo todo coberto pelas vestes escuras. Era inteligente e educada. Conversávamos no intervalo. Umas carteiras adiante sentavam-se duas jovens mães egípcias, ambas em carreiras ligadas ao turismo, absolutamente ocidentalizadas no vestir, no falar e na ausência de religião. Eram alegres e bem dispostas. Na altura do Ramadão, a iraquiana, mal conseguia vencer o sono nas aulas. Eu metia-me com ela: “Levas a noite a comer e depois vens dormir para aqui... Se calhar até bebeste vinho, anda lá, confessa...”. Ela ria-se. Um dia as egípcias resolveram pegar no mote e espinafraram a iraquiana com umas graças pesadas. Ela levantou-se, numa fúria, e pôs as outras em sentido. Surpreendidas, desabafaram: “Mas a Fernanda está sempre a brincar contigo, tu não te zangas e ela é cristã, porque é que te zangas connosco se somos árabes como tu?”. A resposta surpreendente veio de chofre: “Ela tem Deus, vocês não têm”.
Em anos mais recentes, por causa de umas pessoas politicamente correctas, grande foi a zanga no prédio em que vivo porque, tendo uma senhora decorado a árvore de Natal do hall de entrada com um belo anjo no topo, foi convidada a retirá-lo... para não ofender as pessoas de outras religiões.
Os cristãos do prédio tiveram de perguntar às tais porque é que iam à parada do Natal, porque é que mandavam e recebiam cartões de boas festas, porque frequentavam os concertos de Natal e porque é que tentavam negar que o Canadá é um país de raíz cristã. Em contrapartida, na consoada desse Natal, tendo partilhado o bacalhau, o vinho e o bolo rei com amigos, em minha casa, bateram-me à porta mais de uma vez. Amigos muçulmanos vieram desejar boas festas por saberem que era um dia importante para nós. Comeram bolo rei e chá, porque eu não ia certamente servir-lhes uma bebida que eles seriam obrigados a rejeitar. As crianças ficaram extasiadas com o presépio e eu fiquei tocada pela maneira como aqueles pais lhes explicaram a importância de Jesus Cristo e de Maria, citados no Corão da sua fé. Todos ali tínhamos Deus.
O Canadá, que é um país de emigrantes e para emigrantes, tem o maior cuidado com estas questões. Nas escolas canadianas para emigrantes chegados de fresco, todos são convidados a serem educados, correctos e prestáveis, nos lugares de trabalho, nos transportes, na via pública, sendo especialmente recomendado que não abordem a religião e a política por serem questões do foro íntimo das pessoas. Posso testemunhar que assim acontece: num país de gente simpática e descontraída, todos os dias falo com desconhecidos acerca de uma coisa e outra. De política e religião, só falamos quando somos amigos e já nos conhecemos bem.
Trata-se de uma sociedade baseada no respeito mútuo.
Para ser franca, não estou surpreendida com a reacção dos islâmicos às tais caricaturas, o que não me impede de rejeitar por náusea o fundamentalismo, venha ele donde vier. Nem me deixo levar por essa treta da liberdade de expressão, que tresanda a politicamente correcto e a uma só via. O que me surpreende, e muito, é que os católicos e os cristãos em geral não reajam fortemente quando jornais, filmes, comédias teatrais e cantigas, metem a ridículo, a maior parte das vezes tocando o insulto boçal, Deus, Nossa Senhora, o Espírito Santo, os símbolos sagrados de um bilião de crentes.
Andamos todos a precisar de uma grande vergastada que nos tire da moleza e da cegueira.

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