quarta-feira, fevereiro 01, 2006

O ASSASSINATO DE D. CARLOS

LEMBRAR UM ACTO TERRORISTA CONTRA O ESTADO PORTUGUÊS

EM EVENTO ADIADO DURANTE 98 ANOS!


João Mendes Rosa*

Cumprir-se-á, dentro de escassos dois anos, o primeiro centenário do assassinato do Rei D. Carlos e do seu filho D. Luís Filipe. Face à lucidez que a distância dos anos proporciona aos juízos e análises, expurgadas as paixões que turvam as consciências e encolerizações que aviltam os factos, é hoje indubitável que D. Carlos – «O Martirizado», no categórico cognome que lhe outorgou ad semper Ramalho Ortigão –, foi (a despeito da propaganda jacobinizante do tempo, que ainda hoje tem por aí serôdios resquícios) modelo de Homem e exemplo de Chefe de Estado: na sua personalidade convergia o cientista laborioso e probo, o pintor de merecido reconhecimento, o desportista habilíssimo, o diplomata de nomeada internacional.

No passado dia 1 de Fevereiro, passou mais um aniversário do duplo crime do Terreiro do Paço. Mas desta vez, e com um atraso de precisamente 98 anos, foi descerrada, no fatídico local, uma lápide que assinala o nefando episódio. Bem andou pois a Real Associação de Lisboa ao promover um acto com tamanha transcendência. Portugal cumpre assim o duplo dever de condenar um acto terrorista num contexto internacional de unânime reprovação dessa prática e, também, de memoriar D. Carlos – uma das mais belas expressões de humanista na Europa do seu tempo.

E a simbologia deste acto tanto mais se avulta à luz dos acontecimentos ocorridos após o Regicídio quanto se sabe que uma iniciativa congénere constituiu a derradeira bandeira do hoje injustamente esquecido Conde de Arnoso (Bernardo Pinheiro Correia de Melo), secretário particular de D. Carlos, escritor, jornalista, cronista, dramaturgo; um dos mais íntimos amigos de Eça de Queiroz (Cf. «Correspondência») e com ele membro dos «Vencidos da Vida» – plêiade que considerava de resto D. Carlos como seu «confrade suplente» (Cf. o nosso livro «Das Conferências do Casino aos Vencidos da Vida», 1998). Foi pois o Conde de Arnoso – em diligência desesperada, arrojada e solitária – quem, logo desde 1908, instou no Parlamento (ante a placidez e cobardia da generalidade dos políticos, entre eles o nefando Amaral, que ele repreendeu publicamente e lhe vaticinou 'remorsos'), para que, ao menos, se colocasse «uma lápide» no local do crime evocando o assassinato do rei e do príncipe. Mas foi tal a celeuma que este simples gesto levantou, que logo os illuminati, mormente a ala radical orquestrada a partir dos conciliábulos havidos n' O Mundo, montaram uma forte campanha de miserável jocosidade, passando a chamá-lo invariavelmente de «Conde da Lápide». Arnoso, todos os dias (no dizer de Rocha Martins) recebia «maços de cartas anónimas com ameaças; umas escritas a tinta vermelha, traziam punhais e mais desenhos cabalísticos, falavam de morte e de lhe fazerem voar o palacete pela dinamite».

Para a opinião pública mais desavisada, o talentoso autor de «Jornadas pelo Mundo», o intelectual e elevadíssimo Conde de Arnoso que Eça chamava de «delicado», morreria sendo apenas o… «Conde da Lápide». Sobreviveu apenas três anos ao seu chorado rei e amigo, passando os últimos tempos da sua vida em profundo abatimento e absolutamente desapontado com o seu próprio país.

Suponho que com este passo, a sociedade portuguesa assume, frontalmente, ante a comunidade internacional o acto terrorista de 1908. É que não se tratou de um crime fortuito, pensado por dois indivíduos anarquistas, como romanticamente ainda corre; tratou-se antes, como o expressou ao tempo a voz enfurecida e solitária de Arnoso na Câmara do Pares, de «um verdadeiro bando de assassinos a desfechar carabinas e revolveres sobre a carruagem real». Foi obra de uma terrível e autêntica organização terrorista, rigidamente hierarquizada e com aderentes dos mais variados sectores sociais: a Carbonária Portuguesa. Dos estudos que temos envidado até ao momento (Cf. o nosso livro «Pad'Zé – O Cavaleiro da Utopia», 2000) apurámos o nome de onze regicidas, mas estima-se que o seu número fosse muito superior. Era uma autêntica milícia de intervenção em que os seus elementos, postados em vários pontos do trajecto previsto para a passagem do landau, dariam morte, de uma forma ou de outra, à Família Real.

A acção militar secreta da Carbonária tem sido tratada de uma forma incompreensivelmente benévola. Uma impunidade que transitou do foro judicial para os compêndios de história! Urdindo uma intrincada trama de conspirações e atentados, muitas malfeitorias estão ainda por deslindar: umas acobertadas em suicídios duvidosos e mortes de causas muito dúbias; outras branqueadas ao tempo por uma poderosa instrumentalização das instituições.

O hediondo «Crime de Cascais» (1909) que nós próprios dissecámos no livro atrás citado é indesmentivelmente, entre outros, um dos mais formidáveis actos terroristas perpetrados em solo português, que alguns ainda agora pretendem apócrifo. É indubitável que o muito documentado fabrico de bombas (duas delas explodiram acidentalmente durante a sua confecção mas deixaram Lisboa em pânico), o tráfico de explosivos e armas, a disciplina inflexível infligida aos membros daquela organização, influiu decisivamente no curso da História de Portugal do século passado. Recordem-se as palavras de António José de Almeida: «Sem Carbonária não há revolução». Depois, o insuspeito Fialho de Almeida não hesitou em condenar a triste imagem que Portugal estava a transmitir (após 1910), ao aceitar constituir governos com manuseadores de bombas!

A «lápide» evoca a memória de um rei modelar e de um príncipe promissor vítimas do fanatismo e do fundamentalismo. Mas é também a reprovação cabal do terrorismo.



*Historiador; Universidade de Salamanca

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