segunda-feira, março 06, 2006

O respeito pelo sagrado

é algo que a cultura não pode pôr em questão

Patriarca de Lisboa, na homilia de Quarta-feira de Cinzas

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"A Quaresma é, para a Igreja, um tempo de verdade e de graça"

Homilia de Quarta-Feira de Cinzas

Sé Patriarcal, 1 de Março de 2006

1. Iniciamos, hoje, mais uma Quaresma, a primeira depois daqueles dias tão belos e tão repletos de um novo entusiasmo, que foi o Congresso para a Nova Evangelização. Para mim, como cristão e como vosso Bispo, este é um tempo de esperança e de temor. A esperança de que seja um tempo de renovação espiritual para a nossa Igreja diocesana, tempo de conversão e de fidelidade, tornando-a mais profundamente Povo do Senhor. Mas o receio de que seja apenas mais uma Quaresma, que corre veloz com a velocidade do tempo, sem pararmos para confrontar toda a nossa vida com Deus e com a Páscoa do Seu Filho Jesus Cristo. Receio que a Páscoa nos surpreenda na rotina da nossa vida. Que não tomemos a sério a advertência do Apóstolo Paulo: "Este é o tempo favorável, este é o dia da salvação" (2Cor. 6,2).
Que significado tem a Quaresma no contexto da nossa sociedade contemporânea, onde muitos não acreditam em Deus, onde, mesmo muitos cristãos, não cultivam a fé como relação viva e confiante com Ele, onde a Sua Palavra não é luz que ilumina a vida, onde a Sua Lei não interpela a liberdade, onde a doutrina da Igreja é pura sugestão? A Quaresma é, para a Igreja, um momento de verdade, de se assumir como "resto fiel", Povo que o Senhor escolheu e conduz. É tempo para assumirmos corajosamente a nossa diferença, no mundo em que vivemos: diferença na fé, nas motivações e nos critérios. É tempo de penetrar no desígnio de Deus a nosso respeito, de percebermos que Ele tem uma vontade para o Seu Povo, onde revela os caminhos da vida e que nos fortalece, com o Seu Espírito, para os podermos percorrer. Tomemos consciência de que a Quaresma tem de ser, para nós, tempo de discernimento e de fidelidade.

2. A primeira interpelação da Quaresma é a de tomarmos Deus mais a sério. É o grito, em tom dramático, do Profeta Joel: "Convertei-vos a Mim de todo o coração, com jejuns, lágrimas e lamentações. Rasgai o vosso coração, não os vossos vestidos. Convertei-vos ao Senhor vosso Deus" (Jl. 2,12-13). E São Paulo, em tom igualmente sério, escreve aos Coríntios: "Nós vos pedimos, em nome de Cristo: reconciliai-vos com Deus" (2Cor. 5,20). Se nós, os cristãos, não acolhemos estes apelos, quem os há-de ouvir?
Este é o maior problema espiritual, com consequências morais, da nossa cultura contemporânea: relativizou-se Deus. Está na moda fazer profissão de fé de agnosticismo; o homem, considerado como individuo e não como pessoa, necessariamente comprometido com uma comunidade, tornou-se o único critério de verdade e de discernimento ético; Deus deixou de ter lugar na história. Apesar do apregoado respeito pelas religiões e pela fé de quem acredita, alguns não hesitam em brincar com o sagrado; chegou-se mesmo a apregoar, em nome da liberdade, o direito à blasfémia. Fiquem sabendo que para nós que buscamos o rosto de Deus e procuramos viver a vida em diálogo com Ele, isso nos indigna e magoa, porque temos gravado no nosso coração aquele mandamento primordial: "não invocarás o Santo Nome de Deus em vão". Como afirmou um prestigiado colunista, que aliás se confessa descrente, com o sagrado não se brinca. O respeito pelo sagrado é algo que a cultura não pode pôr em questão, mesmo em nome da liberdade. A todos esses que sentem não acreditar em Deus, eu digo em nome do povo crente: a vossa dificuldade em acreditar em Deus, não toca na realidade insofismável de Deus. Nós respeitamos a vossa descrença, e não hesitamos em dar-vos as mãos em todas as lutas pelo bem e por causas justas. Mas respeitai a nossa fé, mesmo no exercício da vossa liberdade; sobretudo respeitai Deus em quem acreditamos.
Mas o grande desafio da Palavra da Eucaristia é dirigido a nós, os crentes: convertei-vos ao Senhor, nosso Deus, tomai Deus mais a sério, como o fez Jesus Cristo, que em solidariedade com toda a humanidade, obedeceu a Deus, Seu Pai, até à morte e morte na Cruz.
A primeira manifestação desse "tomar Deus a sério", é redescobrir a Sua Lei, a santa Lei de Deus. Ele tem uma vontade a nosso respeito, que é um desígnio de amor, que nos revela pela Sua Palavra. A Lei de Deus é revelação e chamamento e o exercício da nossa liberdade só pode ser uma obediência a essa Palavra. Esse caminho de obediência é difícil e exigente, mas é possível com a força do Seu amor. Só Deus torna possível a nossa fidelidade, vivendo a vida segundo a Sua vontade, percorrendo os caminhos do Seu desígnio.
Isto exige de nós, os cristãos, que completemos a lógica da natureza com a lógica da graça. Com que facilidade deixamos reduzir o nosso ideal de vida à ordem natural, contentando-nos com o que a natureza oferece. Os dons da Natureza são apenas o anúncio de uma plenitude definitiva, que é como uma segunda criação, um "nascer de novo", cujo horizonte de plenitude ultrapassa a felicidade que naturalmente podemos desejar e realizar. E esse novo horizonte de vida é-nos revelado por Deus, em Jesus Cristo, que o inaugurou na Sua Páscoa, tornando-se as "primícias" do homem futuro e do futuro do homem.
Este horizonte da graça não anula a natureza, antes a liberta do risco de ficar prisioneira da sua finitude e fragilidade e revela-lhe o esplendor da árvore de que ela é apenas a semente.
A Quaresma é um tempo em que somos chamados a viver ao ritmo da graça, recorrendo a todas as ajudas que, para isso, Deus nos dá, por Jesus Cristo, através da força sacramental da Igreja. Não tenhamos ilusões: muitas das fragilidades dos cristãos devem-se ao facto de reduzirem a sua vida à ordem da natureza, esquecendo que a rectidão natural, mesmo que se consiga, não é ainda a santidade.

3. Este naturalismo como perspectiva de vida é a principal causa e, porventura, expressão dos nossos pecados. É assim no amor, na busca da verdade que inspira os critérios morais e o sentido da vida; é assim num individualismo autista, que nos corta da densidade de corresponsabilidade com os outros; é assim na ganância e na indisponibilidade para a partilha; é assim na busca do rosto de Deus, glorificando-o com a nossa vida e experimentando a comunhão com Ele na oração.
A Quaresma contém uma forte interpelação à conversão, o que significa aceitar os nossos pecados e a confiança na misericórdia transformadora de Deus. Não tenhamos ilusões, irmãos: somos todos pecadores e talvez o nosso principal drama seja o já não identificarmos os nossos pecados, no concreto da nossa vida. E essa situação só mudará, se nos convertermos ao Deus Vivo e voltarmos a amar a Sua Lei. A conversão é uma experiência de realismo e de confiança: realismo de quem reconhece o seu pecado, confiança na infinita misericórdia de Deus: "Ele é clemente e compassivo, paciente e misericordioso, pronto a desistir dos castigos que promete" (Jl. 2,13).

4. A caminhada da Quaresma não pode ser só individual. Os caminhos da conversão devem ser percorridos em Igreja e pela Igreja. A conversão do Seu Povo é o grande desejo de Deus, pois só isso não tornará inútil a morte de Jesus Cristo. A expressão comunitária tem de envolver e fortalecer a caminhada individual. Ouçamos o apelo do Profeta e demos-lhe concretização nos caminhos da Igreja: "Tocai a trombeta sagrada. Reuni o Povo, convocai a assembleia, congregai os anciãos, reuni os jovens e as crianças" (Jl. 2,15-16).
Tenho esperança que a Igreja de Lisboa, dinamizada para a missão, viva profundamente esta Quaresma, como caminho de conversão e de graça. Quero fazer esta caminhada convosco, rezo por vós.

† JOSÉ, Cardeal-Patriarca

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